O Doutrinador: vigilantismo ou catarse necessária?

A história em quadrinhos brasileira sobre um caçador de corruptos que explodiu nas redes sociais e agora vai para o cinema abre as portas para um universo de personagens que discutem a nossa conjuntura social e política

Em uma das primeiras páginas que o autor , o carioca Luciano Cunha, publicou no facebook em 2013, seu personagem – O Doutrinador – chega a Ilha de Santana, no Maranhão. Coberto dos pés à cabeça pela roupa de mergulho, o personagem (que não tem rosto e por isso pode ser qualquer um de nós), sai do mar e caminha em direção ao Senador Antero Borges, cuja família é proprietária de todo o Estado. O político que ostenta um farto bigode se isolou para “escrever mais um de seus livros”. O Doutrinador, quase sem nenhum diálogo com seu alvo, aponta a arma e dispara. Menos um político corrupto.

Não dá pra negar que a sensação é de satisfação (lembra do Capitão Nascimento espancando o Deputado em Tropa de Elite II?).

Foi a indignação com a classe política que levou Luciano Cunha a criar o personagem alguns anos antes. Depois de ter o material rejeitado por diversas editoras (por medo de processos já que os corruptos tinham nome e sobrenome), o personagem ficou na gaveta. Instigado por amigos que adoravam o material, Cunha começou a publicar as páginas no facebook, até que em junho de 2013, embalado pelas Jornadas de Junho, o Doutrinador viralizou.

Tamanha exposição em meio à crescente polarização que marca o debate político no Brasil gerou críticas. As mais óbvias acusaram a história do Doutrinador de fazer apologia à violência, de pregar o armamento da população civil e estimular a justiça pelas próprias mãos como solução para os problemas do país. Mas também é possível associar a narrativa ao desejo de volta dos militares ao poder, ao fim do Estado, ao Estado de bem estar social, a luta pelos direitos civis.

Para o autor todas essas leituras são enviesadas. Cunha entende que o personagem é um lunático que caça e mata políticos de todos os lados. O que importa é o aspecto psicológico, já que nada justifica o que ele faz.

Um segundo arco narrativo do personagem contou com o argumento do ativista e antigo letrista e baterista da banda carioca O Rappa – Marcelo Yuka. Foi o músico que procurou Luciano por gostar muito do personagem e das possibilidades narrativas que o contexto sócio-político descortinava. A exposição na mídia e o aumento exponencial de seguidores chamou a atenção das produtoras de conteúdo audiovisual. Agora Luciano transita entre a produção do filme de seu personagem, projetos de animação e games, e a criação da Universo Guará com novos personagens para debater outros aspectos da conjuntura brasileira.

Link Youtube – Fizemos uma entrevista bastante interessante com o autor.

Em vários momentos da história do Doutrinador, o personagem mascarado diz: “Eu sou a urgência das ruas”. Em outras páginas a imagem do vigilante em posição de alerta no topo de um prédio é acompanhada de citações de autores como o escritor português José Saramago, o jornalista norte americano Ed Murrow e o escritor de ficção Orson Scott Card, todas sobre relações de poder, política e resistência diante de desmandos. A reflexão sobre que tipo de relação nós temos com o Estado e qual é a relação que nós queremos ter, é o pano de fundo não declarado da história em quadrinhos.

Exatamente porque de um lado as ações do personagem não podem ser justificadas, e porque de outro, no mundo real, o noticiário de cada dia nos enoja, o Doutrinador é uma catarse. Os gregos já entendiam a função curativa da ficção. Ao nos apresentar a concretização de desejos que não ousamos vivenciar, a ficção nos liberta. A morte dos corruptos pelas mãos do Doutrinador é simbólica e a satisfação que sentimos pode nos ajudar a virar essa página da nossa história.

A Universo Guará que expande o mundo do Doutrinador vai pelo mesmo caminho. O primeiro personagem que ganhou narrativa própria é o Santo, um médium que combate o charlatanismo e a intolerância religiosa. Mais um tema urgente do país. Se triste é a terra que precisa de heróis, como nos diz Bertold Brecht, podemos exorcizar essa nossa busca por um salvador da pátria através da ficção, e Luciano Cunha tem plena consciência disso.

No Brasil já tivemos uma relação mais visceral com a ficção, (ator que fazia papel de vilão na novela apanhava na rua). Mas a maturidade chega para todos. Os quadrinhos e a produção audiovisual vivem um florescimento inédito no Brasil. É sem dúvida um passo importante para resignificarmos nossas mazelas e construirmos um futuro mais sólido.

Você não acha?

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Esse texto faz parte da parceria editorial entre o PapodeHomem e os Quadrinheiros. Estamos publicando um artigo original por mês, pra você, sempre às sextas-feiras, mas quem quiser mais é só conferir o site e o canal no Youtube deles. Vale.


publicado em 22 de Dezembro de 2017, 00:05
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Mauricio Zanolini

É tão apaixonado por quadrinhos que tem até identidade secreta - Picareta Psíquico. Com os Quadrinheiros tem blog, canal e podcast . Também escreve sobre educação no blog da Universidade Livre Pampédia.


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