O jóquei recordista de vitórias no mundo é brasileiro, e você não o conhece

No momento da largada, o puro-sangue castanho vacilou. Ele não era o favorito para vencer a prova. Valia mais a pena apostar em Mad Queen ou Grant Bold. Mas as atenções estavam concentradas em Scoop, um cavalo de 7 anos que carregava a oportunidade de ser um dos protagonistas de um feito inédito na história do turfe: a 12.000ª vitória de um jóquei.

Nos dez segundos finais da última prova da programação do Hipódromo Argentino de Palermo, o animal arrancou, ultrapassou todos os adversários e chegou primeiro ao disco, com uma vantagem de 4 corpos sobre o segundo colocado. Tudo bem se você não sabe nada de corrida de cavalo. Mas faça um favor a você mesmo e assista ao vídeo abaixo.

Você logo vai perceber o que todo fã de turfe sabe: naquele domingo em Buenos Aires, montado em Scoop, havia uma lenda.

Jorge Ricardo dispara e é o primeiro jóquei do mundo a conquistar a vitória número 12.000

Aos 53 anos, idade em que a maior parte dos atletas já aposentou as chuteiras, Jorge Ricardo continua no auge. Ele é o jóquei mais importante da América Latina e um dos melhores do mundo. Assim como os jogadores de futebol, Ricardinho dá sequência à carreira fora do País, mas foi aqui que ele nasceu e se tornou campeão. Para conhecê-lo e admirá-lo, você não precisa ser um apostador veterano nem saber diferenciar um cavalo zaino de um alazão. Basta entender que o mundo do turfe é muito, muito diferente das quadras e dos campos.

Comparar a trajetória de Jorge Ricardo aos percalços de uma corrida de cavalos é um clichê inevitável. A diferença é que uma prova de turfe dura um minuto. Já a carreira do atleta tem quase quatro décadas - e contando. Da primeira vitória até a de número 12 mil, conquistada no dia 26 de maio de 2013, foram 37 anos de largadas rápidas, curvas, tropeços e quedas. A conquista daquele domingo em Buenos Aires foi só mais uma para a lista. Desde então, outros grandes êxitos vieram, e Jorge Ricardo continua páreo a páreo na disputa pelo primeiro lugar do mundo em número de vitórias.

A carreira e a obsessão por vencer

Para quem nunca entrou em um jóquei clube, corridas de cavalo parecem coisa de filme. É fácil imaginar a cena: um grupo muito seleto de endinheirados brinca com a sorte apostando milhões em animais premiados com nome e sobrenome. Enquanto isso, nas raias, os jóqueis vivem histórias dramáticas de superação e alimentam rivalidades históricas. Na vida real, o esporte até pode ter um pouco de tudo isso. Mas é um monte de outras coisas também.

Há competições constantes nos principais hipódromos do Brasil e os cavalos de corrida puro-sangue inglês movimentam R$ 1 bilhão por ano por aqui, mas o turfe brasileiro ainda come poeira se comparado à importância que o esporte recebe em outros países. Esse foi um dos motivos que levaram Jorge Ricardo a deixar o Brasil em 2006, para competir em raias argentinas.

Não que Jorge já não fosse um grande campeão aqui e precisasse se desenvolver como atleta no exterior – ele dominou as estatísticas gerais (o ranking anual de desempenho dos jóqueis) do Hipódromo da Gávea durante 26 anos consecutivos. É que, por lá, a paixão pelo turfe transborda os muros dos hipódromos. Investimento, divulgação e apoio do governo fizeram com que o esporte atingisse o status de símbolo nacional, algo que ainda não rola no Brasil.

Juntos, os três principais hipódromos das terras hermanas (Palermo, San Isidro e La Plata) proporcionam corridas todos os dias da semana. Para alguém obcecado com a ideia de arrancar das mãos do panamenho Laffit Pincay Jr. o recorde mundial de número de vitórias (então 9.530) e se tornar o jóquei mais vitorioso de todos os tempos, a conta foi fácil: quanto mais corridas, mais chances de vencer.

Apesar da mudança para a Argentina também significar competir com mais jóqueis de alto nível, seu número de vitórias acumuladas disparou. Em 2007, ele já era líder nas estatísticas. Meses depois, aos 46 anos, Jorge Ricardo bateu a astronômica marca das 10 mil vitórias.

Você conhece outro esportista que tenha chegado perto desse número ao longo da carreira? Ricardinho conhecia: o canadense Russell Baze, seu arquirrival, que estava apenas um pouco atrás em número de corridas vencidas e com quem trava um duelo cabeça a cabeça até hoje.

Ricardinho vencendo no Hipódromo de Palermo com as cores do Brasil
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Nem ossos quebrados ou um linfoma foram capazes de pará-lo

Antes de falar sobre a rivalidade, é preciso tentar entender como nasce um grande atleta. No caso de Ricardinho, o amor pelo turfe é herança de família.

Jorge Ricardo é filho de Antônio Ricardo, um premiado jóquei brasileiro que depois se tornou treinador. Nasceu em 1961, cresceu entre os animais e, logo cedo, aventurou-se nas raias. Sua primeira vitória veio aos 15 anos, em novembro de 1976, ainda como aprendiz de jóquei. Já como profissional, alcançaria nas décadas seguintes títulos como o Grande Prêmio Brasil, o Grande Prêmio São Paulo, o Grande Prêmio Bento Gonçalves e, por cinco vezes, o Grande Prêmio Internacional Latino Americano (o equivalente à Libertadores do turfe).

Algumas dessas vitórias históricas foram conquistadas no dorso de Much Better, cavalo lendário avaliado em 1 milhão de dólares e considerado por muita gente um dos melhores que já correu em pistas brasileiras. Foi ele que Jorge Ricardo levou para o tradicional GP Arco do Triunfo na França, em 1993, uma espécie de campeonato mundial de puros-sangue inglês. Em 2007, seis anos depois da morte trágica de Much Better num incêndio em um haras de Bagé, no Rio Grande do Sul, Jorge Ricardo relembrou o grande companheiro da década de 1990 num depoimento ao jornal O Globo:


Foi o melhor cavalo que montei em toda minha carreira e nunca vou me esquecer dele.


Mas além das medalhas e parceria com cavalos brilhantes, a jornada de sucesso de Ricardinho também incluiu treino intenso, alimentação regrada, dedicação exclusiva, muitos ossos quebrados e uma perseverança atroz. Um jóquei dessa categoria não pode pesar mais que 58 kg. Melhor se for menos que isso, entre 48 e 50 kg. Tudo bem, é mais fácil pesar pouco quando se tem 1,61 “e meio!” de altura, mas vale lembrar que manter o corpo em ordem depois de uma certa idade vira um desafio diário.

No braço esquerdo, uma cicatriz traz a constantemente memória de um episódio em que foi jogado por um cavalo sobre uma grade de arame e, por pouco, não rompeu um tendão. Sua carreira poderia ter terminado ali, ou, então, em 2009. Quando a diferença de vitórias entre Ricardinho e Russell Baze mudava diariamente, levando ora um, ora outro para o topo do ranking mundial, o atleta brasileiro anunciou uma pausa: um linfoma diagnosticado dois anos antes e até então deixado de lado em prol das competições o fez deixar as corridas.

Mas ele voltou.

Nove meses depois, livre da doença, Ricardinho montou outra vez. E com ainda mais sede de vencer: era preciso reduzir a vantagem de 180 vitórias que Russell Baze havia conquistado em sua ausência. Em uma disparada que tomou conta de sua vida por alguns anos, Jorge Ricardo superou os adversários, as expectativas dos torcedores e a morte do pai e treinador na histórica corrida de 2013 que abre esse texto.

Com a 12000ª vitória assegurada, mais um desafio. Três meses depois da corrida que lhe garantiu o posto de maior vencedor do esporte, Jorge Ricardo literalmente caiu do cavalo. Ao sofrer um acidente grave em uma curva do Hipódromo de Palermo, o atleta quebrou o braço direito e foi forçado a se afastar novamente das raias.

Durante o período de recuperação, Ricardinho ouviu de um médico que talvez nunca mais pudesse voltar às pistas. Mas para quem provou tantas vezes o gosto da vitória, levantar-se depois de uma queda é a atitude natural. A solução foi visitar uma equipe médica mais otimista, que lhe fizesse acreditar que era possível continuar competindo. Deu certo.

Quando voltou às raias no início de 2014 depois de se recuperar da fratura, o público do Hipódromo de Palermo o recebeu de pé, aos gritos e saudações. Depois da vitória, disse:


O turfe é minha vida, o que sei e gosto de fazer.


37 x 36

"É como se Lionel Messi e Cristiano Ronaldo jogassem futebol juntos, diante dos nossos olhos”.

A frase de Airton Barnasque, narrador veterano do Jockey Club do Rio Grande do Sul, ganhou a imprensa internacional no mês passado, e a comparação não podia ser mais correta. Em 18 de setembro deste ano, Jorge Ricardo e Russell Baze correram lado a lado pela primeira vez.

A competição entre os dois jóqueis mais vencedores do mundo aconteceu em Porto Alegre, e ganhou o coerente apelido de "Desafio Mundial de Campeões". Para orgulho do turfe nacional, Ricardinho levou a melhor. Ainda atrás do arquiinimigo em número de vitórias depois do incidente em Palermo, Ricardinho se recuperou de uma desvantagem de quatro pontos no último dos cinco páreos, e venceu a bateria de provas por 37 a 36.

Com as duas filhas pequenas no colo e ao lado da esposa, Jorge Ricardo dedicou a vitória à memória do pai, que também já havia vencido outras competições históricas no mesmo Hipódromo do Cristal. Ainda assim, num exemplo de cortesia e espírito esportivo, disse que escolheria outro resultado final.


Preferia que o desafio tivesse empatado. Seria o resultado mais justo.


Elogiado pelos presentes, Baze retribuiu.


Eu fui quase fantástico. Ricardo, sim, foi fantástico.


Baze e Ricardinho, em disputa cabeça a cabeça no Desafio dos Campeões. Fotografia: Karol Loureiro
Baze e Ricardinho, em disputa cabeça a cabeça no Desafio dos Campeões. Fotografia: Karol Loureiro

Com as rédeas na mão

Quando você cai do cavalo, não importa se é o primeiro ou o centésimo do ranking: começar de novo exige sempre a mesma dose de humildade. Mesmo com o privilégio de ter nascido em uma família que o apoiou no início da carreira, mesmo tendo enfrentado as vantagens e desvantagens de ser filho de um campeão, Ricardinho precisou ser humilde e persistente para chegar onde chegou. E a competitividade é o melhor combustível.

Na disputa pelo número absoluto de vitórias, Russell Baze ainda está na frente, embora a diferença seja pequena – 12.395 contra 12.301 enquanto escrevo esse texto.

Com 53 anos e sem pensar em se aposentar, Jorge Ricardo planeja continuar correndo até quando a saúde permitir – ou pelo menos até depois que Baze, que é alguns anos mais velho, deixar as raias nos Estados Unidos.

O recorde pode fechar uma carreira gloriosa em grande estilo, mas para os novos e antigos fãs do turfe, o número deveria ser só um detalhe. A lição mais importante que grandes campeões como Jorge Ricardo podem nos ensinar, em qualquer esporte, é a resiliência.

Mecenas: Jockey Rio

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publicado em 30 de Outubro de 2014, 22:01
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Otávio Cohen

Otavio Cohen aprendeu a contar histórias em Minas Gerais, mas vive em São Paulo há oito anos. Como escritor, lançou três livros de não-ficção pelas editoras Abril e Planeta. Como jornalista, passou pela redação digital da Superinteressante, colaborou com Viagem & Turismo, Mundo Estranho e Guia do Estudante, e foi editor de infografia para livros didáticos da Editora Moderna. Especializou-se em branded content e realizou projetos para marcas como HBO, Motorola e Medley.


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