O dengo do cão e o tabu do carinho

O curta-metragem "The Present" nos faz pensar sobre a maneira canina de pedir carinho sem amarras

Não sou uma pessoa de cachorros. Lá pros tempos idos da infância, entre os mais peculiares presentes que foram requisitados pros natais, entre barbies, patinetes e elefantes pra eu colocar na sacada, pedi um cão. Mas mamãe não era daquelas que gostaria de limpar tapetes manchados e, criada em fazenda, não chegou a achar justo prender um animal em noventa e um metros quadrados.

Resultado é que até hoje tenho de ver os rostos perplexos quando conto que não chorei assistindo a Marley e Eu, não consigo compreender muito bem quem posta no Facebook que prefere cachorro a gente, e, sinceramente, não confiro se a marca do meu rímel faz testes em animais ou não.

Cheguei à conclusão de que vejo cachorros como cachorros que são, e o que me parecia um sentimento frio até pouco tempo atrás vem se transformando em uma observação bonita dos bichinhos. Isso porque o seu comportamento, sem os véus da moralidade, por vezes me fascina.

The Present é o nome da animação de curta-metragem que, hoje, me pegou pelo coração. Quando um menino ganhou um cachorro, a porta se abriu e deu vazão pro mundo. Em pouco mais de quatro minutos, o filme consegue fazer pensar sobre a nossa fascinação pelo carinho dos cães.

O curta ganhou mais prêmios do que eu poderia citar, entre eles o do festival Anima Mundi 2015, aqui no Brasil. Foi feito por diversos estudantes do mundo, inclusive brasileiros, todos reunidos na Filmakademie Baden-Wuerttemberg, uma das escolas de cinema mais conceituadas do mundo que fica em Ludwigsburg, na Alemanha.

Mais curioso ainda é que a história veio, na verdade, de uma tirinha. A HQ de Fabio Coala, início de tudo, foi originalmente publicada no seu projeto Mentirinhas, que começou em 2010.

A destreza do cão peludinho é incrível. Agora sinto que posso dizer que a ausência de moralidade entre os animais é que pode fazê-los, por vezes, melhores que nós – e sem pieguismos aqui! Mas me refiro mesmo à capacidade canina de pedir por carinho sem pudores. À falta de limites morais na exacerbação de seus sentimentos.

Com um cachorro, não se pode outra coisa que não ser sincero. O bicho não entende figura de linguagem. Não entende repressões do inconsciente, o condicionamento de suas ações pela moral vigente, nem a fórmula de Bhaskara.

A perseverança e cara de pau com que pedem colo, carinho e atenção, com que viram de barriga pra cima na maior manha… Quantas conversas mais sinceras não poderiam surgir de uma comunicação não-verbal, do toque, do choro, sem as amarras da palavra e da nossa identidade social? Se, ao invés de escondermos nossas necessidades emocionais sob a casca de quem projetamos ser, conseguíssemos dizer o que é preciso pro nosso bem-estar mental, pra saúde das nossas relações? E a que identificação incrível e isso poderia dar início?

De certa forma, é isso que muitos de nós já buscamos, mas do pouco que sabemos sobre nós mesmos, já deu pra ver que a jornada é longa. É trabalho árduo ler as nossas próprias necessidades que se escondem debaixo do lençol opaco da moralidade, da cultura, dos costumes de vida. Complica mais quando precisamos enformar esse conteúdo em palavras pra trocá-lo com o outro que traz, também, sua própria bagagem.

Seguimos tentando, porém, porque quem dera conseguir deixar de lado orgulho, vergonha, hábito e sejam lá quais forem os motivos ocultos que nos impedem de pedir colo pra, copiosamente, querer dengo.


publicado em 12 de Fevereiro de 2016, 15:00
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Marcela Campos

Tão encantada com as possibilidades da vida que tem um pézinho aqui e outro acolá – é professora de crianças e adolescentes, mas formada em Jornalismo pela USP. Nunca tem preguiça de bater um papo bom.


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