A maior aventura da vida: Cego e pilotando um avião

O Lucas é cego e isso não o impediu de aproveitar a chance de pilotar um Cessna 172 em pleno voo

Nota do editor: este texto foi fruto de uma conversa pinçada em outro artigo do PapodeHomem, "Como um cego viu o avião: A história de um piloto da Força Aérea Brasileira", e virou o artigo lindo publicado aqui embaixo, em que o Lucas Radaelli, cego, pilotou um avião e conta essa experiência mudou sua vida. Se você também tem alguma história de aventura para compartilhar com a gente, veja nossa convocação.

* * *

Logo quando terminei as panquecas, deixei os talheres caírem ao lado do prato, de modo que fizessem barulho quando batessem à mesa.

– Hoje, galera – comecei dizendo, esperando que todos já estivessem olhando para mim – eu vou pilotar um avião.

Um ou dois segundos de silêncio se seguiram, e gostaria de ter visto a cara dos meus amigos naquele momento. O motivo que não me permitia ver a cara deles era o mesmo que fazia com que ficassem espantados. Eu sou cego.

Meu nome é Lucas, e tenho 24 anos de idade. Nasci sem enxergar com o olho esquerdo e perdi a visão com o olho direito aos quatro anos de idade. Não me lembro muito bem de como foi crescer sem enxergar. Sempre estive rodeado de amigos, apoiado pela minha família e, mais importante de tudo, fazendo as mesmas coisas que as crianças da minha idade. Se por um lado eu fazia algumas coisas de modo diferente, o que importava é que, no fim, o resultado era igual. Foi assim que aprendi a andar de bicicleta sozinho na garagem de casa, um lugar do qual eu conhecia as medidas muito bem.

Mais tarde, foram várias as vezes em que meu pai cansou, enquanto corria ao lado da minha bicicleta, apenas me gritando quais direções seguir. Quando a velocidade a que eu queria chegar já era maior do que aquela em que meu pai conseguia correr, tive a ideia de colocar apoios na bicicleta do meu amigo. Eu ficava em pé, segurando nas costas dele, e ele pilotava pelas ladeiras de Cascavel (PR). Com esse mesmo espírito se seguiram várias coisas. Skate, carrinho de rolimã e qualquer objeto que conseguisse ir rápido o bastante.

Imagem retirada do filme “Hoje eu quero voltar sozinho”, de Daniel Ribeiro

Eu fiquei mais velho e essas brincadeiras na rua diminuíram um pouco. Passava horas no meu quarto: na Internet, lendo livros de fantasia, ficção científica e imaginando os mundos que os autores me contavam. Era como se eu conseguisse viver, no mundo real, todas as aventuras que eu vivia dentro dos livros. Sempre que alguém me fala, em tom de brincadeira, que Tolkien (autor de Senhor dos Anéis) conseguiria gastar meia página descrevendo uma folha de árvore, minha resposta é sempre a mesma:

— Ainda bem que alguém tem a paciência de me descrever como é o mundo.

Quem é cego não enxerga. Parece óbvio, né? Mas normalmente a cegueira é associada com várias outras coisas.

Não foram poucas as vezes em que gritaram comigo, porque, por ser cego, acharam que eu não ouviria direito. Já subestimaram minha inteligência várias e várias vezes, por acreditarem que eu teria dificuldade de compreender. Mas quem é cego só não enxerga mesmo. E, se o problema é não enxergar, eu tinha que consumir as informações que não vinham através da visão de outro modo. Acho que por isso a literatura sempre foi minha aliada. A cada livro que eu lia, era um pedaço deste mundo – ou de outros – que eu conhecia.

Com 16 anos, os autores que mais gostava de ler era J.R.R. Tolkien, Bernard Cornwell e Tom Clancy. Eu viajava o mundo lendo os livros do Tom Clancy, e foi provavelmente a partir destas leituras que eu comecei a gostar de aviões de combate. Já li alguns livros da saga do Jack Ryan, de Clancy, duas vezes: combates aéreos se desenrolavam nos céus, os porta aviões iam pro mar e eu sempre imaginava como era tudo isso. Foi mais ou menos nessa época também em que comecei a ficar muito fã de miniaturas de todo tipo. Aviões, blindados, carros de combate, action figures de Senhor dos Anéis. Eu tenho uma coleção dessas coisas, e minha favorita atualmente é a da Force of Valor – com tanques de guerra da II Guerra Mundial. Os detalhes são incríveis, e dá pra sentir cada um deles ao tocá-los.

O tempo passou. Cursei faculdade de Ciências da Computação e comecei a trabalhar no escritório do Google em Belo Horizonte – o que me deu chances de, além de comprar mais miniaturas, trabalhar em um lugar super maneiro. Trabalho no time de ranking do Google. Toda vez que alguém faz uma busca, um programa gigantesco roda, decidindo quais são os 10 melhores resultados a serem mostrados na primeira página: as melhores imagens, vídeos e por aí vai. Eu trabalho exatamente com o algoritmo que faz essa seleção. É difícil pra caramba, mas é divertido ao mesmo tempo.

A cena das panquecas, que descrevi no início do texto, aconteceu quando tive que fazer um trabalho com o time que fica na sede do Google em Mountain View, Califórnia. Foram duas semanas de viagem, e aproveitei o final de semana livre que tinha para passear ali por perto e encontrar alguns amigos. Um destes amigos, o Rodrigo, trabalhava no Google do Brasil. Mas havia se mudado para os Estados Unidos – imagino que – por um motivo principal: lá ele poderia construir o avião com que sonhava mais facilmente. Rodrigo é engenheiro, mas tem a aviação como paixão desde sempre. Enquanto trocávamos mensagens pelo Facebook ele me disse que, quando eu fosse para lá, a gente iria voar junto. Só nunca imaginei que esse junto seria do jeito como foi.

Fomos para o aeroporto e entramos em uma sala. Ele digitou algumas coisas em um computador e uma gaveta se abriu. Com uma chave em mãos, fomos para um pátio e, lá, nosso avião já nos esperava. Se isso pareceu um parágrafo muito curto pra acontecer muita coisa, é por que, de fato, esse processo todo não demorou cinco minutos.

Começamos a fazer uma inspeção por todo o avião – um Cessna 172, avião pequeno para quatro pessoas. Já faz um tempo que isso aconteceu, então não me lembro dos mínimos detalhes de tudo o que checamos. Mas o que guardo comigo é a lembrança de rodear o avião, tocar em várias partes dele e, com isso, começar a construir uma imagem mental de como ele se parecia.

Um Cessna 172 cruzando os céus

O Rodrigo queria voar e praticar algumas coisas para uma prova que faria na semana seguinte. Pelo que entendi à época, a ideia era validar o brevê de piloto, que ele tinha tirado no Brasil, nos EUA.

O voo começou. Me distraí nos momentos iniciais tentando entender a comunicação em inglês no rádio: perdia vários termos que não conhecia e o barulho do motor também atrapalhava o entendimento das conversas. Aparentemente, pra ser piloto, tem que treinar essa parte aí também.

Já em voo, a coisa mais interessante foi que, além de me explicar quais eram as partes do avião e procedimentos, Rodrigo começou a me mostrar como tudo funcionava. Eu deixava meus pés nos pedais do copiloto, as mãos no manche e, a medida que ele mexia nos controles dele, os movimentos se refletiam nos meus. Foi aí que comecei a sentir algo completamente diferente.

Como todos os movimentos dos controles eram espelhados, era como se eu enxergasse tudo o que estava acontecendo. Ele puxava ou empurrava o manche? Eu sentia, porque a mesma coisa acontecia no manche à minha frente. Ele virava para a direita ou para a esquerda? Eu sabia o quanto ele virava pra fazer isso.

Foi uma sensação completamente nova pra mim. Eu tenho uma noção, bem abstrata, dos movimentos que alguém faz quando dirige um carro. Mas não tenho uma ideia precisa de como são esses movimentos. O quanto é preciso virar o volante pra fazer uma curva na esquina? Quanto se deve apertar o pedal pra chegar nessa velocidade? Não sei. Mas ali, no avião, era tudo em tempo real. Depois de ter me falado passo a passo o que estava fazendo, Rodrigo disse:

– Agora é sua vez. Você vai pilotar.

Eu segurei os controles com o maior cuidado possível. Ele me disse que eu não deveria fazer nenhum movimento brusco, e segui isso à risca. A primeira coisa que pensei foi: “se eu tentar fazer ele subir muito rápido, de maneira muito inclinada, vai que o motor não aguenta e a gente perde potência e velocidade?”. Sim, eu li isso nos livros.

Eu sabia que Rodrigo estava com as mãos nos controles dele para corrigir na hora caso eu fizesse alguma besteira, mas eu tinha plena consciência de que devia seguir todas as instruções dele. No começo eu fazia algo mínimo, tipo puxar ou empurrar o manche alguns milímetros. Deixava o resto com o Rodrigo. Depois disso, fomos nos arriscando a fazer algumas curvas simples. Eu fazia um pouco, ele terminava o movimento. Até que chegamos a um ponto em que eu conseguia fazer o básico do básico sem que ele precisasse interferir.

Foi quando fizemos uma curva bem aberta, mas ainda assim uma curva, para não sobrevoar o campo da NASA que fica perto de São Francisco. Na época eu achava que a gente não podia voar por cima dele, mas foi só por diversão mesmo.

Depois disso, tentamos várias coisas. Ele deixou o avião levemente inclinado para a direita e me perguntou: “estamos retos?”. Voltou ao normal e perguntou de novo: “e agora?”. A intenção era saber se as pessoas cegas também tinham as mesmas percepções, às vezes errôneas, que as que enxergam. Às vezes parece que a aeronove está reta, mas na verdade o avião está inclinado (ou o contrário). Aparentemente, quem não enxerga também precisa de treino - eu errei várias vezes a inclinação correta.

Acho que o momento mais legal dessa viagem toda foi quando mergulhamos.

Eu empurrei o manche para a frente e começamos a ganhar velocidade. O Rodrigo ia lendo os valores de altura para mim, por que não queríamos descer tão próximos ao solo (os mostradores eram digitais, mas não falavam).

Eu chamei a experiência de frio na barriga, mas ele me disse que aquilo era o “G negativo”. Era como se desprender do corpo. Sentia que estava caindo e caindo, e o avião como um todo parecia não vibrar mais.

Com aquela emoção toda, era fácil imaginar outras coisas. Foi fácil me imaginar em um dos livros do Tom Clancy. Achar que eu estava voando para o ataque, que estava em combate. O botão do rádio perto do meu indicador agora soltaria um míssil. Essa era a missão, e iríamos cumpri-la.

Link YouTube

Associo momentos bons com música, e Night Witches, do Sabaton, não saía da minha cabeça.

– Nivela, disse o Rodrigo.

Voltei para a realidade, e voltar pra realidade não foi uma coisa ruim.

Foi nessa realidade que eu pilotei um avião.

Mecenas: BMW Motorrad

Aventuras tem o poder de transformar.

Para a BMW Motorrad, cada viagem ou experiência para o desconhecido nos fazem pessoas novas. Conhecendo lugares, fazemos amigos e passamos por obstáculos. Por isso, a BMW Motorrad será mecenas desse canal de aventuras no PapodeHomem.

Queremos ouvir e contar histórias reais de pessoas que viveram façanhas transformadoras como o Lucas, que pilotou um avião mesmo sendo cego.

Conte sua história aqui ou nos comentários e ela poderá ser o próximo artigo da série. Se você conhece alguém com alguma proeza digna de ser recontada, traga pra gente também. 

Conheça mais a linha GS da BMW e entenda o verdadeiro espírito de aventura.


publicado em 19 de Agosto de 2016, 15:10
Lucasradaelli

Lucas Radaelli

É engenheiro de software, projeto de enxadrista, jogador de RPG e board games. Um dia quer ser um escritor de verdade, mas por enquanto só está vivendo as histórias para depois contá-las. Você pode me seguir no @lucasradaelli.


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura