Há tempos ouço debates sobre qual será o modelo de relação mais comum no futuro. Entre defensores da monogamia e da poligamia, costumo brincar que fechada, aberta e de carne são esfihas; relação é outra coisa. Já que o que realmente nos une ou separa de uma pessoa não é um acordo pré-fixado, nem uma instituição, nem um papel, nem um título, na prática todas a relações são abertas.
A abertura, mesmo em uma relação monogâmica convencional, é uma qualidade inalienável, irrevogável. Não há tranca que segure os deslocamentos da vida.
O que nos mantém ligados uns aos outros é a conexão estabelecida, que independe, inclusive, de estar ou não fisicamente com a pessoa. Podemos estar disponíveis para outros estando com um parceiro, como podemos estar menos disponíveis a outros apenas pela ligação com alguém com quem sequer namoramos. Podemos estar disponíveis mas não chegarmos às vias de fato, como podemos chegar às vias de fato estando com outro parceiro sem que isso afete essa conexão afetiva. As variações são tantas que podemos dizer que vivemos em constante suruba e monogamia ao mesmo tempo, por liberdade original, e mudar o rumo e a forma de se relacionar a qualquer momento, mesmo que tenhamos feitos acordos, contratos, promessas.
Alain de Botton, no brilhante livro Religião para ateus, diz que os ateus perdem muito tempo querendo provar a não-existência de Deus e se esquecem do que fazer diante da não-existência de Deus. Então investem muita energia contra aqueles que praticam seus rituais religiosos perdendo a grande oportunidade de ter algumas experiências para além dos dogmas. Botton mostra como as religiões se apropriam de rituais pagãos. O Natal, por exemplo: o que realmente faz as pessoas aderirem não é o significado religioso em si, mas a experiência de distribuir presentes, compartilhar uma ceia, se reunir para celebrar. O verdadeiro sentido do Natal é a prática do seu significado, não o contrário. O mesmo acontece a qualquer tipo de relação.
O valor de um relacionamento é dado pelo que ela efetivamente é em experiência, sendo inútil achar que um rótulo vai salvaguardar ou dar origem a alguma coisa. Na hora H, tudo isso é absolutamente ineficiente, exatamente como pensar em fazer dieta e colocar um aviso na porta da geladeira pra lembrar, mas assaltar a geladeira um pouco a cada dia. Fazemos efetivamente dieta quando não precisamos mais lembrar que estamos em dieta, paramos de fumar quando já não lembramos bem porque fumávamos.
O rótulo só faz sentido quando a relação vivida o dispensa – interessante paradoxo.
O que ocorre a maior parte do tempo é uma burocratização dos relacionamentos, não apenas em formato mas principalmente em conduta. Precisamos de uma definição para nos certificarmos de que tudo vai dar certo, não podemos deixar margem para erro e reclamações posteriores. Montamos um projeto e tratamos o outro como um de seus objetos. Em vez desfrutar a relação, apenas mantemos uma relação e posicionamos o outro como uma meta de um projeto.
Fazemos esforços para evitar o que possa ser desagradável, nos preocupamos demais em acertar e muito pouco em vivenciar com nossos próprios olhos, tato, escuta, paladar e corpo, desperdiçando a parte mais saborosa das relações, que é explorá-las, desbravá-las. E é justamente essa conduta que atinge o ponto vital das relações, fazendo com que fiquem apáticas, anêmicas, sem fluidez.
Não percebemos que o comprometimento vem antes da promessa, que o amor vem antes do pedido de casamento, que a conexão vem antes da razão. Na ânsia de controlar, colocamos o carro na frente dos bois e definimos formatos de relações para garantir segurança, enquanto ironicamente evitamos nos expor ao contato pra valer, sem garantias. Abertos.
Em minha própria experiência constato cada vez mais que os verdadeiros vínculos são mantidos por pura naturalidade e relaxamento, quando a promessa já está acontecendo e não precisamos oficializá-la, quando o sexo é praticado e não investigado, quando a disposição existe mesmo diante de condições externas desfavoráveis.
“There’s nothing to decide. There’s just walking forward.”
–Miranda July
Então a “fidelidade” pode ser estar na relação 100% com tudo que faz parte dela, independentemente de exclusividade, pois a conexão estabelecida tem um sentido mais amplo e profundo. A “infidelidade” é justamente o oposto: não é um caso extraconjugal ou não, é uma manobra do desejo, uma artificialidade, é oferecer seus pedaços, é mentir descaradamente, para você mesmo.
Os enganos que mascaramos são como fingir um orgasmo: nós mesmos recebemos de volta aquilo que nos insatisfaz enquanto tentamos fazer o outro acreditar que nos contenta.
Se olharmos as relações como parcerias, em que estamos compartilhando com o outro nosso caminho, espaço, ideias, sentimentos e momentos, não como burocracia, onde temos de cumprir um roteiro pré-estabelecido, podemos vivê-las com mais leveza. Precisamos entender que o outro anda pelo mesmo espaço de liberdade que temos sozinhos, e que juntos esses espaços deveriam se ampliar ainda mais e não se restringir para que haja uma manutenção e durabilidade que atenda nossas pequenas expectativas de controle. Quanto mais relaxados estivermos diante das surpresas e aventuras do terreno de se relacionar com alguém, mais abertos estaremos ao que vier pela frente.
Da próxima vez em que tiver dúvidas sobre qual tipo de relação está vivendo, parta do seguinte ponto: todas.
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