Na última segunda-feira (18), o site da revista Crescer publicou uma reportagem alertando os pais de que supostos vídeos da boneca Momo, em que ela ensinaria crianças a se mutilarem e a cometerem suicídio, estariam aparecendo dentro de vídeos do YouTube Kids, versão da plataforma do Google com conteúdo exclusivamente infantil.
A reportagem é totalmente baseada no relato de uma professora de Campinas (SP). Ela teria recebido o vídeo denunciando a presença da boneca maligna no YouTube Kids pelo WhatsApp. Ao conversar com sua filha, esta teria dito que já tinha visto a Momo e começado a chorar.
A chamada da matéria recorre ao preguiçoso “diz mãe” no final, uma praxe do jornalismo que não apura e apenas repercute ou confia em uma única fonte. Em casos como o da Momo, esse tipo de abordagem preguiçosa é de uma irresponsabilidade tremenda. O caos que se instalou após a publicação confirma isso: novos relatos de supostas aparições surgiram em várias partes do Brasil, incontáveis jornais regionais deram espaço ao caso em tom alarmista e as autoridades (Ministério Público, Procon, polícias) emitiram alertas e pediram ao Google e Facebook para que removessem a boneca Momo do YouTube e WhatsApp, respectivamente.
O YouTube emitiu uma nota, via Twitter, afirmando que não encontrou aparições da Momo no YouTube Kids. A empresa, quando quer, consegue identificar automaticamente detalhes humanamente impossíveis no volume de vídeos que a plataforma comporta, como trechos de músicas protegidas por direitos autorais, logo, o posicionamento merece algum crédito:
Sobre o desafio Momo: não encontramos nenhum vídeo que promova um desafio Momo no #YouTubeKids. Qualquer conteúdo que promova atos nocivos ou perigos é proibido no YouTube. Se encontrar algo parecido, denuncie.
O repórter Phillippe Watanabe, da Folha, fez o que qualquer jornalista deveria ter feito: procurou pelo vídeo da Momo no YouTube Kids. Após dois dias mergulhado na plataforma, não encontrou vestígio dela. Não é difícil, mas é um esforço que consome tempo precioso — e escasso — nas redações e que, no fim, pode não dar em nada. Acontece. Ou deveria acontecer.
A histeria coletiva que a “reportagem” da Crescer desencadeou é um tiro pela culatra. Ao alimentar um monstro inexistente, pais e imprensa o criam. Mais que isso: desviam as atenções dos verdadeiros problemas que o YouTube tem, que não são poucos nem banais e, alguns deles, dentro do próprio YouTube Kids.
A Safernet Brasil divulgou um alerta sobre os supostos vídeos na esteira da publicação da Crescer. Nele, cita uma investigação da agência de fact-checking Snopes, de 26 de fevereiro, que contestou publicações norte-americanas sobre o aparecimento da Momo em vídeos infantis no YouTube. Por lá e em outros países, como Índia e Argentina, a boneca Momo também leva a culpa por aparições terríveis em vídeos infantis jamais comprovadas. Segundo o alerta, a investigação da agência apontou que se trata de uma “campanha de desinformação em torno da ‘Momo’, associando-a ao suicídio de crianças”.
Não é a primeira vez que isso acontece. Em 2017 foi a vez do “desafio da baleia azul” aterrorizar pais do país inteiro. A única diferença é que não havia um personagem tão marcante quanto a Momo. De resto, tínhamos os desafios, o definitivo do suicídio, uma cobertura destrambelhada da imprensa e a ausência absoluta de um caso concreto que fosse para justificar todo o alarde.
Algumas crianças dizem ter visto a Momo. Com a repercussão, é bem provável que sim, mas não nos vídeos do YouTube Kids. Na hora de “conversar com os filhos”, os pais assustados apresentam a Momo a eles e a coisa sai totalmente do controle, algo que especialistas desaconselham veementemente. A Safernet orienta os pais a “agirem com responsabilidade”:
Caso receba conteúdos, fotos ou vídeos que sejam uma ameaça à segurança de crianças e adolescentes de números desconhecidos, bloqueie o contato no WhatsApp.
Caso o material tenha sido publicado em um grupo que você faça parte ou de um número de um conhecido, evite repassar a informação sem checar a origem. Desconfie sempre de correntes alarmistas no WhatsApp. Elas causam o efeito reverso, aumentando a curiosidade sobre o conteúdo e, consequentemente, sua busca. Também jamais exiba esse tipo de conteúdo para crianças e adolescentes.
Pais e educadores podem e devem alertar sobre a existência de vídeos e notícias perigosas na internet, mas abrindo a possibilidade para um diálogo: crianças e adolescentes devem se sentir seguros para compartilhar e conversar com os responsáveis caso sejam impactados por conteúdos violentos.
O colunista de mídia do New York Times, John Hermann, foi quem fez a melhor análise do caso. Segundo ele, pais que delegam ao YouTube parte do cuidado dos filhos, sem terem a certeza do que se esconde dentro dos vídeos, veem na Momo a materialização dos seus medos mais profundos e um alvo para direcionarem a culpa por não estarem presentes quando estão cansados ou ocupados com qualquer outra coisa. “O medo da Memo existe há anos, mas agora ele tem um nome e um rosto”, escreveu Hermann. Rosto que, nas palavras brincalhonas de uma amiga do colunista, seriam o de “uma mãe que não dorme ou toma banho pela falta de um momento longe de filhos exigentes”.
A Momo é real, e nem me refiro à escultura do japonês Keisuke Aisawa, exposta em Tóquio em 2016 e apropriada pelo boato como a imagem do mal. Falo do fenômeno da Momo coach de suicídio infantil. Não pelos seus “atos” em vídeos infantis, que até agora não foram comprovados e nem devem existir, mas pelo terror que ela (ou quem está por trás dessa boataria) cria em pais que são, em igual medida, super protetores e super culpados. O público-alvo da Momo, aquele que realmente tem pavor da boneca, não são as crianças. São os pais delas.
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Nota do editor: este artigo foi publicado originalmente no Manual do Usuário, um blog focado em tecnologia que publica artigos opinativos, reportagens aprofundadas e que questiona a premissa de que a tecnologia pode resolver todos os problemas. Assine a newsletter semanal gratuitamente.
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