O diabo mora nos vincos

Vivemos sob um novo fenômeno político-religioso, a fé na participação social. Tão inconteste quanto o próprio conceito de democracia, vemos consolidar-se em uma espécie de pedestal normativo a ideia de que a mudança – seja ela qual for – tem que vir de fora para dentro.

Sem negar a legitimidade desse fluxo, é preciso de imediato confessar que não o entendemos apropriadamente. Fora de onde? Para dentro do quê? A defesa da participação como solução democrática é inócua sem a compreensão dos pormenores de seu processo.

Não basta protestar, há de se fazer o trabalho sujo, longo e chato
Protestar é lindo, emocionante e uma potente ferramenta social. Mas e depois? | Foto por Franklin Lopes

Não parece arriscado dizer que essa sede pelo aprofundamento da democracia carece de algo mais denso do que “diretas já!”. Longe de mim, diminuir em qualquer sentido o valor da campanha pelas “diretas”. Porém, o voto direto para presidente da república são a luz e a água encanada da democracia moderna. É o mínimo.

O atual estágio das coisas ultrapassa em sua complexidade a possibilidade de uma só bandeira e desenvolver a democracia exigirá novos tipos de competência.

Afinal, quanto é preciso saber para ser um cidadão? Qual é o papel possível de um cidadão no esquema geral das coisas?

Tomemos, por exemplo, as eleições.

Você pode ser um grande advogado do voto consciente (obviamente não vamos defender aqui o voto inconsciente, seja lá o que isso represente), mas a questão aqui é: como avaliar com um mínimo de rigor essa profusão de candidatos? Quanto tempo você vai precisar para isso? Quais critérios utiliza para sua seleção?

Fossemos avaliar um candidato ao Legislativo.


  • No momento da escolha de seu representante, você procura saber quais projetos ele pretende propor uma vez que ocupar a cadeira?

  • De quais comissões almeja participar?

  • Qual é o seu posicionamento com relação a temas relevantes para você, seja o sistema penal, a descriminalização das drogas, a legalização do aborto, o sistema eleitoral, o financiamento de campanha ou o que quer que lhe tire o sono à noite?

  • Quem serão os seus assessores?

  • Como ele pretende articular interesses dentro do Legislativo para aprovar os seus projetos?

  • Como será a prestação de contas dele à população uma vez eleito?

  • Como foi o seu eventual mandato anterior?

  • Quem financiou e quanto foi gasto em sua campanha?

Três projetos úteis para se informar e buscar responder essas perguntas são o Conheça seu deputado, o Excelências e o Às claras.

Enfim, pode parecer muito rigoroso - sobretudo se considerarmos a enorme profusão de candidatos que temos - mas não é justo reclamar de uma suposta crise de representatividade, se ignoramos por completo a atuação daqueles que nos representam.

Somos democratas esquizofrênicos: amamos a democracia, mas repudiamos os seus processos.

É no momento das eleições - quando a bola está na nossa quadra - que percebemos isso. Toda aquela ideia de que “para mudar o país, basta ter vontade” cai por água abaixo. Enquanto nós lamentamos a indecência da campanha, a falta de projetos, de visão etc., a gênese da revolta, de que “o país é como é por que alguém quer que o seja assim”, se desmonta por inteiro.

O primeiro passo da enaltecida participação social é a celebração de seus processos: reconhecer que não existe mais uma causa prêt-à-porter. Se quisermos uma sociedade participativa politicamente, não podemos apenas comprar uma ideia, precisamos costurá-la.

Para mostrar alguma coerência nos traços da minha própria agulha, os movimentos que ajudo a construir – Bom Senso FC, Eu Voto Distrital, Doe Mais, Doe Melhor – têm, entre todos os seus defeitos, o mérito de ir atrás das minúcias.

Por trás deles, existe um desenho claro dos caminhos que levam à mudança. O que não significa dizer que todos eles tenham sido ou sejam bem sucedidos. Ter propostas e uma estratégia desenhada, na verdade, são critérios mínimos para um movimento social.

Uma democracia saudável não pode se apoiar em uma sociedade civil apadrinhada que vive a se mobilzar por diagnósticos; uma democracia saudável deve ser sustentada por uma sociedade civil independente e – para usar o termo em voga – propositiva.

Todos protestamos horrores ano passado. E agora, vamos continuar com o trabalho ou esperar mais quatro anos pra reclamar novamente? | Foto por Pedro Fonseca
Foto por Pedro Fonseca

Quer mudar o mundo? Mostre-nos como.

"É imoral pretender que uma coisa desejada se realize magicamente, simplesmente porque a desejamos. Só é moral o desejo acompanhado da severa vontade de prover os meios da sua execução.”
- Ortega y Gasset

Não há como fugir do diabo nos vincos da democracia. E, com o andar da carruagem, nossos alfaiates só costuram calças que não saberemos vestir.

* * *

Dois livros para se aprofundar:

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Nota do editor: esse texto surgiu da rede do Sonho Brasileiro da Política, uma pesquisa sem fins lucrativos e suprapartidária que busca entender a relação do jovem brasileiro com a política. O estudo tem o intuito de dar luz a novas mentalidades, novas forma de participação que já estão acontecendo e de influenciar a sociedade a compreender e se relacionar com a política.


publicado em 11 de Setembro de 2014, 09:40
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Ricardo Borges Martins

Cientista Político e ativista apostando em construções coletivas em lugares como o Pacto pela Democracia, a Virada Política e o Advocacy Hub. Pode ser encontrado no Facebook.


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