Vivemos sob um novo fenômeno político-religioso, a fé na participação social. Tão inconteste quanto o próprio conceito de democracia, vemos consolidar-se em uma espécie de pedestal normativo a ideia de que a mudança – seja ela qual for – tem que vir de fora para dentro.
Sem negar a legitimidade desse fluxo, é preciso de imediato confessar que não o entendemos apropriadamente. Fora de onde? Para dentro do quê? A defesa da participação como solução democrática é inócua sem a compreensão dos pormenores de seu processo.
![Não basta protestar, há de se fazer o trabalho sujo, longo e chato](https://cdn.papodehomem.com.br/wp-content/uploads/2014/09/franklin-620x415.png)
Não parece arriscado dizer que essa sede pelo aprofundamento da democracia carece de algo mais denso do que “diretas já!”. Longe de mim, diminuir em qualquer sentido o valor da campanha pelas “diretas”. Porém, o voto direto para presidente da república são a luz e a água encanada da democracia moderna. É o mínimo.
O atual estágio das coisas ultrapassa em sua complexidade a possibilidade de uma só bandeira e desenvolver a democracia exigirá novos tipos de competência.
Afinal, quanto é preciso saber para ser um cidadão? Qual é o papel possível de um cidadão no esquema geral das coisas?
Tomemos, por exemplo, as eleições.
Você pode ser um grande advogado do voto consciente (obviamente não vamos defender aqui o voto inconsciente, seja lá o que isso represente), mas a questão aqui é: como avaliar com um mínimo de rigor essa profusão de candidatos? Quanto tempo você vai precisar para isso? Quais critérios utiliza para sua seleção?
Fossemos avaliar um candidato ao Legislativo.
- No momento da escolha de seu representante, você procura saber quais projetos ele pretende propor uma vez que ocupar a cadeira?
- De quais comissões almeja participar?
- Qual é o seu posicionamento com relação a temas relevantes para você, seja o sistema penal, a descriminalização das drogas, a legalização do aborto, o sistema eleitoral, o financiamento de campanha ou o que quer que lhe tire o sono à noite?
- Quem serão os seus assessores?
- Como ele pretende articular interesses dentro do Legislativo para aprovar os seus projetos?
- Como será a prestação de contas dele à população uma vez eleito?
- Como foi o seu eventual mandato anterior?
- Quem financiou e quanto foi gasto em sua campanha?
Três projetos úteis para se informar e buscar responder essas perguntas são o Conheça seu deputado, o Excelências e o Às claras.
Enfim, pode parecer muito rigoroso - sobretudo se considerarmos a enorme profusão de candidatos que temos - mas não é justo reclamar de uma suposta crise de representatividade, se ignoramos por completo a atuação daqueles que nos representam.
Somos democratas esquizofrênicos: amamos a democracia, mas repudiamos os seus processos.
É no momento das eleições - quando a bola está na nossa quadra - que percebemos isso. Toda aquela ideia de que “para mudar o país, basta ter vontade” cai por água abaixo. Enquanto nós lamentamos a indecência da campanha, a falta de projetos, de visão etc., a gênese da revolta, de que “o país é como é por que alguém quer que o seja assim”, se desmonta por inteiro.
O primeiro passo da enaltecida participação social é a celebração de seus processos: reconhecer que não existe mais uma causa prêt-à-porter. Se quisermos uma sociedade participativa politicamente, não podemos apenas comprar uma ideia, precisamos costurá-la.
Para mostrar alguma coerência nos traços da minha própria agulha, os movimentos que ajudo a construir – Bom Senso FC, Eu Voto Distrital, Doe Mais, Doe Melhor – têm, entre todos os seus defeitos, o mérito de ir atrás das minúcias.
Por trás deles, existe um desenho claro dos caminhos que levam à mudança. O que não significa dizer que todos eles tenham sido ou sejam bem sucedidos. Ter propostas e uma estratégia desenhada, na verdade, são critérios mínimos para um movimento social.
Uma democracia saudável não pode se apoiar em uma sociedade civil apadrinhada que vive a se mobilzar por diagnósticos; uma democracia saudável deve ser sustentada por uma sociedade civil independente e – para usar o termo em voga – propositiva.
![Todos protestamos horrores ano passado. E agora, vamos continuar com o trabalho ou esperar mais quatro anos pra reclamar novamente? | Foto por Pedro Fonseca](https://cdn.papodehomem.com.br/wp-content/uploads/2014/09/umano1-620x413.jpg)
Quer mudar o mundo? Mostre-nos como.
"É imoral pretender que uma coisa desejada se realize magicamente, simplesmente porque a desejamos. Só é moral o desejo acompanhado da severa vontade de prover os meios da sua execução.”
- Ortega y Gasset
Não há como fugir do diabo nos vincos da democracia. E, com o andar da carruagem, nossos alfaiates só costuram calças que não saberemos vestir.
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Dois livros para se aprofundar:
- "Juntos: os rituais, os prazeres e a política da cooperação", de Richard Sennet
- "A rebelião das massas", de Ortega y Gasset (link para baixar ebook completo)
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Nota do editor: esse texto surgiu da rede do Sonho Brasileiro da Política, uma pesquisa sem fins lucrativos e suprapartidária que busca entender a relação do jovem brasileiro com a política. O estudo tem o intuito de dar luz a novas mentalidades, novas forma de participação que já estão acontecendo e de influenciar a sociedade a compreender e se relacionar com a política.
publicado em 11 de Setembro de 2014, 09:40