GD;NL (TL;DR): Quem não se singulariza se trumbica.
Precisaremos ainda algumas décadas para analisar com imparcialidade as mudanças que ocorreram entre 1980 e 2010. A tecnologia da informação causou tantos impactos num período tão curto que todos nos sentimos ligeiramente perdidos quanto a esta ou aquela tendência, enquanto elas se sobrepõem ou contrapõem em rápida sucessão.
Dentro desse reconhecimento, um aspecto que parece claro é que temos uma espécie de “conflito de gerações”, que não necessariamente tem a ver com idade ou gerações propriamente ditas, mas com a capacidade de manter a mente aberta e flexível em meio à constante introdução de novos usos do tempo e da atenção, com implicações nas relações pessoais, trabalho e na cultura em geral. Cada vez mais percebemos que a presença ou ausência de uma qualidade essencialmente heurística no nosso lidar com a aceleração frenética determina em muito nossa possibilidade de integração no mundo.
Por “heurístico” quero dizer o desenvolvimento de métodos abertos e sempre adaptativos para lidar com problemas de todo tipo. Por exemplo, podemos executar um método bruto de tentativa e erro, isto é, apenas passar uma a uma por todas as possibilidades e combinações de ação para solucionar determinado problema. Porém, isso possivelmente levaria muito tempo e, pouco a pouco, naturalmente descobrimos que aprendemos a usar experiências passadas, dedução e indução para formular hipóteses, testes e critérios que reduzem a necessidade de efetuar todas as possibilidades combinatórias.
Aprendemos a filtrar as estratégias mais bem sucedidas e, rapidamente, podemos realinhar todo o esforço com base em um ou outro indício que obtemos.
Esse processo de depuração pode parecer muito abstrato, porém, é o que todos nós que conseguimos, por exemplo, operar nossos smartphones fizemos em algum momento. Embora estas interfaces sejam elaboradas para supostamente serem extremamente fáceis, ainda assim há muitas curvas de aprendizado com diversas intensidades de inclinação. Todos estes aprendizados, no entanto, necessariamente envolvem capacidades heurísticas.
Em outras palavras, essa qualidade heurística diz respeito, hoje, muitas vezes, em lidar com as várias interfaces de dispositivos eletrônicos digitais, mas também está ligada a como exploramos essas ferramentas em termos das habilidades convencionais de trabalhar, comunicar e produzir cultura.
O que infelizmente percebemos é que a noção de “inclusão digital” não prevê uma vastidão de pessoas que, por vários motivos (não ligados a questões econômicas ou de padrão educacional e até mesmo nem sempre ligados à idade), tem grande dificuldade em utilizar e usufruir de recursos amplamente disponíveis ou até mesmo de vislumbrar o que poderiam estar usufruindo.
Vastos potenciais estão disponíveis a todos nós: as heurísticas são explorações desses vastos mananciais de informação e interação.
Aparentemente, ainda há grande desigualdade – e tudo indica que caminhamos para uma “hackercracia” – em que as pessoas que sabem fuçar nas coisas até abrir possibilidades inesperadas obtêm vastas vantagens sobre aquelas que, quando muito, apenas tentam usar o que é oferecido, sem desenvolver um método geral.
O motivo pelo qual algumas pessoas naturalmente desenvolvem um método de lidar com a tecnologia enquanto outras nunca o desenvolvem é difícil de entender: tem a ver com inclinações pessoais, prisões ideológicas, a falta de uma base educacional investigativa ou científica e desinteresse ou preguiça. Todos estes combinados de várias formas.
No final, o que ocorre é que a maioria das curvas parece ter um início íngreme demais para alguns, com a consequência de que, enquanto alguns de nós rastejam aos tropeços, outros voam em velocidade supersônica.
Quando tudo é fácil, quanto mais difícil, mais interessante
Quando comecei a me interessar por jogos eletrônicos, no início dos anos 80, as interfaces eram dificílimas. As instruções, quando existiam, não diziam nada e a alfabetização no inglês acontecia simultânea e forçosamente. Nem se sonhava com interfaces em português. Naquela época, ainda acreditávamos que instruções eram necessárias: RTFM – mas elas não existiam ou não eram suficientes.
Cada jogo, nos primeiros computadores que tive, usava teclas diferentes para funções diferentes e você ia testando até obter alguma funcionalidade. Depois de um tempo você aprendia que a grande maioria usava a letra q, de quit, para sair, por exemplo. E assim, alguns padrões foram se formando e, embora eles mudem com os tempos e os diversos equipamentos, é possível dizer que muitas das ferramentas heurísticas que eu desenvolvi aos oito anos de idade ainda uso diariamente.
O que eu percebi, logo que os primeiros videocassetes e relógios digitais surgiram, é que todos os adultos desde sempre me pediram para configurar e ajustar seus aparelhos. Parecia que tinham algo mais importante para fazer, e faziam um elogio: “Você que é inteligente vê isso pra mim, por favor”.
Com o tempo e o passar dos anos, isso se tornou meu cotidiano.
Ainda hoje as pessoas vêm até mim com equipamentos e se desculpam dizendo “eu sou muito burro. Por favor, dá uma olhada nisso?”. Fico particularmente chocado quando (é raro, mas acontece) a pessoa, por acaso, é uns 10 ou 20 anos mais jovem do que eu. Realmente me pergunto: “o que foi que aconteceu com sua educação que fez com que você não obtivesse um mínimo de heurística?”.
Quase imediatamente desisti de pensar nessas pessoas como simplesmente – como muitas vezes se autodeclaram – “burras”. Elas muitas vezes têm capacidades intelectuais bastante desenvolvidas em outras áreas. Também desisti de pensar nelas como simples preguiçosos, embora algum nível de preguiça ou desinteresse provavelmente esteja envolvido.
Seu desinteresse tem mais a ver com uma fixação em certos hábitos mentais e teorias do mundo e uma falta completa de perspectiva que fica cada vez mais dramática, com relação ao que esteve acontecendo no mundo nos últimos anos, e que é certo será ainda mais intenso nos próximos.
“Eu não gosto de computador”
Essas teorias de mundo e hábitos mentais algumas vezes têm a ver com “eu não sou uma pessoa que gosta dessas coisas”. É muito irônico, hoje, quando ouço alguém dizer “eu não participo de redes sociais” (ou “eu não quero um smartphone”, ou “eu não uso homebanking”, ou “não compro pela internet”), porque, na década de 90, houve um momento em que internet era realmente coisa de nicho.
Então eu ouvia, já muito surpreso, pessoas se esquivando da revolução: “muito tempo na frente do computador, que chatice, isso não é para mim”. As pessoas achavam, e frequentemente me diziam, “você adora computador, né?”. Eu confesso que até tinha certo fetiche por computadores quando criança, tinha certo fascínio mórbido por disquetes e teclados emborrachados, placas de expansão e o desenho de plugues ou interruptores das fontes de alimentação, configurações detalhadas, uma misteriosa luz verde vinda de uma tela num escritório escurecido, coisas desse tipo.
Aos oito anos de idade tive algumas conversas muito bizarras com adultos que não entendiam por que eu desejava um computador pessoal, e hoje ainda encontro algum neoludita que acha que e-readers não são para ele: “gosto de segurar o livro nas mãos e sentir o cheiro”.
Quando a Internet chegou, o computador para mim já era uma espécie de torradeira. Não tinha mais nenhum fascínio específico, geek, pela máquina ou pela novidade.
Já não era nada disso.
O mero fato de passar por várias tendências ao longo dos anos já me deixava blasé perante qualquer coisa nova que se apresentasse. Era apenas natural gostar de escrever num dispositivo que, a meu ver, facilitava muito isso quando, na faculdade, fiz algumas longas provas dissertativas em papel e logo percebi que escrevo (hoje todos escrevem assim) numa espécie de “rascunho cumulativo”– onde o texto vai sendo moldado, polido, podado e construído nas entrelinhas.
Talvez antes isso também já fosse assim, mas com certeza não com essa flexibilidade e facilidade: quem não fica abismado com o trabalho que tradutores e editores passavam 50 anos atrás não tem noção da história.
Quando tive que entregar provas a próprio punho, descobri que precisava passar textos 4 ou 5 vezes a limpo antes de achar que estava a meu contento até que passei a usar um computador e depois “passar a sujo” para entregar! (Quando era exigido ou uma impressora não estava tão fácil ao alcance).
Computadores também eram interessantes porque eu gostava de discutir em BBSs, colecionar imagens bizarras, garimpar textos… não gostava de nada especificamente ligado à máquina – se eu perdia muito tempo deixando meu desktop bonitinho e configurando programas, começava a me sentir meio inútil.
Essa é a maior verdade: o computador é um mero intermediário com a cultura, e quanto menos evidente ele é, durante o uso, melhor.
Ainda assim, reconheço que há pessoas que são escravas do próprio computador ou de outros gadgets, tanto pessoas que não entendem nada como algumas que entendem muito. Quando os dispositivos computacionais se tornam fins em si mesmos, isso é muito triste.
Pensar que a cultura tem a ver com o dispositivo é como dizer a um marceneiro:
“Tu é gamado por um martelo e um serrote, né?”
Mas o marceneiro está medindo, cortando, colando, pregando, e ele tem um móvel em mente. Ele não tem nenhum fascínio especial pelas ferramentas, embora elas sejam importantes e imprescindíveis e, com certeza, ele pensa suas ações com as extensões de suas mãos que são as serras, réguas, pregos, martelos. Uma vez por ano ele talvez substitui ferramentas e estuda compras, ficando um ou dois dias envolvido com o fascínio por um aspecto menor de seu trabalho: mas depois ele volta a colocar a mente nos objetos que cria, não nas ferramentas.
Essa clareza precisa se estabelecer cada vez mais em termos dos dispositivos computacionais: o apego ou a aversão por o que não passa de ferramentas não faz sentido.
Consumidores de dependência
Mas ainda hoje temos a ideia da revolução digital como tendo a ver com equipamentos estilosos, símbolos de status, marcas e uma identificação da pessoa com um estilo de vida consumidor. No entanto, não é essa a verdadeira revolução digital, essa é a casquinha externa de alguns usuários.
Parte de mim ainda fica chocada quando alguém prefere um equipamento “para não se incomodar”, não interessando o preço muito mais alto que paga ou o fato de ficar preso em contratos e “ecossistemas” de informação extremamente viciosos e problemáticos.
Por exemplo, não poder deixar seu conteúdo digital para os filhos, quando morrer.
E o pior é que, quando as pessoas não desenvolvem heurística, elas sempre se incomodam, não interessa o quão “feita pra jacu” seja a interface. Entendo perfeitamente que a pessoa queira algo fácil e confiável, o que não entendo é que ela, por exemplo, ache mais fácil recorrer a um terceiro do que buscar uma solução no Google.
Digamos, como já vi ocorrer, o notebook não liga mais ao se apertar o botão: entre ligar para um número para falar com um atendente possivelmente, er… pouco treinado ou primeiro tentar achar na internet alguém com um problema semelhante, qual você preferiria?
Uma busca rápida mostra que retirar a bateria, pressionar o botão por 20s e recolocar a bateria resolve o problema. Menos de um minuto e não foi nem mesmo necessário buscar o número nos manuais, sem falar em ligar para um atendimento possivelmente demorado, confiando em que a deusa do destino ofereça um atendente articulado e que saiba encontrar a mesma informação, se é que ela já foi registrada pela burocracia da empresa.
Não é uma escolha difícil. Ainda assim, tem gente que pensa enviesado e, talvez por uma mentalidade paternalista de “alguém tem que resolver isso para mim porque eu paguei”, que exige tudo mastigado, ou por medo/preguiça de ser independente e pensar por si mesma, ela evita o caminho mais direto para uma solução.
O que é vendido com a conveniência, no mais das vezes, é dependência e infinitos serviços embutidos.
As pessoas ficam, por exemplo, sem suspeitar de nada, satisfeitas ao comprar um smartphone que requer um software especializado para que se coloque qualquer documento dentro dele. Tudo precisa passar e ser catalogado por esse software xexelento que empurram goela abaixo. (i.e. iTunes, o ápice do bloatware e intervenção corporativa na vida privada). Ou, no outro smartphone, você pode usar um gerenciador específico, mas também pode simplesmente operar tudo como se fosse um pen drive.
Algumas pessoas vão preferir o software xexelento exatamente porque ele é proprietário. E quando elas finalmente aprenderem a usar aquilo, então elas não querem qualquer outra coisa.
É heroína computacional, a Apple (e outras, ninguém é santo) é seu traficante. É exatamente para isto que as empresas vendem a conveniência e o conforto: para criar dependência. Elas estão explorando os deficientes tecnológicos, aqueles que, por um motivo ou outro, nunca vieram a desenvolver uma heurística no lidar com interfaces.
Fique ligado: a Casa Branca acabou de receber o número de petições necessárias (no seu site, que é um experimento de democracia direta) para que ela reexamine ou ao menos dê uma resposta para o fato de que agora é ilegal você desbloquear ou ser o administrador final do software de seu celular. Isso quer dizer que é o fabricante que tem poder sobre o uso do que você compra: em outras palavras, você tem um computador no bolso, mas esse computador só executa as tarefas autorizadas pelo fabricante.
Com nenhum outro produto é assim: se você compra uma saia e quer recortar e usar de bandana, o fabricante não tem nada a dizer. Mas cada vez mais a legislação converge, de forma a saciar o lobby sedento da indústria de TI, na criação de formas cada vez mais espúrias de transformar a sua compra numa assinatura, sua aquisição num aluguel, limitando o seu dispositivo de computação, supostamente universal, de acordo com suas necessidades de mercado.
A digitalização do consenso
Isso parece ter apenas algumas consequências particulares para o conforto da pessoa e, enfim, ela está disposta a pagar para “não se incomodar” (corolário: você sempre se incomoda se não tem heurística). O fato de algumas pessoas preferirem regimes abertos é tido como uma opção ideológica ou política e não como uma consequência lógica natural! Num mundo focado na informação, nossa garantia perante sermos explorados pelas grandes empresas é a transparência.
Tudo é movediço: determinar o monopólio de um produto digital é extremamente difícil e os lobbies são fortes, as legislações de todo tipo, não só as de direitos intelectuais, são alteradas na base do poder coercitivo da bufunfa. A lei de patentes atual é ridícula e, cada vez parece ficar mais ridícula. As leis de copyright não lidam mais com as realidades técnicas ou com as realidades de comunidades e interações sociais que se formaram.
Em longo prazo, o que vemos é que pessoas para quem nada é complicado demais, em termos de Tecnologia da Informação, na medida em que as interfaces se padronizam, tenderão a se tornar mais raras.
Aos poucos, uma nova e pouco óbvia concentração de poder nas mãos de poucos vem ocorrendo: o vigilantismo/ativismo do Anonymous, o Wikileaks, o The Pirate Bay – manifestações em que grupos pequenos se tornam importantíssimos players na economia e geopolítica do planeta.
Mais do que isso, o malware e os “ataques hacker” não são algo que infecta apenas seu computador. E, particularmente, não são algo que apenas se aproveita de deficiências na segurança de equipamento eletrônico e programas. Os malwares e outros ataques (vírus, trojans, e coisas que invadem sua mente, como ideologias e publicidade) se aproveitam muito mais do fato de que os usuários não desenvolveram heurísticas do que do fato de todos os sistemas possuírem falhas.
A principal forma de violação de sistemas, a mais fácil, cada vez mais vai ser a engenharia social – obter informações no trato com as pessoas, não com as máquinas.
E quando alguém repassa aquela informação errônea no Facebook ou participa de suposto concurso para ganhar um iPad ou clica na publicidade enganosa que diz DOWNLOAD em letras garrafais no site de Torrent, em vez de usar o link discreto que o site provê, isso tem a ver com essa pessoa não ter desenvolvido heurísticas. Se nos preocupamos com hackers violando nossa conta bancária, precisamos ficar espertos.
Para ficarmos espertos, precisamos desenvolver malemolência heurística ou ao menos aprender a usar tudo que se aprende para aprender mais.
No mínimo, para que não sejamos reincidentes em compartilhamentos infelizes nas redes sociais, aprendamos com o primeiro erro a verificar a informação. Não reclamemos dos convites para aplicativos e eventos: sejamos rápidos em aumentar a lista de bloqueio com relação a essas coisas.
Isso é o mínimo dos mínimos.
Cory Doctorow monta um cenário apavorante de quando nossa retina artificial estiver operando com um app proprietário ou quando as corporações jogarem publicidade diretamente no nosso córtex. Mas além do ativismo digital que pode impedir essas coisas (as assinaturas para a Casa Branca se posicionar), isso também faz parte de aprender a viver num mundo ampliado (uso o termo, ainda que o Google tenha abandonado a terminologia publicitária “realidade ampliada”, por algum motivo).
Sua sanidade e sua liberdade dependem diretamente do desenvolvimento da heurística, se estamos falando de um mundo de computação ubíqua. A heurística da mente montada no foguete da computação é tanto sobrevivência quanto ativismo, integração com o mundo e trabalhar por ele.
Extensões do corpo e da mente
Alguns teóricos falam da singularidade, quando máquinas e homens entrarão em simbiose total, nossas mentes microchipadas, nossos corpos cheios de próteses para substituir órgãos danificados, ou simplesmente para sermos capazes de feitos impossíveis com nosso corpo biológico.
Soa ficção científica, mas eu argumentaria que esse nível de interação máquina e homem é quase uma caricatura perante o que já está ocorrendo, se olharmos direito.
O importante não é que o Google Glass e a computação ubíqua estejam prestes a acontecer, o importante é que nossa mente esteja pronta, tenha sido treinada para essa realidade e para um possível bom uso dela. Uma retina artificial talvez não seja tão impressionante quanto aprender a procurar no Google, e com isso, aprender a pensar em tempo real junto com a máquina e o todo da cultura representada pela web.
Há muito o que criticar em Steve Jobs (sou fã de Wozniak, Jobs foi um mero marqueteiro), porém ele foi particularmente brilhante quando disse que os computadores pessoais eram como bicicletas para a mente.
Essa visão do computador não é comum hoje porque temos uma visão cínica da coisa toda, afinal, a tela nos consome. Temos a impressão de que vivemos vinculados demais a esses dispositivos de comunicação/armazenamento e tantas outras coisas. Parece que perdemos tempo, e muitas vezes realmente perdemos. Sem dúvida, se olharmos o que as pessoas no passado faziam sem a máquina, parece que fazemos muito pouco.
Mas não precisa ser assim. Podemos usufruir, por meio da heurística, de uma tremenda ferramenta amplificadora da reflexão, do aprendizado e da interação com outros. Essa interação não é o mero chat, mas ocorre tanto com as pessoas vivas hoje quanto na cultura com os resquícios do passado. E, porque não, com o acúmulo e a organização de nossos conteúdos e expressões, pode continuar a ocorrer através da influência nas consciências (humanas ou outras) num futuro indefinido.
Fazemos parte de um tecido infinito de gemidos de dor e gozo, de informações e confissões: poeira de estrelas que acorda para seu lugar no substrato definitivo de tudo. Ou ao menos pode acordar.
Porém, é preciso repetir que viver e prosperar com a máquina de forma simbiótica tem aquela curva de aprendizado. Meramente sentar na frente de uma tela e “surfar” (veja a escolha midiática da terminologia) uma série semialeatória de sons, imagens e texto, vai simplesmente nos levar à fadiga. Para pensar com o computador, para andar na bicicleta ou foguete da mente, precisamos certo aprendizado específico – precisamos desenvolver essa heurística particular.
Ela não é automática.
E ela envolve muitas coisas diferentes: economia da atenção (usar um bloqueador de publicidade, por exemplo), gerenciamento de listas de afazeres, organização quase obsessiva de dados e anotações (referências), aprendizados específicos como o que é dado no Google Power Search, curso de busca do Google (existe uma curva para usar a busca de uma maneira otimizada) e até coisas como programação de computadores propriamente, incluindo teoria da informação: hierarquia, taxonomias, categorização, teoria de conjuntos, lógica, filosofia da mente, ciência cognitiva.
Existe uma sinergia no desenvolvimento de todas essas noções (e muitas outras). Isto é, ao aprender uma, todas as outras se tornam mais fáceis. É uma feliz mistura de disciplina, criatividade e a interação intensa entre cultura, as máquinas e a consciência deixa um rastro palpável no mundo e no tempo.
Há comentários que, para o bem ou para o mal, fiz em fóruns em 1995 e ainda estão no ar: hoje, com as redes sociais, vivemos um presente estendido.
A primeira coisa que precisamos ensinar às crianças é que elas já estão construindo uma presença no mundo – e isso é assustador, é claro, mas também é revigorante. É um convite a refletir a vida desde o início, uma chamada à responsabilidade.
Obs do editor: o Fabio Rodrigues escreveu, na última semana, o texto “Por que transformamos tudo em zoeira?”, cuja a imagem peguei emprestada para essse artigo que que pode servir bem como uma leitura complementar desse trecho do raciocínio do Pinheiro.
Upload total e meios inusitados de resgate do que importa
A excelente série de ficção científica britânica Black Mirror (episódios não interligados, isto é, uma historia por episódio) iniciou sua segunda temporada com uma noção menos exagerada da singularidade kurtzweiliana de “upload de nossas consciências na máquina imortal”: nossos descendentes terão a disposição um vasto volume de fotos, comentários e pegadas culturais.
E podemos pensar “quem vai vasculhar esse porão empoeirado do passado?”, mas a busca também se sofistica: esse episódio dá um vislumbre do que seria um chatterbot que, por meio de um algoritmo, imita um morto com base nas suas pegadas sociais (e privadas, se damos acesso). Ninguém fala em consciência artificial nesse episódio, embora isso talvez não seja uma impossibilidade. Porém, o mero fato de que podemos tratar todos esses dados de um jeito interativo já é suficientemente abismal e impactante. E isso é plenamente possível: os chatterbots são programáveis, surgem com certa personalidade, e muitos deles enganam (tecnicamente: passam no teste de Turing) pesquisadores treinados por vários minutos – e pessoas normais por várias horas.
Obs: dei aqui um pequeno spoiler do episódio, mas há nele desenvolvimentos que vão surpreender.
O único salto no seriado é um chatterbot “feito sob encomenda” ou talvez um algoritmo que automatiza isso. Um personagem comenta sobre o morto dizendo que “ele é perfeito para esse serviço, era um usuário intenso de redes sociais”: o algoritmo estuda os padrões de fala/escrita através de uma grande amostragem e produz um simulacro com que se pode conversar. É como uma foto que nos lembra de alguém querido, mas é dinâmica como um jogo de computador.
Estive ouvindo um curso sobre Geoffrey Chaucer, um escritor inglês medieval (baixei via torrent e ouço no meu smartphone, 7h no total). A sua obra principal sobreviveu em fragmentos e é impressionante ver o quanto certos eruditos especializados (como Terry Jones, do Monty Python) amam este homem que viveu 600 anos atrás, com base em alguns poucos fragmentos copiados por escribas preguiçosos, incompletos e cheios de inconsistências e que, muito por acaso, sobreviveram esse tempo todo.
Há também, é claro, a antiguidade grega ou os textos religiosos de várias tradições que são ainda mais rarefeitos em suas fontes originais e talvez ainda mais amados em sua capacidade de ainda comunicar coisas muito importantes.
Tememos que a avalanche de informação de baixa qualidade que hoje existe acabe por não produzir nenhum grande gênio ou pessoa de interesse universal ou que se venha a produzir, talvez, a percamos como uma agulha em um palheiro de fotos de gatos e piadinhas de referência à baixa cultura. Porém, também pode haver heurística no SEO (optimização de máquina de buscas, o estudo que se faz para colocar um site no alto de uma busca) da produção cultural.
Podemos não ser capazes de ver hoje quem se ressaltará, quem terá apelo duradouro, mas cada vez teremos algoritmos mais poderosos que hoje, talvez, nem sejamos capazes de prever, para garimpar o que realmente é relevante numa massa exponencialmente crescente de dados brutos, histórias pessoais e vidas intelectuais e dados brutos sobre o comunicação entre as pessoas e o mundo.
Em particular, sempre haverá um pequeno grupo de pessoas para quem cada um de nós terá relevância, talvez por um longo tempo depois de nossa morte, quem sabe.
Mesmo se não consideramos as pessoas extraordinárias e futuros longínquos, navegar o mundo como ele é hoje já exige um grande grau de flexibilidade mental e capacidade de aprendizado fluído, sem nenhuma expectativa sobre grandes realizações, meramente para não afundar em ainda mais confusão e perda de tempo.
A mente fora da cabeça
Quando era criança, eu via os adultos comentarem sobre as calculadoras, sobre como não se usava mais a cabeça para fazer aritmética e como isso empobreceria a educação. Esse tipo de discurso segue: está tudo no Google, as crianças copiam seus trabalhos da Wikipédia, etc.
Porém, o que importa cada vez mais é exatamente o desenvolvimento das heurísticas e não dados e aprendizados mecânicos. Assim, podemos nos focar no que os seres humanos fazem bem. Podemos acusar o uso excessivo de carros por alguma responsabilidade na epidemia de obesidade (entre muitos outros fatores mais importantes), mas ninguém vai negar o fato óbvio de que há distâncias e tempos de deslocamento que só são possíveis com veículos motorizados.
Então podemos treinar aritmética na escola, exatamente como quem faz cooper: não para ir a algum lugar, mas para manter o corpo bem e ser capaz de outras atividades. Se queremos atravessar um oceano, não temos vergonha de nossas pernas não funcionarem como um avião.
Essa discussão chega a ser ridícula.
Mais do que isso, há bons argumentos filosóficos mostrando que nossa mente não está dentro de nossa cabeça. Nem mesmo os “conteúdos” dela. Nunca estiveram. Temos uma forte noção de que os conteúdos mentais estejam armazenados em algum lugar “aqui dentro”, porém, isso não é necessariamente assim. Os conteúdos mentais estão principalmente na interação com outras pessoas, no papel e, hoje, também nas máquinas.
Isso que temos “dentro da cabeça”, se é que faz sentido colocar assim, é difícil dizer, talvez seja uma representação bastante rudimentar de referências que temos no mundo e possivelmente seja a parte menos importante. Da mesma forma que imaginamos engrenagenzinhas eletroquímicas operando aqui dentro, lá fora, os sentidos interagem uns com os outros (posso descobrir que estou errado, mas alguém pode me mostrar isso também). Na verdade, os fatos por si só podem fazê-lo.
Pensamos com as palavras de outros, as premissas e implicações de outros, para conclusões de/ou para outros. Normalmente vivemos sob a ideia de que nossa vida está centrada atrás de nossos olhos e damos a maior importância para essa posição. Um teatrinho no qual nosso corpo é o cenário mais próximo e o resto do mundo o cenário mais distante.
Mas não precisamos acreditar nisso.
Tudo que falamos e fazemos converge em ondas por todos os mundos. Como o som de um sino que não é abafado, não sabemos precisar quando o som cessa. Essa parte a que damos tanta atenção e que acreditamos ser a plateia principal do mundo não é muito mais do que um termostato, um saco morno de químicos com pequenas tempestades elétricas coberta de couro, pelos e uma casca durinha: o que realmente importa, a parte de nossa mente que realmente existe de uma forma significativa, está lá fora, nos outros, no mundo.
E você se pergunta:
“Como, num texto sobre uso de máquinas, acabamos em considerações de filosofia da mente?”
O ponto deste texto é que alguns de nós usam os dispositivos computacionais, outros dançam com eles.
Desenvolva a heurística
A capacidade heurística é uma característica humana que do lado positivo pode ser descrita como a arte de descobrir e inventar ou resolver problemas mediante a experiência (própria ou observada), somada à criatividade e ao pensamento lateral ou pensamento divergente.
Como descrito acima, seja de forma deliberada ou não, heurísticas são procedimentos utilizados quando um problema a ser encarado é por demais complexo ou traz informações incompletas.
De forma inconsciente é praticada sem que muitas vezes os indivíduos se deem conta do processo. No geral, pode ser considerada como um atalho aos processos mentais, sendo assim uma medida que preserva e conserva energia e os recursos mentais. A heurística pode funcionar efetivamente na maioria das circunstâncias em que é aplicada conscientemente.
Fonte: Wikipedia
Não se deixe levar pelas próprias crenças com relação a quão íngreme é a curva da total imersão na singularidade de cultura, máquinas e consciência. Não se prenda a ideias apocalípticas ou de ingenuidade neófila perante a realidade: não há nada de inerentemente bom ou ruim em ferramentas, interações, conteúdos.
O mais importante é saber encarar esse mundo como uma caixa de areia (uma metáfora muito utilizada na programação), onde você pode tentar várias coisas e, aos poucos, desenvolver um estilo próprio, critérios e métodos.
Sua motivação é pertencer ao mundo como ele é. Não ficar para trás na história, não perder o bonde, não sair da casinha, não viajar na maionese.
“Eu sou assim, o mundo não me entende, não pertenço ao mundo.” O mundo hoje são as máquinas, e não estou dizendo que precisamos coadunar com as ideologias e os governos ou o que um sociólogo chama de “realidade”: vivemos uma comunidade estendida e com tudo que podemos precisar em termos de informação, e muito mais, na ponta dos dedos.
A realidade com que temos que nos acostumar é a da necessidade da heurística. Filtrar, tratar, interpretar, descobrir, utilizar, alterar, criar.
Tudo isso depende da capacidade de acelerar e tornar dinâmico o processo metodológico de aprender e interagir.
É muito triste ver um jovem hesitando perante a tecnologia. É talvez mais triste do que ver alguém supostamente viciado na velocidade deste novo mundo, ou que pensa haver “duas realidades” operando, uma aqui na tela e outra lá fora. Ledo engano.
É só uma questão de prioridades e de encarar também a cultura como um todo (não só o nicho pequeno de amigos). Quem não dá alt-tab, quem não usa adblock, quem não baixa torrent, quem não experimenta serviços e conteúdos e os mantém ou abandona de acordo com critérios cada vez mais refinados, quem não lê, quem não ouve, quem não vê, quem não pensa… Carpe diem, tempus fugit.
Cada vez maiores as oportunidades a não desperdiçar, cada vez mais fugidio o tempo.
OBS: GD;NL “grande demais; não li” é a tradução de TL;DR: “too long; didn’t read”. Lá no início do texto, lembra?
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.