Uma das mais importantes teóricas sobre questões de gênero e raça, pensou a transformação a partir da interseccionalidade, abordando também a importância do amor em nossas revoluções.
Falamos da bell hooks ainda no ano passado, quando, infelizmente ela veio a falecer dia 15 de dezembro de 2021.
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Agora, dando início a nossa série de texto sobre mulheres que contribuíram imensamente para estudos de gênero — e assim aterraram os caminhos para todos aqueles que refletem e estudam sobre masculinidades — vamos falar um pouco mais sobre o trabalho de bell hooks (assim mesmo, em minúscula).
Nascida Gloria J Watkins, adotou o nome bell hooks em homenagem a sua bisavó e o escrevia sempre em letras minúsculas porque queria destacar que o importante eram suas ideias e não seu nome.
Foi uma das mais importantes teóricas sobre questões de gênero, feminismo e raça. Ela abordou a transformação social a partir de uma perspectiva interseccional falando sempre sobre a importância do amor em nossas relações e revoluções.
Foi pesquisadora, professora, escritora e ativista. Escreveu o livro “E eu não sou uma mulher?: Mulheres negras e feminismo” (1981) quando ainda era uma estudante universitária, nos anos 1970.
Na obra ela evidenciava como o feminismo dominante à época olhava apenas para questões que impactavam mulheres brancas, fazendo daquelas teorias pouco ou nada aplicáveis à realidade das mulheres negras. As mulheres brancas reivindicavam o direito ao trabalho enquanto mulheres negras há séculos eram vistas como trabalhadoras e, também, exploradas nessa condição.
Com uma obra teórica tão marcante, mais de 40 livros publicados, não se imagina que bell hooks quase abandonou os estudos por se sentir marginalizada nos ambientes acadêmicos — história que ela conta no livro “Ensinando a transgredir” (1994).
bell hooks é estadunidense mas se conectou com estudos da realidade brasileira através de Paulo Freire e a pedagogia do oprimido. Ela conta que encontrou na obra de Freire (apesar das lacunas quanto a questões de gênero) um caminho para dar voz a diferentes grupos minorizados.
“É fácil esquecer que o movimento feminista não era um ambiente que acolhia bem a luta radical das mulheres negras para teorizar sobre sua subjetividade. A obra de Freire (e de muitos outros professores) afirmava meu direito, como sujeito de resistência, de definir minha realidade. […] Mais que na obra de muitas pensadoras feministas burguesas brancas, na obra de Paulo havia o reconhecimento da subjetividade dos menos privilegiados, dos que tem que carregar a maior parte do peso das forças opressoras (exceto pelo fato de ele nem sempre reconhecer as realidades da opressão e da exploração distinguidas segundo sexo).” (hooks, 1994)
bell hooks entendia que que o movimento negro precisava levar em consideração questões de gênero, do contrário, desigualdades dentro das comunidades negras seguiriam vulnerabilizando as mulheres negras.
Ao mesmo tempo, ela entendia que mulheres negras se sentiam hostilizadas nos ambientes feministas uma vez que boa parte das ativistas brancas não demonstravam interesse ou dedicação em entender questões de raça, ao contrário, frequentemente faziam esforços para que o tema raça não entrasse na conversa:
“O apelo feminista contemporâneo pela irmandade feminina, o apelo das brancas radicais para que as mulheres negras e todas as mulheres de cor entrem no movimento feminista é visto por muitas negras como mais uma expressão da negação, por parte das mulheres brancas, da realidade de dominação racista, de sua cumplicidade na exploração e opressão das mulheres negras e dos negros em geral. Embora o apelo pela irmandade feminina seja frequentemente motivado por um sincero desejo de transformar o presente, expressando vontade das brancas de criar um novo contexto de vinculação, não há tentativa de assimilar a história ou as barreiras que podem tornar essa vinculação difícil“ (hooks, 1994)
Com um olhar afiado e crítico, a professora enxergava e apontava caminhos para superar as desigualdades e o apartamento dos grupos sociais. As ferramentas para isso seriam o diálogo sincero, a escuta, o debate construtivo e o amor. Ela propunha
“Debate e discutir sem medo de entrar em colapso emocional, onde possamos ouvir e conhecer umas às outras nas diferenças e complexidades das nossas experiências – a criação de um tal contexto é essencial”.
As contribuições de hooks foram incontáveis. Sua obra é significativa tanto para a equidade de gênero e raça quanto na educação.
Ela defende que o ambiente de ensino não seja uma transmissão impositiva de conhecimento de cima para baixo. Professoras e professores não devem impor um conjunto de conhecimentos, mas guiar os alunos por um caminho de curiosidade, questionamento, formulação.
“Nesse 20 anos de experiência percebi que os professores (qualquer que seja sua tendência política) dão graves sinais de perturbação quando os alunos querem ser vistos como seres humanos integrais, com vidas e experiências complexas, e não como meros buscadores de pedacinhos compartimentalizados de conhecimento. […] A maioria dos meus professores não estavam nem um pouco interessados em nos esclarecer. Mais que qualquer coisa, pareciam fascinados pelo exercício do poder e da autoridade dentro do seu reininho – a sala de aula.”
Segundo bell hooks, a sala de aula deve ser inclusiva e humana, na qual os alunos (e professoras) possam trazer suas experiências pessoais, onde exista espaço para debate e para questionamento. Aprender não deve ser dolorido, ainda que para isso seja preciso encarar as dores. O ato de aprender deve ser o ato de questionar, transgredir, enxergar o outro e ver nessa atividade significado, para que o ensino seja um espaço também de aprimoramento pessoal.
“Minha paixão por essa busca me levou a questionar constantemente a cisão entre mente e corpo, tantas vezes tomada como ponto pacífico […] Durante os anos em que fui estudante senti uma profunda angústia interna. Lembro-me dessa dor quando ouço os alunos expressar o medo de não obter êxito nas profissões acadêmicas caso queiram sentir-se bem, caso repudiem todo comportamento disfuncional e toda participação nas hierarquias coercitivas. […] Querem, isto sim, uma educação que cure seu espírito desinformado e ignorante. Querem um conhecimento significativo. Esperam, com toda razão, que eu e meus colegas não lhes ofereçamos informações sem tratar também da ligação entre o que eles estão aprendendo e sua experiência global de vida.”
Valorizando imensamente a subjetividade e as experiências que atravessam cada um, hooks também é uma defensora da potência que a teoria tem sobre a mudança na prática: a teoria traz consolo, nos ajuda a organizar os pensamentos e encontrar forças, motivação e estrutura para a ação.
Ela nos ensina e nos inspira muito na maneira como nós, do PdH, queremos falar sobre gênero e masculinidades. Precisamos fazer isso seguindo um caminho que também represente os grupos não-hegemônicos (homens negros, periféricos, ribeirinhos, trans, LGBTQIAP+, com vivem com deficiência, entre outros atravessamentos).
Precisamos falar sobre masculinidades entendendo que essa conversa vai além de uma palestra. Que não é só sobre o que temos a dizer, é sobre diálogos que precisamos ter. Que essa conversa nem sempre vai ser fácil, que as emoções vão atravessar argumentos e práticas, mas aprendemos se maneira mais autêntica quando mergulhamos nestas conversas.
bell hooks e as masculinidades
hooks também escreveu “The will to change: men, masculinity and love” (em tradução livre A vontade de mudar: homens, masculinidades e amor) obra na qual ela aborda a equidade de gênero olhando pelo prisma de como as regras rígidas afetam os homens e sobre como a abertura emocional pode trazer libertação, felicidade e relações mais significativas.
Se o patriarcado fosse verdadeiramente recompensador para os homens, a violência e o vício na vida familiar, tão onipresentes, não existiriam. (…) Se o patriarcado fosse recompensador, a insatisfação avassaladora que muitos homens sentem em suas vidas profissionais — uma insatisfação amplamente documentada no trabalho de Studs Terkel e ecoada no tratado de Faludi — não existiria.
[Trecho selecionado por Carol Correia em sua crítica da obra no Medium]
A gente é da hora: homens negros e masculinidade
A próxima obra de bell hooks a ser publicada pela Editora Elefante é o livro “A gente é dahora” que aborda especialmente a desatenção da sociedade em relação a homens negros. O livro está disponível para pré-venda e traz as seguintes palavras no prefácio
“Lamentavelmente, a verdade de fato, que é um tabu quando verbalizada, é que nossa cultura não ama homens negros; eles não são amados por homens brancos, por mulheres brancas ou por mulheres negras, nem por meninas e meninos. Sobretudo, a maioria dos homens negros não se ama. Como eles poderiam amar a si mesmos e uns aos outros, como poderia se esperar que eles amassem cercados de tanta inveja, desejo, ódio? Homens negros na cultura do patriarcado supremacista branco capitalista imperialista são temidos, não amados. Obviamente, parte da lavagem cerebral que ocorre em uma cultura de dominação é a confusão entre temor e amor. Prosperando nos laços sadomasoquistas, as culturas de dominação fazem com que o desejo por aquele que é desprezado assuma a aparência de cuidado, de amor. Se os homens negros fossem amados, poderiam esperar mais do que uma vida trancafiada, enjaulada, confinada; eles poderiam se imaginar além da repressão.”— bell hooks
A edição brasileira vai contar com apresentação de Túlio Custódio e Lázaro Ramos.
Em resumo, bell hooks é uma autora que abre caminhos, que levanta dúvidas que ao longo de sua vida conseguiu falar sobre gênero e raça de maneira ampla mas sem nunca ser superficial.
Isso é uma pontinha do iceberg das contribuições da bell hooks nos traz. Ela que viveu para apoiar a mudança: uma revolução pautada na equidade de gênero e raça, em enfrentar conversas difíceis, trocar experiências, escutar e conhecer o próximo… Uma revolução pautada no amor.
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