Amiga falando do irmão com quem divide um apartamento:

“Ele  é uma pessoa boa, linda, incrível, tolerante, generosa… mas não lava a louça! Sai da mesa e deixa a louça toda lá, como se ela fosse magicamente se lavar sozinha, e quem tem que lavar tudo sou eu! Depois de já ter cozinhado sozinha!”

Maria Helena Vieira da Silva

Não cometer genocídio é facil

No nosso dia a dia, temos poucas oportunidades práticas de ativamente não-estuprar, não-roubar, não-torturar, não-cometer-genocídio, etc.

Não-matar não é uma decisão consciente que tomo todos os dias e da qual posso ter orgulho.

Somente não-estuprar não faz de mim uma pessoa boa.

Maria Helena Vieira da Silva

O mal é a falta de empatia

O mal é a falta de empatia. O mal são os olhos cegos e os ouvidos moucos. O mal é a desatenção e o auto-centramento. O mal é aquilo que sinceramente não me ocorre, que realmente não enxerguei, que juro que não ouvi, que não sei como fui esquecer.

O que é um batedor de carteiras comparado ao honesto pai de família que não enxerga nada a sua volta? Que não vê a esposa insatisfeita e desesperada, as filhas confusas e autodestrutivas, a sócia abrindo a garrafa de uísque cada vez mais cedo?

Maria Helena Vieira da Silva

O mal não é arrancar a Anne Frank do sótão: o mal é cruzar todo dia pelo seu porteiro com o braço engessado e nunca perguntar, nunca se preocupar, nunca nem reparar.

O mal não é ser dona de uma fazenda com duzentas pessoas escravizadas: o mal é ser contra uma nova estação do metrô porque vai destruir as arvorezinhas da sua praça e nunca te ocorrer das centenas de milhares de pessoas trabalhadoras que não têm carro, passam horas e horas em ônibus e terão suas vidas significativamente melhoradas por uma nova estação.

O mal não é a Estrela da Morte explodir Alderã: o mal sou eu relaxar do meu longo dia de trabalho curtindo um filme, depois de um belo jantar feito por minha irmã, e nunca me passar pela cabeça que ela teve um dia igualmente longo de trabalho, ainda por cima fez o jantar e agora está sozinha tirando a mesa e lavando a louça, e ainda perdendo a chance de ver o filme!

Maria Helena Vieira da Silva

O mal é a falta de atenção

Eu poderia tentar argumentar:

“Foi mal, sou tão distraído, minha cabeça está cheia de problemas, não lembrei mesmo…”

Mas a distração que me faz esquecer não é o que me justifica: é o que me condena.

Gostaria de poder dizer que sou uma pessoa boa que tem péssima memória e é muito distraída. Mas não. Minha péssima memória e minha extrema distração são sintomas de meu profundo desinteresse por tudo que não diga respeito a mim.

Maria Helena Vieira da Silva

Eu não esqueço os nomes das editoras com quem tenho que fazer networking, o dinheiro que emprestei para uma amiga, o endereço da nigeriana com quem flertei na praia..

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Eu esqueço de lavar louça (“puxa, fiquei aqui distraído do filme, esqueci totalmente da louça, agora ela já lavou, amanhã ajudo!”), de assinar o livro de ouro dos porteiros (“putz, com essa correria de natal, nem lembrei, mas tudo bem, ano que vem dou em dobro!”), de responder o email da amiga que pediu minha ajuda (“caramba, essa mensagem está na minha caixa de entrada há três anos, ela já deve ter resolvido sozinha.”)

É um de tantos paradoxos da vida narcisista: julgo os outros por suas ações, mas quero sempre ser julgado por minhas intenções.

Quando dirijo perigosamente e alguém me xinga, ainda me dou ao direito de me chatear:

Porra, será que ele não vê que estou com pressa? Respeito as leis do trânsito todo dia, mas hoje tenho aquela reunião importantíssima!

Não interessa o que seja: ou agi certo (e o mundo tem que reconhecer e me premiar, senão é muita injustiça) ou agi errado, mas por um motivo totalmente válido (e o mundo tem que reconhecer e me entender, senão é muita injustiça).

Hoje em dia, penso o contrário: qualquer comportamento meu que precise ser justificado ou racionalizado já está por definição errado.

Mais ainda: talvez eu não seja uma pessoa boa.

Maria Helena Vieira da Silva

Então, o que é ser uma pessoa boa?

Ser uma pessoa boa é não é apenas ajudar minha irmã a lavar a louça.

Ser uma pessoa boa é tornar-me uma pessoa para quem seria intolerável sentar para assistir um filme enquanto minha irmã lava toda a louça sozinha.

Maria Helena Vieira da Silva

Três avisos importantes sobre meus textos

Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas & Ação de graças pelos privilégios recebidos);

Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);

E são sempre todos rigorosamente ficcionais(Ou não: Alex Castro não existesó o texto importa. Em caso de dúvida, consulte minha biografia do meu site pessoal.)

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Maria Helena Vieira da Silva

 

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As ilustrações desse texto são obras da artista portuguesa Maria Helena Vieira da Silva (1908-92).

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha <a title=quem sou eu