Ê! Ê!
Ele não é de nada
Oiá!
Essa cara amarrada
É só!
Um jeito de viver na pior

 

Não tenho dúvidas que meu pai é a pessoa mais forte que conheci. É fácil dizer quando você é filho, mas ninguém que conviveu com ele é capaz de colocar isso em dúvida.

Foram mais de 20 anos de uma intensa luta. Foram enfartes, 11 anos de hemodiálise, hérnias, derrame e um punhado de tantas outras coisas que deixariam qualquer um tonto. A lista nos transformaria em covardes e isso não ajuda em nada.

Prefiro falar aqui de coisas sobre ele que poucos saibam e que mostram ainda mais quem ele era. Há sempre aquilo que somos e que não damos a mínima em exibir ao mundão exterior.

Quando eu era moleque, o Seu Valdir já não tinha muita saúde para jogar bola comigo. Evitava, talvez, pelo trauma que tirou dele a possibilidade de se tornar um atleta profissional. Cheguei a escrever sobre isso aqui mesmo no PdH. Mas ele me ensinou cada batida na bola: trivela, chapa, peito de pé. E aprendemos juntos que o futebol é um exercício de respeito entre os rivais, de democracia. Dá para ver virtudes nos adversários sem precisar vê-los destruídos. Fomos rivais leais por 32 anos. E em nenhum momento ele me forçou a ser quem não era. Eu, tricolor, e ele, corintiano. Corintiano até os ossos, vale reafirmar.

Meu pai nunca foi de demonstrar afeto em público. Imagino que por isso tenha decidido me ver ser campeão escondido. Chegou já com o jogo rolando e saiu antes do fim da partida. Nem me viu de medalha no peito e sorriso no rosto. Em casa, disse que fui bom goleiro e nada mais: “Tem de estudar”. Eu entendi a mensagem. Jogador eu jamais seria, pai.

Registro de 1986, ano em que nasci: Era a despedida do ex-atleta da vida futebolística
Da esquerda para a direita: Gu (meu irmão), meu pai e eu em Serra Negra, no interior de SP

Falando em aula, o Valdir que ele escondeu de todo mundo cozinhava todos os dias para eu ir à escola. Na vida de recém dono de casa após ser aposentado pelo INSS, tentava se virar, mas o chef Seu Valdir não era melhor que o meu futebol, não. Desculpe a sinceridade, pai. Eram almoços cheios de salsicha, sardinhas, Chickenitos e coisas do tipo. Cardápio de horrorizar os pais dos anos 2010.

Ele era ainda pior pilotando a máquina de lavar: Certa vez, foi tentar lavar o uniforme da escola e a camiseta branca foi tingida inteira de rosa. Minha mãe ficou puta, mas até hoje acho que ele tentou o que podia. Nessa estou contigo, pai. Sem instruções, fica difícil acertar nessa vida. Nem lavar roupa é tão simples assim.

O Valdir que muitos não conhecem foi um cara amado pelos amigos. Varou muitas noites jogando truco, bebendo cerveja e sendo um cara provocador, competitivo e extremamente inteligente. Eu, ainda muito pirralho, ficava lá com ele na mesa do baralho até o dia raiar. Aos 12, eu já metia a truqueiro também.

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Meu pai adorava dizer que amigo dele não tinha defeito. Mas tinha o outro lado também: “Inimigo, se não tiver defeito, eu arranjo um”, falava, querendo bancar o Cara Valente. Mas, enquanto a vida lhe deu saúde, ele sempre esteve repleto de gente que gostava demais dele. Ele ria, contava piada, divertia, unia e congregava. Era quem organizava os torneios esportivos do trabalho, as viagens de final de ano e as visitas a São Roque com um batalhão de gente e de carros. O Seu Valdir nunca passou despercebido, não importava a ocasião. Ele se fez notar durante a vida toda. E como falava, nossa. Dê um telefone na mão dele e você vai achar que jamais viu um caso de amor tão intenso.

Gosto de pensar que a vida é um filme, não uma fotografia. É uma película de nós mesmos que nos convida a atuar em todos os gêneros, do drama à comédia. Me conforta pensar isso do meu pai, já que de uns anos para cá, a fotografia era muito dura de enxergar: o corpo marcado, o rosto fundo, o braço esquerdo com a fistula saltada, a honrada companheira que o fez viver 11 anos, desafiando os prognósticos médicos mais otimistas. São as marcas dessa guerra que é a vida. E o corpo dele foi um duro campo de batalha.

Mas se viver é estar num filme, no meu roteiro vai ficar para sempre a lembrança dele chegando do trabalho e eu correndo para brincar de balanço. Ele abria as pernas e os braços dados eram a minha balança. Aí eu projetava o corpo por entre as pernas dele. O Seu Valdir era meu equilíbrio, meu contraponto. Era pra ele que eu sempre ligava para resolver problemas ou para tentar tirá-lo da realidade tão dura do dia a dia. Magicamente, ele sempre tinha uma boa ideia para os meus problemas. Magicamente, ele não pirou com todas as limitações que a vida insistiu em colocar como barreiras. 

No meu filme, o cara bravo, nervoso, era quem, na realidade, sempre me deitava e me cobria todas as noites, colocando uma almofada na parede para eu dormir quentinho sem pegar friagem. E era ele quem eu acordava quando não tinha sono ou estava com medo de algum sonho ruim.

Como todo filho, também esperei para receber aquele empurrãozinho na vida

É esse pai, o que chorava a cada Natal e aniversário, que é o herói do meu filme. Um cara que, de tão forte que sempre foi, me ensinou que a vida é muito frágil. Foi sobre isso que a gente divagou na nossa última – e sempre longa – conversa ao telefone: “Esse negócio de Super-Homem não dá”, ele chegou a dizer, tirando a capa que é pesada demais para qualquer um. É que, pai, não é a força que nos une, mas capacidade de ver quão sútil é a nossa existência.

Descansa aí, meu velho. Vá em paz. Espera só eu arrumar o travesseiro e a coberta. Que hoje sou eu que não quero ver você sentindo frio.

Rafael Nardini

Torcedor de arquibancada, vegetariano e vive de escrever. Cobriu eleições, Olimpíadas e crê que Kendrick Lamar é o Bob Dylan da era 2010-2020.