O prazer não está nas vitórias

Você já deve ter ouvido falar de mim. Participei de uma guerra por dez anos e levei outros dez voltando para casa. Minha história ficou tão célebre que todos já ouviram falar dela. E deram até um nome: Odisseia.

ulisses

Para os gregos, sou Odisseu. Para os romanos, Ulisses. Mas você não precisa conhecer minha história porque não estamos aqui para falar de mim, e sim de você.

Ou melhor, para falar de nós, homens.

Tenho observado seu mundo moderno. Li seus livros e vi aquele espetáculo a que chamam cinema. E fiquei curioso sobre a ideia de masculinidade que vocês têm nos dias de hoje.

Parece haver certa confusão a respeito do assunto. Grandes bigas sem cavalo ou pedaços de papel que vocês trocam por coisas de que não precisam parecem ser confundidos com provas de virilidade. E soube que homens consomem poções proibidas e que causam impotência só para terem músculos salientes. Só rindo.

Tudo isso seria cômico se não ameaçasse meu legado, as minhas lições sobre que é ser um homem.

Bom, vamos por partes.

"Vida", na sua língua, é um substantivo feminino. Pois bem. Se a vida fosse mulher, seria daquelas que amam soldados, que amam guerreiros.

Para todo homem, a vida é sua maior amante, aquela que coloca em seu caminho todas as demais. E a vida é do tipo de amante exigente, que põe seu homem a prova a cada dia, sem descanso, para que demonstre ser ainda digno de sua atenção. Ela gosta de seu homem atrevido, corajoso, capaz de sorrir quando está encrencado e de gargalhar diante de caminhos tortuosos.

Por isso, a masculinidade não se define tanto pelo uso da força bruta, mas pelo prazer de enfrentar uma resistência, pela disposição inesgotável de tentar, de errar e de voltar a tentar até vencer algo que resiste a nossa vontade. Isso é próprio do homem, embora possa estar presente em algumas mulheres e embora existam outras definições igualmente válidas e complementares do masculino.

Esse prazer no esforço de enfrentar resistências surge já no sexo. Seduzir uma mulher, ganhar sua confiança, afastar concorrentes, provar que está a altura do que exige o código de sua tribo ou comunidade: tudo isso pressupõe uma resistência a ser vencida não pela força, mas pela habilidade e pelo esforço determinado. O prazer masculino está, tanto simbolicamente como literalmente, em abrir passagem diante de caminhos inicialmente fechados.

Eric Armusik, "Odysseus and the Sirens" (2008)
Eric Armusik, "Odysseus and the Sirens" (2008)

E é por isso que o prazer não está exatamente na vitória ou no gozo, pois esse momento final apenas coroa a empreitada. O deleite está no percurso, nas suas idas e vindas, no esforço de sobrepujar as resistências do mundo reiteradamente.

Vencido um desafio, outro se coloca diante de nós.

Mas não é só no sexo, e sim também na vida profissional que isso se mostra real. Na busca do cargo ou trabalho de seus sonhos, sempre está lá o processo de repetição, de treinamento e de aperfeiçoamento. Sempre há o ralar de joelhos e a retomada de uma trajetória, sempre há o escalar de uma montanha escarpada.

Mesmo os mais vitoriosos não nasceram prontos e repousaram em seu sucesso, mas se definem continuamente, enquanto homens bem sucedidos, por meio de seu esforço ininterrupto. Seu povo admira um sujeito chamado Woody Allen, que parece ser um tipo de Aristófanes moderno. Pois esse artista criou mais de 45 filmes desde o início de sua carreira, o que dá, praticamente, um filme por ano. Picasso, pintor que me lembra o que foi Apolodoro para meus conterrâneos gregos, pintou cerca de 13.500 telas em sua vida.

E descobri que um ídolo contemporâneo, Steve Jobs, é admirado não só por seu talento visionário, mas por ter enfrentado resistências, como quando um tal de John Sculley colocou todos os comandantes da falange Apple contra ele. E tudo isso para que, anos depois, Steve Jobs conseguisse retornar triunfante à empresa.

Essa é a lição de seus antepassados e de seus heróis modernos: não é o sangue (a violência) nem as lágrimas (as emoções) que definem apropriadamente o que é masculino, e sim o suor produzido pelo seu esforço.

Navegadores enfrentando mares revoltos para descobrirem novas terras; conquistadores empunhando espadas contra inimigos de territórios inexplorados; alpinistas escalando montanhas gélidas e hostis à vida; atletas cujo campo de batalha está nos limites de exaustão de seu próprio corpo. Todos são irmãos comungando de um mesmo desafio imposto por sua masculinidade.

Mesmo na diversão, essa característica está lá. Vocês encontram satisfação brincando com jogos nos quais um semideus grego tenta enfrentar a oposição de criaturas divinas e titânicas. Vocês ficam eufóricos em estádios ao observar um grupo de atletas vencer a resistência de outro grupo para que possam colocar uma bola dentro de uma rede. Mesmo nos momentos de entretenimento, há o empenho em superar uma resistência que impede o caminho direto até o objetivo almejado.

mulheres

A glória do esforço. A força indomável que não cede quando seu couro rala em uma queda violenta. A determinação de responder com suor em troca do sangue que o chão áspero faz brotar em seus joelhos. A transpiração que vem do empenho em erguer a cabeça e flexionar os músculos das pernas em direção ao alto.

É isso que une você a seus antepassados, é isso que faz com que eu possa te chamar de filho.


publicado em 10 de Dezembro de 2013, 09:13
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Victor Lisboa

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