O Pará além da novela

Um outro Brasil que você não vai se arrepender de conhecer

É fim de semana de Círio de Nazaré em Belém do Pará, a maior festa religiosa do país. Em um restaurante requintado localizado dentro de um parque da cidade, todos almoçam e conversam alto, encobrindo o violão e a voz intimista de um músico que se apresenta em um canto do salão. De repente, o barulho é interrompido e todos os olhares se voltam para a porta de entrada:

—É a Fafá, é a Fafá! - começa o burburinho.

A cantora belenense entra acompanhada por Glória Perez, autora da novela "A Força do Querer". É a primeira vez que a acreana radicada no Rio de Janeiro coloca os pés no Pará. Sentam-se em uma mesa reservada sem serem incomodadas na maioria do tempo. Pelas mesas, as conversas giram em torno da novela, em tons que variam entre admiração e deboche.

—O Pará está na moda. É a terra de Ritinha! – orgulha-se uma mulher de meia idade, referindo à personagem interpretada por Isis Valverde.

—Égua, agora a Glória Perez aprende como se fala aqui no Pará. A única coisa que ela acertou foi o “égua” – alfineta um rapaz, ao destacar a interjeição mais famosa dos paraenses.

A falta de intimidade com o estado fez com que a novelista recebesse várias críticas. Expressões como “oxente”, “oxi”, e a inflexão característica dos nordestinos nas consoantes “d” e “t” chamaram a atenção dos paraenses, que não se identificaram nos personagens. Em nota, a Rede Globo justificou que a novela se passa em Parazinho, cidade fictícia do interior do Pará, e que a trama é uma ficção sem compromisso de ser fiel à realidade.

Joy Colares, secretário adjunto da Secretaria de Turismo do Pará (Setur) coloca panos quentes na discussão. Segundo ele, o interior do Pará recebeu muitas levas de migrantes nordestinos. Ele comenta que alguns errinhos foram corrigidos ao longo da trama e que outros permanecem, mas não tiram o valor da obra. "Mesmo sendo uma ficção, a novela desperta a curiosidade das pessoas sobre o Pará. Aqui, o turista vai poder tirar suas próprias conclusões”, diz.

O Pará é o segundo maior estado brasileiro, com 1,2 milhão de km², território cinco vezes maior que o de São Paulo. Belém, com 1,4 milhão de habitantes, é a segunda maior capital da região Norte. É banhada pelo rio Guamá e pela Baía do Guajará, sendo sua porção continental localizada quase que em uma península. O município tem ainda 39 ilhas que, somadas, representam 65% do território. Mas a cidade cresceu mesmo é de costas para o rio. Sua região metropolitana atinge os 2 milhões de habitantes.

Caminhar pelas ruas da cidade velha é pegar um bonde ao passado. Por sinal, de acordo com historiadores locais, a palavra bonde vem de “Bond”, em referência ao cônsul americano James Bond que, em 1868, criou a primeira empresa de bondes na capital paraense. Belém foi uma das primeiras cidades no Brasil a ter uma linha de bondes a vapor. O pioneirismo não para por aí. Foi uma das primeiras cidades a ter energia elétrica, necrotério, bulevares e sistema de esgotamento sanitário. Era a efervescência da Belle Époque, que no Brasil se estendeu de 1889 a 1931.

Ao fundo, o Mercado do Ver-o-Peso

Impulsionadas pelo auge do ciclo da borracha, obras como palácios, teatros, igrejas, praças com lagos e chafarizes pretendiam fazer de Belém uma Paris na América. O sonho acabou com o declínio do ciclo da borracha, no início dos anos 1910, dando início a décadas de decadência. A cidade conserva muitas referências do período em suas construções. Uma delas, do final da era de ouro, é o Cine Olympia, o mais antigo cinema em funcionamento do país, com 105 anos completados em abril deste ano.

A história de riquezas é contada com orgulho pelos moradores. O paraense mantém uma relação muito forte com o estado e sua cultura, com até certo bairrismo. A adaptação fora do estado é quase sempre penosa.

"O povo diz que é fácil identificar paraense viajando. É só olhar quem leva uma caixa de isopor", brinca a guia de turismo Amanda Coimbra.

Dentro da caixa viajam ingredientes da culinária local.

"Uma coisa que não pode faltar é a farinha, mas tem que ser essa grossa, de mandioca. Farinha de milho não é farinha", compara o diagramador Magno Brito, que passou uma temporada no Norte do Paraná e quase teve uma crise de abstinência sem o produto.

No Pará, come-se farinha com tudo, até com frutas e doces. Os pratos têm grande influência da culinária indígena. Uma das preferências locais é a maniçoba, considerada a feijoada do paraense. A iguaria é feita com uma massa de folhas de mandioca brava, chamada de maniva. A mistura é levada ao fogo por, no mínimo, sete dias para se extrair o ácido cianídrico, substância venenosa. É servida tanto nas palafitas como nos luxuosos apartamentos de um por andar próximos ao Ver-o-Rio.

O açaí é um dos orgulhos do estado. Os vendidos no centro-sul, moda entre os fitness, são considerados “a água do açaí” pelos paraenses. O principal acompanhamento do consistente caldo roxo feito da casca do fruto é o peixe frito. Recomenda-se ao turista não pedir para colocar banana ou leite condensado se não quiser ouvir o famoso “tais leso, é?”. Somam-se a esses o tucupi, o tacacá, e o jambu. Deste último, uma espécie de agrião, é feita uma infusão colocada em uma pinga. Como o jambu tem efeito anestésico, a fama da cachaça que treme a língua se espalhou e invadiu até as baladas de São Paulo.

Todos os ingredientes e muitos outros são encontrados no mercado Ver-o-Peso, considerado a maior feira livre da América Latina. Andar pelo Ver-o-Peso é uma experiência sensorial completa: uma explosão de texturas, cores, cheiros, sons e sabores. O complexo do Ver-o-Peso, carinhosamente chamado de Veropa, abriga também o Mercado de Ferro, inaugurado em 1901. Toda a estrutura foi trazida da Europa seguindo a tendência francesa de art nouveau.

Lá também é possível conferir outro "produto de exportação" do Pará: a música. Ritmos como o carimbó, a guitarrada e o tecnobrega, que já ultrapassaram as divisas do estado e conquistaram fãs até mesmo fora do país, dão o tom da festa que não tem hora para acabar. Pelas ruas, CDs de gravações caseiras são vendidos. Os mesmos discos são tocados nas famosas festas de aparelhagem.

Um mar de fé chamado Círio

Outubro é tempo de Círio de Nazaré, considerado uma antecipação do Natal. As mangueiras das avenidas ganham iluminação e, assim, o clima festivo toma conta da cidade. A festa em devoção à Nossa Senhora de Nazaré, é a maior do Brasil e uma das maiores manifestações católicas do mundo. A grande procissão do Círio de Nazaré, na manhã de domingo, reúne 2 milhões de pessoas em um trajeto de 3,7 quilômetros entre Catedral da Sé e a Basílica.

Auto do Círio

A programação dura 20 dias e se divide entre o sagrado e o profano. Além da procissão principal, a parte oficial do evento conta também com a Romaria Fluvial, que reúne 400 embarcações, a Motorromaria, quando a imagem peregrina é acompanhada por milhares de motociclistas pelas ruas de Belém e de cidades vizinhas, e a Trasladação, procissão realizada na noite de sábado, que faz o caminho inverso da principal.

A Romaria Fluvial

Definir o Círio não é tarefa fácil, mas com certeza pode-se dizer que é um rio de gente e um mar de fé. A manhã de domingo é o grande ápice. O maior desafio é conseguir um lugar junto à corda puxada pelos romeiros durante a procissão. A disputa é acirrada e só consegue tal feito quem garante o lugar ainda pela madrugada. Mesmo com recomendação para que a corda só seja cortada ao término da procissão, os romeiros a estão fragmentando cada vez mais cedo.

—Ter um pedaço da corda é como ter um amuleto – comemora um devoto.

Iniciado o percurso, romeiros seguem o trajeto levando a imagem. Muitas pessoas cumprem suas promessas fazendo o trajeto de joelhos. Enquanto o penitente segue seu trajeto, amigos e parentes, vão colocando folhas de papelão sobre o asfalto quente. Retiram de trás e colocam em frente, como em uma linha de produção. Outros seguem carregando sobre as cabeças réplicas de casas, barcos, apostilas e moldes em gesso de partes do corpo. São graças alcançadas.

Enquanto a multidão passa, os espectadores se espremem nas pelas calçadas. O calor é o principal vilão. Enquanto voluntários da Cruz Vermelha retiram desmaiados em macas, evangélicos distribuem água para os romeiros. Um menino de 9 anos chora copiosamente ao passar da imagem da santa, apelidada pelos paraenses como Nazinha, ou Nazica.

A procissão acompanha a Santa

—É minha mãezinha. Só o que eu tenho a dizer é muita gratidão. Gratidão, só – diz entre soluços o pequeno Pablo, acompanhado pelos pais, também emocionados.

Além de fé, o Círio é um palco para artistas e manifestantes. A noite de sexta é marcada pelo Auto do Círio, homenagem da classe artística local. Já na noite de sábado é a vez da Festa da Chiquita, evento organizado pela comunidade LGBT não reconhecido pela diretoria da Festa de Nazaré. Os participantes se reúnem em frente ao Theatro da Paz e aguardam em silêncio a passagem da berlinda com a imagem da santa. Em seguida, começam a apresentação de shows de transformistas, travestis, transexuais, dragqueens e misses gays. Ativistas de Direitos Humanos, feministas e outros setores da sociedade também aproveitam o evento para demonstrar suas insatisfações.

Belém é toda superlativa e não cabe em um texto, em um livro ou em uma novela.

Todas as impressões foram colhidas em apenas quatro dias de viagem que fizemos a convite da SETUR-PA. Deixo registrado meu agradecimento. Em tempos de absurdas discussões separatistas, retorno para o Sul com a certeza de que, cada vez mais, o Brasil é o meu país.

Conhecer um pedacinho da Amazônia, este maiúsculo bioma que ocupa quase metade do território brasileiro, é um privilégio. Parto com a certeza que voltarei para compreender mais a fundo essa gigante amazônica chamada Santa Maria de Belém do Grão Pará.

* * *

Nota: todas as fotos por Anderson Coelho.


publicado em 29 de Outubro de 2017, 22:45
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Celso Felizardo

Só mais um cara latino americano que entre e o fusca e o violão, optou pelo segundo porque odeia dirigir. Jornalista lá das bandas do Norte do Paraná, não dispensa uma boa música e um boteco.


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