Nota editorial: somos a favor da liberdade de escolha. Esse artigo não é uma receita de como viver. É uma reflexão, baseada em nossa experiência em contato direto com milhares de homens ao longo de 13 anos, sobre o que costuma acontecer quando alguém vive para sempre como um adolescente, obcecado por festas, drogas e sexo. Você continua livre para fazer isso, se quiser.

Explicar a popularidade de Dan não envolve apenas uma reflexão sobre masculinidades. Naturalmente passa por questões estruturais sócio-históricas e psicológicas profundas. O artigo se propõe a fazer um recorte. Os demais temas foram abordados exaustivamente ao longo de nossos 13 anos (aqui nosso arquivo).

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Estamos vivendo um tempo no qual o masculino está adoecido. 40% dos homens se declaram solitários sempre ou com muita frequência; 24% afirmam estar viciados em pornografia; 51% dizem lidar com ansiedade alta ou extrema; e 23% afirmam estar depressivos atualmente.

Todos os dados são de nosso estudo nacional "O silêncio dos homens", que escutou mais de 40.000 pessoas em 2019.

Essa é a paisagem capaz de dar nascimento a triste popularidade de Dan Bilzerian. 

Quando não temos direcionamento interno, qualquer bússola, por pior que seja, parece boa o suficiente para nos guiar.

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Índice:

  • Dan é um menino-homem de quase 40 anos

  • A caixa dos homens: como alguém pode desejar ser como ele?
  • Atacar Dan com todas nossas forças vai aumentar o problema
  • Como fazemos essa ilusão de "felicidade masculina" se esvaziar de sentido?
  • Mas meus amigos odeiam quando falo sobre o assunto, mesmo sendo afetados negativamente por essa ideal de masculinidade limitada e destrutiva. Por que é tão difícil mudar?
  • Qual o papel do jornalismo nisso tudo? Afinal, parte do que tornou Dan famoso foram inúmeras matérias em revistas masculinas ao longo dos anos.
  • Homens como ele podem aprender e mudar?
  • Você se considera moralmente superior por escrever esse artigo?
  • Quero deixar de ser um menino-homem. Como posso dar o primeiro passo?
  • Nos apoie. Seja um membro da Jornada PdH.

Dan é um menino-homem de quase 40 anos

Herdou alguns milhões de seu pai, Paul Bilzerian, um criminoso do colarinho branco que guardou o dinheiro sujo por meio de fundos estabelecidos nos anos 90 – em uma época na qual que devia dezenas de milhões de dólares para o governo norte-americano. 

Dan supostamente fez alguns outros milhões jogando pôquer. Fora isso, mantém uma persona pública especializada em performar o extremo da insegurança masculina.

Suas fotos são uma coleção de mulheres seminuas, carros, tanques, drogas, banquetes e festas.  

O volume de seus seguidores nas redes sociais nos sinaliza a quantidade de homens que seguem presos na quinta série mental. Imaturos, confusos, incapazes de dar valor às mulheres ou a si próprios, se anestesiando com álcool, games e drogas.

Dan. Menino-homem.

Semana retrasada Dan virou alvo (novamente) de críticas por conta de sua constante objetificação das mulheres e casos de violência contra elas ao longo dos anos. Já quebrou a perna de uma mulher de 18 anos em uma festa na sua casa, ao arremessá-la na piscina. Chutou a cabeça de outra e foi banido de uma boate por isso. Sofreu dois infartos seguidos aos 25 anos, por uso excessivo de viagra e cocaína, em meio a quatro dias de festas.  

Seu modo de viver não parece ter mudado hoje, aos 39. Segue infantil e auto-destrutivo.

Tão triste quanto sua maneira de viver é a quantidade de atenção recebida por ele. Por isso me dói escrever esse texto. O faço na esperança de que possa se tornar um espaço de diálogo para as profundas transformações necessárias na maneira como vamos criar nossos meninos para o futuro.

A caixa dos homens: como pode alguém desejar ser como ele?

O conceito da "Caixa dos Homens" — proposto inicialmente pelo educador Paul Kivel, nos anos 80 — nos ajuda a compreender a trágica popularidade de Dan. Leia aqui nosso artigo explicando em mais detalhes a origem da caixa dos homens e como utilizá-la de modo reflexivo.

Estamos falando de uma caixa que representa regras de comportamento que todo homem deveria seguir para, supostamente, ser "aceito" por outros homens.

Regras como:

  • Ser dominante e agressivo

  • Nunca demonstrar fraqueza

  • Evitar expressar emoções e sentimentos

  • Nunca fazer coisas de mulher

  • Heterossexualidade compulsória

  • Buscar sexo a todo momento

Link Youtube

Dan performa tudo isso em suas publicações digitais. Basicamente age como um adolescente não supervisionado, com uma conta bancária infinita e sem quaisquer referenciais de masculinidades responsáveis ou saudáveis.

Ele é um homem adoecido, idolatrado por homens cuja identidade é uma noção de masculinidade igualmente adoecida. 

Não temos rituais de passagem. Os meninos conversam cada vez menos com os pais. A mídia piora o problema, pois, em sua busca por audiência, segue populando capas de revista e programas de TV com homens que agem como meninos mimados.

Nosso país é governado por um homem que age como criança, que nega a ciência, não escuta especialistas e diz que "usar máscara é coisa de viado". Isso dá uma medida do tamanho do problema.

Todo esse cenário cria um vácuo na construção das masculinidades.

Temos uma geração imensa de jovens distante dos pais, grudada nas telas do celular e dos computadores, povoando fóruns de discussão na internet e canais de YouTube que defendem as visões machistas e sexistas possíveis, como uma espécie de "resgate e salvação" dos homens.

Dan não é o problema.

É apenas o sintoma de uma cultura masculina adoecida. 

Sintoma também de nosso esquecimento em educar os meninos para o futuro, à partir de uma compreensão profunda da construção psíquica das masculinidades. Esse esquecimento não diz respeito a uma falha ou culpabilização das mães, importante frisar. Sinaliza que carecemos de reflexões sociais mais aprofundadas sobre como iremos, pais e mães, homens e mulheres, juntos, oferecer outros referenciais de masculinidades a nossos meninos. 

Em seus livros, a ativista, professora e escritora Bell Hooks nos diz:

"Uma visão que ama garotos e homens exige, em nome deles, todos os direitos que desejamos para garotas e mulheres."

Atacar Dan Bilzerian com todas nossas forças não vai acabar com o problema

No dia 29 de junho Dan viralizou na internet brasileira, por críticas a seu comportamento. De lá pra cá, recebeu um pico de novos seguidores:

Fonte: Trackalytics

Aposto minhas fichas em direcionarmos mais de nossa energia para a construção de uma cultura que torne a ideia de ser como ele algo bobo, desinteressante e ridículo, mesmo para o mais infantil dos homens.

Se ele tem 31 milhões de seguidores nas redes sociais é porque 31 milhões de mentes admiram a paisagem na qual ele vive.

Esvaziando a ilusão de "felicidade masculina" dessa paisagem, a raiz que sustenta Dan vai desaparecer.

Onde estão os homens com 31 milhões de seguidores que são exemplos vivos de masculinidades mais saudáveis, possíveis e responsáveis?

Deixo essa pergunta como uma reflexão e um chamado para que a gente possa construir essa outra realidade.

Um exemplo espontâneo dessa mobilização positiva foi a grande quantidade de perfis de mulheres no Instagram recomendando projetos que tratam dessas masculinidades, para que mais pessoas ficassem sabendo que há outros jeitos de ser homem ganhando força no mundo. O @papodehomem foi indicado em inúmeros stories, junto de contas como @prazer ele, @projeto.memoh, @masculinidade.saudavel, @omachodarelacao, @umhomemflorista, @ismaeldosanjos, @brotherhoodbrasil, dentre várias outras.

E como fazemos essa ilusão de "felicidade masculina" se esvaziar de sentido?

O começo é nós mesmos não nos deixarmos enganar pela paisagem que seduz Dan. O quanto fantasias de uma adolescência sem fim povoam sua mente e suas aspirações?

Leia também  O poder da amizade masculina | Os Homens na Academia #3

Iniciar arrumando nossa própria cama e cozinha emocional são ótimas ideias. Sair pregando e apontando o dedo como justiceiros enquanto agimos como crianças às escondidas não adianta.

O início de uma postura responsável na vida é a auto-responsabilidade.

Cortar o papo furado de "bom, eu não sou tão cuzão quanto esse cara, então acho que tô liberado da responsa, tchau, vô ali jogar Counter Strike".

Outra rota pode ser homens que já têm essa clareza ajudarem seus amigos a fazer essa caminhada — já que um dos reflexos da cultura machista é homens escutarem mais quando outros homens falam. Conversas um a um costumam ser melhores do que trocas em grupos de whatsapp. Uma ligação ou uma videochamada seguida de um diálogo sincero, vulnerável e não professoral pode ser algo bonito a oferecermos para nossos amigos.

Por fim, sugiro aos homens começarem a ler, seguir e escutar mais mulheres. Seja pegando um livro, escutando um podcast ou acompanhando perfis nas redes sociais.

Ler Bell Hooks, Djamila Ribeiro, Simone de Beauvoir, Chimamanda Ngozi Adichie, Marcia Tiburi, Maria da Penha, dentre outras tantas mulheres incríveis.

Há muitas possibilidades. É chave mais homens assumirem sua responsabilidade na mudança, não deixando o fardo para as mulheres.

A chave é colocarmos a mão na massa. Primeiro passo dado é melhor que primeiro passo perfeito.

Mas meus amigos odeiam quando falo sobre o assunto, mesmo sendo afetados negativamente por essa ideal de masculinidade limitada e destrutiva. Por que é tão difícil mudar?

Não é fácil nos desvencilhar de nossa identidade, por mais que ela nos gere sofrimento.

Nossa cultura ainda educa boa parte dos homens para serem máquinas de músculos, performance sexual, apatia emocional e acúmulo de riqueza. 

Se desejamos que esses estereótipos sejam deixados de lado, creio ser importante oferecermos outras narrativas possíveis para as masculinidades.

Em paralelo ao processo de apontar os problemas e criticarmos o que falta, é essencial jogarmos luz em narrativas que nos apresentem homens que cuidam, homens que sentem, homens com postura anti-assédio, anti-racismo, anti-pornografia. 

Qual o papel do jornalismo nisso tudo? Afinal, parte do que tornou Dan famoso foram inúmeras matérias em revistas masculinas ao longo dos anos.

O jornalismo tem boa parte da conta nessa confusão. Nos últimos anos a GQ Austrália publicou 19 matérias sobre Dan, a Esquire publicou 78 e a Maxim 164 artigos.

Se os líderes editoriais de algumas das revistas masculinas mais lidas do mundo continuam "achando legal" falar sobre Dan, é natural que os leitores dessas publicações compartilhem dessas crenças.

Há 13 anos atrás, quando o PdH nasceu, eu também me encantava pela ideia de viver em festas sem fim.

Um longo e árduo processo de mudança também aconteceu conosco. Éramos um veículo machista que nem se dava conta disso. Demorou cerca de 5 anos para acordarmos e trazermos em nossa pauta debates sérios sobre o que significa ser homem. 

Quando iniciamos essa mudança, cerca de 8 ou 9 anos atrás, fomos julgados falsos por boa parte das pessoas. Quem nos acompanhava achou que estávamos mudando pelo tema ter se tornado "tendência". Já as pessoas apoiadoras do feminismo, por exemplo, diziam que nosso passado nos condenava — e estavam certas. Mas seguimos adiante, errando e tropeçando, por julgar essa rota o único caminho possível para um projeto que defende a transformação benéfica das masculinidades.

Até conquistarmos a credibilidade nessa nova jornada, foram vários anos. Tivemos que amadurecer, estudar e crescer como pessoas. Então é necessário termos uma medida de paciência. E oferecermos um voto de confiança, ao mesmo tempo em que seguimos atentos.

Nosso processo segue, até hoje. Com frequência precisamos rever crenças, pensamentos e atitudes.

Se Dan deixar de ser interessante como pauta, boa parte de seu apelo vai murchar. Mudar as redações jornalísticas e seus critérios do que é notícia pode mudar o mundo.

Homens como ele podem mudar?

Nosso primeiro evento Homens Possíveis, em 2016.

Podem. Tenho confiança que mesmo nos contextos mais improváveis, a mudança é possível.

A questão é: qual será o motivador dessa quebra?

Quanto mais o homem está enjaulado nessa performance infantilizada, violenta e destrutiva, mais dura são as paredes da caixa e mais difícil será o processo. Essa quebra pode acontecer por diversos caminhos.

Em nossa experiência de 13 anos no PdH e no Instituto PdH, mapeamos alguns dos principais gatilhos de transformação dos homens, no que diz respeito às normas de gênero. Fizemos isso visitando e conhecendo iniciativas que trabalham com o tema em diversos locais do país. 

Os gatilhos são (não é uma ordem de prioridade):

  • Crise: luto, divórcio, doença, demissão, falência

  • Paternidade

  • Afeto

  • Espiritualidade

  • Exaustão profissional

  • Acesso a espaços seguros e de acolhimento

  • Exposição ao sofrimento das mulheres

  • Exposição ao sofrimento dos próprios homens

No caso de Dan, não sei o que seria necessário pra ele se transformar. Mas confio que seria possível. 

Você se considera moralmente superior por escrever esse artigo?

Não. Minha criação foi a própria caixa dos homens. Sou parte dessa cultura masculina viciada em sexo, poder, acúmulo material, curtição e festas. Viver isso foi meu desejo durante anos. E há momentos em que me reconheço agindo quase como um adolescente, sem falar nas fantasias escondidas que preferimos não contar a ninguém. 

Noto claramente uma tensão entre o que escrevo nesse texto e práticas que já tive ou que ainda me habitam, em menor medida. Seria hipócrita ao não reconhecer isso.

Entretanto, hoje oriento minhas práticas, laços de amizade e prioridades em outras direções.

Termos agido de modo tosco ou ainda notar ações toscas em nosso cotidiano não significa que devemos nos render a elas, relativizar tudo e ligar o foda-se. Crianças vivem guiadas por seus impulsos. E por isso necessitam de adultos por perto, para que continuem vivas e não ponham fogo em seus lares.

Ainda ter lapsos ou fantasias não significa que somos esses lapsos e fantasias. Podemos ter uma vida guiada por confusão 95% do tempo ou 10% do tempo. Temos escolha. Ao escolher como agir, dia após dia, construímos as estradas, paisagens e redes nas quais aspiramos existir.

E que deixaremos como herança para as gerações seguintes.

Quero deixar de ser um menino-homem. Como posso dar o primeiro passo?

Aqui temos alguns materiais que podem servir de introdução a essa longa conversa.

-> Documentário "O Silêncio dos Homens" | Assista aqui ao filme completo | Leia o artigo contando mais detalhes do projeto.

-> Documentário "Precisamos falar com os Homens?" | Assista aqui ao filme completo | Leia o artigo com mais detalhes.

-> Plataforma "Construindo pontes e derrubando muros: como conversar com quem pensa muito diferente de nós?" | Minidocumentário Ebook Construindo Pontes e Derrubando Muros Ebook “Como dialogar com homens sobre violência contra as mulheres” | Vídeos da plataforma

-> Como criar um grupo de homens, passo-a-passo

-> Curso básico de feminismo pra homens

Nos apoie e seja um membro da Jornada PdH:


ps.: a linha fina abaixo do título desse artigo é a mesma que usei no texto "As consequências da adolescência prolongada: o que aconteceu com o elenco de Jackass?", dois anos atrás. Ela segue atual.

ps2.: esse artigo utiliza trechos de uma entrevista recente que dei para a Revista Claudia semana, cujas aspas foram usadas no ótimo artigo de Isabella D'ercole.

Guilherme Nascimento Valadares

Fundador do PDH e diretor de pesquisa no Instituo PDH.