Nota editorial: Este texto foi escrito a quatro mãos, por Felipe Requião (@requiaofelipe) e Flávio Oliveira (@flaviooliveira.ti)

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Talvez a paternidade seja uma das mais difíceis disciplinas que o homem jamais enfrentou e enfrentará em toda sua vida.

Criança não vem com manual de instruções e o pacote “como ser pai” não está disponível para download nas mobile stores. Apesar dos muitos livros que apontam para o tema, nada nos ensinará melhor do que a prática.

Flávio — Quando a Júlia nasceu (há 25 anos) eu não tinha noção do que era um parto, achava que era só levar para o hospital e depois trazer mãe e filha para casa. Eu ignorava tanto as necessidades da mãe quanto a importância da minha participação em todo o processo.

Não existe isso de “estar pronto para ser pai”. Essa prontidão é irreal. Ser pai é um aprendizado constante e duradouro. Enquanto nossos filhos vão crescendo e amadurecendo, ainda haverá espaço para novos aprendizados sobre esse papel fundamental que nós, homens, ocupamos na sociedade.

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Podemos aprender juntos, descobrir juntos, complementando nossas experiências, buscando uma participação e uma educação melhor para nossas crianças.

Felipe  Nas rodas de conversa que facilito, temos preocupações muito comuns com as respostas que daremos aos nossos filhos. “Preciso saber o momento certo para falar com ele(a) sobre sexualidade”.

Nos preparamos, conversamos com nossa companheira(o), lemos muito a respeito, mas o que tenho descoberto é que conversas deste teor não são previsíveis e planejadas. Elas simplesmente acontecem.

Com meu filho (de 7 anos), tangenciamos esse assunto quando ele me perguntou porque o Nicolau (nosso cachorro) não tinha filhos.  Expliquei-lhe que ele havia sido castrado e a próxima pergunta era óbvia: “o que é castrado, papai?”.

Ou seja, falar sobre a sexualidade com meu filho, no meu planejamento, não passava por falar sobre a castração canina.

Tenho percebido e aprendido que ter respostas prontas acaba não sendo a melhor forma de criar uma real conexão com as crianças. As conversas com eles são imprevisíveis e, se tentamos direcionar o tempo todo, perdemos a espontaneidade e o interesse deles sobre nossa própria experiência de vida.

Estar aberto ao que vem deles é uma forma de criar um relacionamento baseado no acolhimento e na plenitude dos seus desenvolvimentos enquanto seres humanos. Não há manual que dê instruções e não há caixa que comporte. 

A caixa dos pais armazena-se dentro da caixa dos homens

Antes de sermos pais, somos homens. E, sendo homens, já estamos encaixotados na “Caixa do homem”. Eventualmente, em algum momento da nossa vida, nos tornaremos pais.

O termo a “Caixa do Homem” foi cunhado em meados dos anos 80 por Paul Kivel, um educador, ativista e escritor americano, co-fundador do Projeto de Homens de Oakland, focado na prevenção da violência masculina.

Em 2015, Tony Porter, um norte-americano também educador, escritor e ativista, escreveu o livro “Quebrando a caixa do homem: a próxima geração da masculinidade”, em tradução livr e tornou o termo mais popular e conhecido em todo o mundo.

Antes disso, em 2010, sua palestra no TED Talk foi eleita pela GQ Magazine uma das “top 10 palestras que todo homem deveria ver”.

 

Usando a caixa dos homens como ferramenta de reflexão

O PapodeHomem produziu um vídeo e um manual sobre como utilizar esta caixa para trazer consciência e mais conhecimento sobre o que há dentro dela e como ela impacta negativamente as relações entre os homens e todos à sua volta.

Em resumo, a “Caixa do homem” corresponde a uma série de padrões comportamentais esperados pela sociedade sobre o que é ser homem. Uma receita cultural sobre como os homens devem ser, agir, falar, se vestir, se comportar etc.

Todas as características que não estão enquadradas nesta caixa são simplesmente repelidas e oprimidas.

Assim como a sociedade possui uma série de expectativas sobre o que é ser homem, também há um padrão de performance para o que é ser pai. De alguma forma, esses padrões se tornam uma espécie de mapa, um guia que define o que é ser um “bom” pai.

Abrindo a Caixa dos Pais

Flávio  Durante muito tempo eu tinha plena convicção que ser pai era trabalhar muito, trazer dinheiro pra casa e não deixar faltar nada, para que toda minha família estivesse segura e confortável. Eu ainda estava limitado aos 3Ps da masculinidade: procriar, prover e proteger.

Alguns desses padrões são positivos é verdade, porém, em sua grande maioria colocam o homem num papel de coadjuvante quanto ao cuidado, reforçando o estereotipo do homem procriador, provedor e protetor, apenas.

As organizações humanas nem sempre foram patriarcais. Alguns estudos antropológicos (Engels, 1884/1964; Muraro, 1997) indicam que as primeiras sociedades humanas eram coletivistas, tribais, nômades e matrilineares.

Aquelas organizações sociais — chamadas "primitivas" — eram constituídas essencialmente em torno da figura da mãe, a partir da descendência feminina, uma vez que ainda não haviam descoberto e relacionado a participação masculina na reprodução da espécie humana.

Assim, os papéis sexuais e sociais de homens e de mulheres não eram estabelecidos da forma rígida, como é atualmente, e as relações sexuais não eram monogâmicas.

Existem estudos que mostram tribos cujas relações entre homens e mulheres eram igualitárias, ou seja, todos os membros da sociedade envolviam-se com o trabalho de coleta de frutas e raízes e a todos cabia o cuidado das crianças.

Com a descoberta da agricultura, da caça e do fogo, (no período Neolítico inferior, entre 5.000 e 3.000 a.C.), as comunidades passaram a se fixar em um território. Foi a partir deste período que os homens passaram a ser os responsáveis pela caça e às mulheres (embora não exclusivamente) cabia o cultivo da terra e o cuidado das crianças.

Uma vez conhecida a participação do homem na reprodução e, mais tarde, estabelecida a propriedade privada, as relações passaram a ser predominantemente monogâmicas, a fim de garantir herança aos filhos legítimos.

O corpo e a sexualidade das mulheres passam a estar sob controle, instituindo-se então a família monogâmica, a divisão sexual e social do trabalho entre homens e mulheres. Instaura-se, assim, o patriarcado, uma nova ordem social centrada na descendência patrilinear e no controle dos homens sobre as mulheres.

Esse padrão de comportamento prejudica não somente a criação do vínculo entre o pai e a criança, como não permite ao homem que viva os momentos das descobertas da criança, do desabrochar dela para o mundo, dando-lhe o sentimento de um tempo perdido, que não voltará (essa consciência só chegará mais tarde, quando os filhos forem mais velhos).

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É salutar nos conscientizarmos de que sair dessa caixa é abrir as asas para a liberdade e entender que é possível fazer a escolha pelos filhos e que isso não nos tornará menos homem.

Flávio  Aos poucos fui descobrindo que não só sabia, mas também gostava de cuidar da minha filha, brincar com ela, assistir filmes, passear, conversar e até “ficar sem fazer nada”. Isso me proporcionava uma conexão, um vínculo muito forte com ela que me sinto beneficiado até hoje.

Felipe  É impressionante a importância que nós, homens, damos ao nosso trabalho. O dia-a-dia da minha paternidade me mostrou que, ou eu rompia com a caixa ou eu viveria para ela e não para minha família. Como exemplo, passei a ponderar o peso que minha carreira profissional tinha na minha vida, passando a ser mais crítico quanto à quantidade de horas dedicadas ao trabalho, priorizando ser mais participativo da rotina da casa e escolhendo dizer os “nãos” necessários. Durante este processo, meu inconsciente me pregava algumas peça do tipo: “você tem que trabalhar, para garantir o sustento da família” ou, então “que tipo de pai você será se não tiver um emprego?”.

Essa voz interior, julga minhas atitudes e está o tempo todo querendo me fazer voltar para essa caixa limitante. Mas insistir no meu instinto de pai contribui diariamente para a criação do vínculo que tenho hoje com minha esposa e meu filho. Descobri que priorizar a família e a criação dos filhos não me tornaria menos homem, que participar da rotina da casa e me responsabilizar pelo cuidado também é coisa de pai.

Muito frequentemente nos preocupamos com o sustento familiar. Ok, vou cuidar mais dos meus filhos e nós vamos viver do quê?

Quando queremos muito algo, lutamos por aquilo, as oportunidades surgem e ficamos mais abertos para outras possibilidades de ganhos financeiros.

O fato é que as prioridades mudam, questionamos nosso estilo de vida, gastos, necessidades e o foco no bem-estar emocional, no ser e não no ter passa a ter um peso diferente.

Há que se considerar que segurar as rodas do patriarcado e do machismo que estão girando há mais de 300 mil anos não é das tarefas mais fáceis. Nossos pais não tiveram força suficiente para saírem dessa caixa pesada e estereotipada de não-cuidadores porque a geração dos nossos avós não ousava, naquela época, questionar esses valores. E desta forma inconsciente e inquestionavelmente, chegamos até os dias atuais.

Os ciclos do machismo e do patriarcado serão interrompidos quando nós, pais, formos capazes de olhar para as necessidades dos nossos filhos e filhas.

COVID-19: a chance de rompermos essa caixa

Foto por Giovanna Guiotti, parte do acervo do Diretório de Fotografia Documental de Família

É verdade que a pandemia trouxe muitas perdas. Até hoje tivemos quase 160mil mortes no Brasil (dados oficiais), mais de 5,4 milhões de casos confirmados e prejuízos incalculáveis para a economia do país, para a educação das crianças e, ainda vivemos um futuro mais incerto do que nunca frente ao caos político que se configurou.

Porém, para muitas famílias, o trabalho em casa (home-office) fez com que mais pais estivessem dentro de casa. E eles têm mais tempo para colocar a mão na massa: podem dividir as atividades domésticas como cozinhar, lavar a louça, faxinar a casa e cuidar dos filhos. Certo?

Flávio  A pandemia foi um catalizador no processo de aprendizado dos pais sobre como equilibrar as relações profissionais, familiares, com os filhos e até consigo mesmo.

Uma pesquisa realizada pela plataforma 4Daddy, coordenada pelo Leandro Ziotto, com quase 2.000 homens em todo o Brasil, entre maio e agosto, apontou que não. Os dados encontrados revelou que o equilíbrio da divisão das tarefas do dia-a-dia da casa está longe de ser encontrado.

Mas, algumas famílias, aproveitaram esse momento para se reorganizarem dentro de suas casas:

  • 86% dos entrevistados disseram que estão usando a quarentena para repensar a divisão de tarefas
  • 67% concordam que homens e mulheres devem ser igualmente responsáveis pelos cuidados com a casa e com os filhos

E o que falta para os pais saírem desta caixa?

O que impede que a divisão de tarefas aconteça de maneira mais equilibrada é a falta de uma referência dentro da própria família. Quando esse exemplo existe, a divisão equilibrada acontece de maneira mais natural.

Incluir as crianças no cuidado da casa, confiando a elas pequenas responsabilidades, permitindo que realizem tudo com fluidez, em seu tempo, longe do julgamento do certo e do errado com uma dose de leveza é uma boa forma de construirmos uma nova sociedade.

Fazer destes momentos uma brincadeira e mais uma oportunidade de conexão entre pai e filho, demonstrando que o cuidado pode ser prazeroso contribuirá na transformação do papel do homem como pai nas famílias brasileiras.

Perguntas para sair da caixa dos homens

Convidamos aos pais a reconhecerem dentro de qual caixa sua paternidade foi construída e abrirem-se para um mundo colorido, cheio de possibilidades lado a lado com o ser que muda diariamente nossas vidas.

  • Você acredita que precisa ter todas as respostas e estar certo sobre todos os assuntos quando conversa com seus filhos(as)?
  • Você se coloca de maneira aberta para ouvir seus filhos(as) deixando seus próprios medos e julgamentos?
  • Você acredita que pai pode ser mais do que o procriador, provedor e protetor de sua família?
  • O que você pode fazer hoje para ser um pai mais pleno?
  • Qual a maior barreira para você se sentir contemplado no pleno exercício da paternidade?
  • Quando você presencia ou percebe comportamentos disfuncionais em amigos ou parentes, o que você faz?
  • Quais são suas próprias questões sobre a paternidade?

Pais o ano todo

Escrevemos esse texto a partir de algumas conversas que eu (Felipe) e o Flávio trocamos no mês de Agosto. O bate-papo foi tão gostoso, tão íntimo e aberto, de pai-para-pai, que dali surgiu a ideia de seguir com essas conversas todos os meses até o final do ano.

Aqui vão as conversas

Agosto:

 

Setembro:

 

Outubro

 

 

Felipe Requião

Homem cis hétero, filho, amigo, irmão, marido e pai em busca do autoconhecimento e da felicidade. Adm de empresas, facilitador de grupos de homens e co-fundador do @grupo.horah.