Por Neusa Sauaia, psicóloga e fundadora do Núcleo Espiral 

A morte do menino Henry Borel, com apenas quatro anos, no dia 8 de março de 2021, gerou revolta e muitas questões que ainda não foram respondidas. O caso é cheio de complexidades e, mesmo nos aprofundando no tema, dificilmente teremos todas as respostas. 

Dito isso, gostaria de deixar claro logo de início, que não estou escrevendo este artigo para falar especificamente sobre o que aconteceu com Henry, na Barra da Tijuca, Zona Oeste do Rio de Janeiro. E nem tenho a intensão de dar um veredito sobre os possíveis envolvidos no óbito. 

Violência contra as crianças: Atrocidade ou prática cotidiana?

Quando os veículos de comunicação repercutem os casos Henry e Isabella Nardoni com tanta ênfase, por um lado, desempenham um papel importantíssimo de alertar as pessoas sobre tais atrocidades, porém, por outro, perdem a oportunidade de abordar outras nuances essenciais no combate à violência infantil.

Obviamente, tais óbitos são bastante chocantes. Mas a violência contra a criança não é restrita a casos como esses. Toda vez que um adulto chama o seu filho de burro ou dá um beliscão, um tapa ou uma chinelada, este adulto está, sim, praticando um ato violento que pode ser danoso para o desenvolvimento daquela criança (mais do que imaginamos ao pensar que isso é comum, que foi assim que outras gerações nos ensinaram).

O tapa e a chinelada não vão matar o filho, nem levar os pais para os jornais, mas deveriam, também, ser discutidas com muita seriedade pela sociedade. E a imprensa pouco faz neste sentido.

Como psicóloga e fundadora do Núcleo Espiral — entidade sem fins lucrativos que, há 13 anos, trabalha na educação contra a prática de violência ou tratamento degradante à pessoa humana, em especial, à criança e ao adolescente — venho propor uma reflexão por meio de alguns tópicos e de algumas perguntas que valem ser feitas.

Como identificar uma criança vítima de violência e o que fazer depois? 

As crianças podem apresentar sinais de que são vítimas de algum tipo de violência. Às vezes, elas ficam mais quietas do que o normal. Em outras situações, podem chorar — e até apresentar sintomas físicos como vomitar, ter febre, diarréia entre outros — apenas por ter que ir a um local ou encontrar alguém em específico.

É função do adulto prestar atenção em mudanças de comportamento ou sintomas físicos que podem acender um alerta vermelho de que algo não está bem.

Foto por Lucas Metz

Além disso, os responsáveis também necessitam acreditar no que as crianças dizem e averiguar se aquilo que elas descrevem, realmente, acontece.

Lembrem-se: os pais ou responsáveis têm o dever de proteger as crianças e evitar que elas fiquem expostas a qualquer tratamento degradante.

Quando uma criança se mostra incomodada em relação à presença de alguma pessoa, o ideal é que o seu cuidador investigue o motivo e, se preciso, a afaste do convívio deste adulto — nem que, para isso, sejam necessárias medidas judiciais. 

Quais são os sinais de violência que as pessoas não querem ver?

Muitos especialistas estão debatendo sobre como identificar uma criança vítima de um abuso. Em alguns casos a violência pode estar muito velada. Mas e quando está ao alcance dos olhos dos adultos, como no caso Henry?

Não vi nenhuma discussão referente aos motivos que provocam a omissão dos adultos em casos como o do menino Henry.

Por que as pessoas veem e não enxergam? Essa é uma pergunta importante. Por que alguém vê que uma criança está sendo machucada e faz de conta que não está acontecendo nada ou esconde a situação?

Foto por Kelly Sikkema

​Por que muitas vezes existe a tendência de se proteger de uma pessoa poderosa, que é acusada de agredir uma criança? Tem um fator psicológico mais profundo: o negacionismo daquilo que está no nosso cotidiano.

Muitas vezes, há algo muito evidente na nossa frente que não queremos ver. Isso acontece ou porque aquilo é insuportável para nós (dói demais para a pessoa admitir que aquilo está acontecendo e que precisa ser resolvido) ou porque nos leva a encarar nossas próprias atitudes violentas, por menor que elas sejam.

Encarar as nossas próprias atitudes violentas e não saber o que fazer com elas daí em diante não é nada fácil. (Vamos falar sobre isso daqui dois tópicos.)

O abusador é um monstro fácil de ser identificado?

Não. Isso é um mito que precisa ser desmentido. O agressor, abusador ou assassino não é um monstro identificado facilmente. Essa pessoa geralmente está dentro de casa e tem uma feição mansa. Ele não vai atuar de maneira violenta o tempo inteiro.

No caso de um estuprador, por exemplo, ele vai aliciando e mostrando afeto pela vítima. É uma pessoa que passa a imagem de ser muito boazinha. Mostra outro lado para esconder e compensar a face do abuso.

Como analisar a relação entre o poder e o amor?

Há uma frase emblemática do psiquiatra Carl Jung que gosto muito: “Onde entra o poder, sai o amor”.

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Em muitos casos, o abusador ou o assassino é detentor de um poder ameaçador, tanto sobre os funcionários, a exemplo de uma babá, como sobre familiares (esposa, filhos, enteados, etc.).

Quando falamos em poder, podemos pensar em diferentes graus: desde o mais sutil até o extremamente opressivo e ameaçador. A Organização Mundial da Saúde (OMS) define grandes agressores como pessoas que impõem o poder a crianças na base da violência, que nem sempre é física.

Isso gera prejuízos — seja físico ou emocional — ao desenvolvimento desta criança. Nesta dinâmica de poder, tudo o que podia ser colorido pelo afeto e amor, esvai-se. Não parece existir amor em tal relação.

"Cresci a base de chinelada. Como educar meu filho (ou enteado) de outro jeito?"

Esta pergunta não tem uma resposta fácil. Primeiro, é importante ressaltar que, muitas vezes, os pais, padrastos ou outros responsáveis não utilizam métodos violentos de maneira consciente. 

Quando os homens crescem em meio a um ambiente familiar hostil, geralmente, levam isso para a sua fase adulta e criam outras crianças da mesma forma.

Tal processo não é necessariamente um “revide”. Para eles, é algo natural, pois foram habituados a este tipo de tratamento. Eu já ouvi inúmeros pais perguntarem: “Fui criado assim e estou aqui. Sobrevivi. Por que não posso criar meu filho desta maneira?”. 

Quando os homens fazem tal questionamento, não percebem o quanto foi custoso para eles próprios crescerem a partir de um tratamento violento. Os maus tratos, que nem sempre são físicos, deixam marcas profundas na pessoa. 

Homens são marcados, em muitas culturas, por padrões de atuação que definem sua masculinidade: seja forte, viril, garanta sua autoridade, cultive seu poder antes que seja tarde demais e seu filho/a não mais o respeite.

Autoridade combina com respeito e não é autoritarismo.

Amorosidade combina com confiança, com segurança, e isso não é ser “mole” ou “babaca”. Portanto, não atue no automático, não reaja de cabeça quente. Na hora do nervoso, respire por três segundo, e atue com consciência de suas atitudes e das consequências.

Não se culpe ao perceber que algum dia agiu de forma torta e negativa. Sempre é hora de se rever e mudar. 

Para transformar tal método de criação em uma educação não violenta, o pai necessita se esforçar muito. Não é simples. É um trabalho árduo e que exige bastante leitura, estudo e até terapia. Diálogo, combinados e recompensas a bons comportamentos vão ocupando o lugar da "explosão".

Além disso, valem algumas práticas, como respirar fundo e contar até dez antes de tomar atitudes automáticas e impulsivas contra a criança. Isso pode evitar a prática de algum tipo violência, seja física ou psicológica. 

Como disciplinar sem violência? 

O primeiro passo é entender que existem alternativas para criar e educar os filhos sem usar a violência. Nesse vídeo, o psicólogo e pai Thiago Queiroz fala sobre alternativas. 

 

O Núcleo Espiral aborda constantemente a educação sem violência e proteção aos direitos das crianças. Você pode acompanhar estes conteúdo pelo Instagram, YouTube ou pelo Blog do Núcleo Espiral

Proteja as crianças dos conflitos entre adultos

É frequente que quando um casal se separe, os adultos não mantenham uma relação tão amistosa. Ou então, que o novo cônjuge de uma das partes não tenha uma boa relação com aquele(a) que veio antes (e vice-versa). O problema é quando essa animosidade interfere na educação das crianças.

Os filhos e/ou enteados não devem sofrer as consequências de um possível sentimento de ciúmes, inveja ou de um desentendimento entre os pais e/ou padrastos. Crianças e jovens não podem ser envolvidos ou responsabilizados por questões que não lhes pertencem.  

Por fim, gostaria de frisar, mais uma vez, que algumas destas sugestões que demos neste artigo não são fáceis de serem tomadas, por mais que nos pareçam óbvias.

Por isso, repito o quanto é importante se informar, ler sobre o assunto e buscar apoio profissional especializado, se necessário. Somente assim, poderemos evitar que outras crianças sejam vítimas de diferentes e, muitas vezes, sutis formas de violência.

Como buscar ajuda em casos de violências contra crianças?

Denúncia e informações: Disque 100

O Disque 100 é o número mais indicado para pedidos de ajuda e informações relacionadas a violência contra crianças.

Conselho Tutelar:

O Conselho tutelar e Varas da infância também são intituições que podem ajudar com intervenções legais. Para isso você tem que buscar (dar um Google) o Conselho Tutelar da sua região. 

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Falar sobre violência contra crianças é um tema complexo e delicado. Não temos a pretensão de dar soluções definitivas, mas de trazer reflexões e alternativas para que possamos seguir refletindo e buscando respostas, juntos, para questões importantes. 

Mandem suas dúvidas, questões, aflições, críticas, que vamos continuar a conversa aqui nos comentários.

Neusa Sauaia

Psicóloga e fundadora do Núcleo Espiral.