Mulher preta, lésbica, mãe, guerreira poeta. Assim se apresentava Audre Lorde, anunciando suas múltiplas identidades já no início de qualquer conversa.

Nascida em Nova York em 1934, filha de imigrantes caribenhos, Audre se consagrou como poeta e ensaísta sobre questões de gênero, raça e sexualidade. 

“Mulheres são poderosas e perigosas”, diz quadro negro ao lado de Audre.

Audre foi uma dessas crianças que já se destacava de pequena. Em uma viagem de férias, quando tinha por volta de 10 anos de idade, Audre e suas irmãs foram impedidas de entrar em uma sorveteria porque eram pretas.

A pequena Audre sentiu muita raiva e resolveu agir: escreveu uma carta para o presidente dos Estados Unidos dizendo que era um absurdo uma criança não poder tomar sorvete em um país que se dizia democrático, que isso precisava mudar. E dedicou sua vida a fazer parte dessa mudança.

Audre nunca se sentiu à vontade nos ambientes que frequentava. Viveu a indiferença na pele, no corpo e na sexualidade.

Na escola, era uma das únicas três alunas pretas. No trabalho, a única assumidamente lésbica. Já nos anos 60, militando nos movimentos por direitos civis, sentia que as questões de raça e orientação sexual eram deixadas de lado, que o que ela era não importava.

Todos queremos ser aceitos, e Audre não se sentia aceita. Ela nem sequer conhecia alguém como ela: era marginalizada por ser negra e, no movimento racial, não encontrava outras mulheres pretas que não fossem heterossexual.

Lorde saiu em busca de mulheres como ela.

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Precisava conversar com alguém que entendesse o que era ser “de fora” em todos os espaços. Ao não encontrar ninguém parecida, decidiu que seria a última sem referentes. Iria escrever sobre essa dupla invisibilização.

Do isolamento ao ativismo

Das experiências de racismo e homofobia que viveu, nasceu uma ativista que transformava a raiva em combustível. A importância de não se calar e transformar o silêncio em ação está presente em grande parte do seu trabalho. Uma das suas frases mais famosas é

“Meus silêncios não me protegeram. Seu silêncio não vai proteger você.”

Que frase forte, né? Audre escreveu essas palavras em 1977, mas poderia ter sido em 2022. Os escritos de Audre são assim, atemporais, provocadores e empoderadores ao mesmo tempo.

Escute a própria Audre explicando como seu silêncio não vai te proteger aqui.https://www.youtube.com/embed/MXAblUUexQc?rel=0&start=106

É preciso estar bem para ajudar alguém

Muito antes de autocuidado virar moda de Instagram e motivo para consumir produtos e serviços, Audre Lorde já falava da importância de se cuidar genuinamente:

“Cuidar de mim mesma não é autoindulgência. É autopreservação, um ato de luta política.”

Em uma sociedade que exige muito de nós — tanto física quanto  emocionalmente — nessas vidas corridas que levamos, tirar um tempo para se cuidar, descansar, pode até parecer um luxo, mas para Audre é essencial. Seria questão de sobrevivência acima de tudo.

Se não estivermos bem e com energia, como vamos lutar pelos nossos direitos?

Audre Lorde também vê autocuidado como o fortalecimento do coletivo, dos vínculos com as outras pessoas

Audre Lorde e as masculinidades

Como muitas das teóricas feministas da época, Audre criticou a construção da masculinidade a partir da violência contra as mulheres:

“Meninos negros crescem acreditando que podem definir sua masculinidade entre as pernas de uma menina da sexta série, crescem acreditando que mulheres e meninas negras são o alvo adequado para a sua fúria, em vez das estruturas racistas que transformam todos nós em pó.”

Ela foi uma grande crítica das masculinidades dominantes, das violências e opressões exercidas pela desigualdade de gênero. Era preciso mudar muito do comportamento e das dinâmicas masculinas e Audre deixava claro seu descontentamento com o padrão das relações de poder.

Hoje, também é possível fazer correlações de outros conceitos de Audre com as masculinidades. Como a questão do autocuidado, por exemplo.

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Grande parte dos homens foram socializados sem essa preocupação com o autocuidado, já que a masculinidade padrão espalha a ideia de que cuidado é  desnecessário, coisa de mulher.

Voltando para as estruturas sociais, Audre Lorde escreveu bastante sobre como o racismo adoece. Adoece principalmente os homens negros, os mais precarizados em sub-trabalhos e os que mais morrem no Brasil. Quantas injustiças esses homens aguentam todos os dias? 

“Quais são as tiranias que você engole dia após dia e tenta tomar para si, até adoecer e morrer por causa delas, ainda em silêncio?”

Esse adoecimento muitas vezes vem na forma de dependência química ou transtornos mentais, consequência desse não-lugar do homem preto em nossa sociedade. O racismo que está em todos os lugares, tira as possibilidades de subsistência, de melhora de vida. Da população carcerária à população em situação de rua, a maioria delas têm uma cor e um gênero.

Assuntos como o direito de descansar, de fazer coisas prazerosas, não viver no automático de acordar, trabalhar e dormir de novo, tem muito a beneficiar homens e principalmente os pretos e os de classe mais baixa. O cuidado compartilhado, a importância de conversar com os amigos sobre o que está acontecendo em casa, com a família e com a parcerias, também. É quebrar essa coisa de que homem não fala de sentimentos.

Pensar o erotismo que nos atravessa

Em plena década de 60, Audre escreveu sobre sexualidade e sensualidade, temas vistos como irrelevantes no meio acadêmico. Para ela, a vida erótica era tão importante quanto a vida intelectual. Um dos ensaios mais famosos sobre o assunto é o “Usos do erótico”, em que ela diz:

Existem vários tipos de poder, usados e não usados, conhecidos ou desconhecidos. O erótico é um recurso que temos todos dentro de nós, num plano espiritual e feminino, profundamente enraizado nos nossos sentimentos que não são expressados ou reconhecidos. Para se perpetuar, toda opressão tem que corromper ou distorcer as fontes de poder que podem trazer energia para mudança. Para as mulheres, isso significou a supressão do erótico como uma fonte de poder e informação nas nossas vidas.

Audre acreditava que todos temos direito a viver uma vida prazerosa, conectada com o nosso erotismo. Para ela, o erótico é essa pulsão de vida, é estarmos conectados com os nossos desejos. 

No mesmo ensaio, Audre fala da pornografia como o oposto do erótico. Para ela, pornografia suprime os sentimentos, enfatiza as sensações e banaliza a nossa experiência sexual. Audre morreu em 1992, então não viu a pornografia explodir com a era da internet. 

Dos seus 58 anos de vida, Audre passou 14 enfrentando o câncer: é dessa luta que vem o “guerreira”. Publicou “Os diários do câncer”, um livro de ensaios sobre a sua experiência porque acreditava que se mostrar vulnerável ajudaria outras mulheres a falarem dos efeitos da doença em suas vidas. Mais uma vez, ela deixou referências para as que virão depois.

Uma mulher que sabia da importância da representatividade e da força dos encontros.

Audre Lorde queria ser reconhecida e vista pelo que era. Fazia questão de dizer que era uma feminista preta lésbica e que para ela isso significava que tanto o seu poder quanto as opressões que vivia eram resultado da sua negritude e da sua feminidade lésbica, o que tornava essas questões inseparáveis. 

Importante referência para os movimentos feminista, LGBTQIA+ e antiracista, as obras de Audre Lorde têm sido traduzidas e publicadas no Brasil pelas editoras Ubu, Bazar do Tempo, Relicário e Elefante.

Lívia Almeida de Andrade

Mestre em gênero e comunicação, internacionalista e autora do “Guia de autocuidado para ativistas feministas”. Militante feminista e consultora em gênero, diversidade e inclusão.