O crepúsculo dos ídolos (do futebol)

Lá se vai o tempo em que nossos heróis morriam de overdose, hein, Cazuza?

Era triste perder um ídolo assim, de uma hora pra outra. Kurt Cobain, Renato Russo, James Dean, o próprio Cazuza, Jimi Hendrix, Janis Joplin, Jim Morrison, Castro Alves, Cássia Eller, Noel Rosa, Pushkin, Paulo Leminski e, mais recentemente, Heath Ledger, Roberto Bolaño e Michael Jackson. Vai tudo misturado, sem tentativas de equivalência, por favor, mas essa galera podia ter ido bem mais longe com um pouco mais de cuidado.

Quando mais velhos, esses prodígios nos brindariam com exibições do quilate de um Paulo Autran, músicas como as do interminável Caetano Veloso ou livros do nível do sereno Philip Roth, que, por outro lado, definiu muito bem a velhice como um massacre. Convenhamos, a morte prematura tinha lá o seu charme – atestava que o objeto da nossa adoração vivera intensamente e, mais do que tudo isso, preservava em nossa memória um ser humano fantástico no seu auge.

Não sei vocês, mas pra mim é triste ver a beleza morrer na velhice de uma Sophia Loren. Ei, vamos com calma, Sophia é uma senhora bonita, de uma beleza daquelas que combate as rugas até a morte, mas, reconheçam, hoje ela perde de 10 para sua versão de 20 anos. E não tem retrato que banque o envelhecimento, já diria seu Oscar Wilde.

Só a morte é capaz de preservar a beleza. Marilyn Monroe viveu bem menos que Sophia, mas é a mesma desde então.

Faça as contas

E o futebol?

É em tom dramático que chegamos ao ponto prometido no título. Se existe uma verdade inquestionável no debatível mundo do futebol é o fato de que os jogadores não sabem escolher o momento ideal para parar. O caso mais recente foi protagonizado pelo maior artilheiro das Copas do Mundo. Ronaldo poderia ter interrompido a carreira quando se contundiu gravemente pela última vez, ainda no Milan (onde já atuava dum jeito bastante limitado), e não teria manchado tanto a lembrança do fenômeno Ronaldo surgido no Cruzeiro.

Influenciado provavelmente por tantas outras voltas por cima, o Fenômeno voltou de novo, mas para ser escorraçado do Corinthians e ridicularizado pelo excesso de peso. Aposentadoria não é fácil. O cara recebe tanta atenção que acaba se acostumando, é muita mulher, é muito dinheiro. Orgias na Itália, festinha na favela.

Maradona caiu na mesma armadilha de Ronaldo, e qualquer palavra a mais sobre o assunto seria covardia com el pibe. E Romário? Parou com um pouco mais de dignidade, mas, obcecado pelo milésimo que o equivaleria a Pelé, alugou a pequena área no fim da carreira e foi jogar até na Austrália.

Esse se agigantou em campo (e o futebol perdeu espaço)

Podia ser pior. Túlio Maravilha (lembra dele?) persegue a mesma marca, mas tem contado gol até em amistoso contra time de fraldinhas. Mais exemplos? Rivaldo esticou a corda até perder posição para o vigor juvenil da molecada do São Paulo, Petkovic ficou no Flamengo até ser mandado embora, Zidane esperou por um vexame numa final de Copa do Mundo para parar.

Eles não encerraram a carreira, foi a carreira que encerrou com eles.

A disposição dos craques para desmitificar a própria carreira é tanta que faria inveja ao perna-de-pau Friedrich Nietzsche. Ah, Nietzsche, mas no futebol a gente não ganha nada em perder ídolos...

Link YouTube | Monty Python e o futebol dos filósofos

É aquele lance da beleza, lembra? A velocidade regulada, a questionável forma física, a movimentação relutante, tudo resumido na maliciosa expressão “atalhos do campo”. São os limites do corpo. O craque que envelhece aos olhos da massa expõe toda a humanidade em sua incapacidade para o eterno.

Como ousa? Bem, é difícil parar. O cara não estudou e desenvolveu apenas aquela habilidade, que depende do corpo. Difícil encontrar uma alternativa aos anos de glória. E que figura mais triste a do ex-craque que se presta a participar de transmissões televisivas e, sem recurso intelectual, submete-se a repórteres de intelecto inexpressivo e digladia-se com a língua portuguesa, tropeçando em concordâncias e plurais. É muito o que eles têm a perder. Mas a ganhar também.

Provavelmente os jogadores não percebem, mas sua insistência em permanecer nos gramados além do tempo relativiza suas proezas mais brilhantes. Vocês têm assistido aos jogos de Showbol? Dá pra perceber que os caras sabem jogar, mas o corpo não responde mais, submete a genialidade.

É claro que a obra da vida dos caras está aí, gravada e fotografada, e aí permanecerá, mas (e vocês hão de desculpar a obsessão proustiana de comparar tudo a arte por aqui, que eu tô meio obcecado) os elogios ao brilhantismo de Guerra e Paz ou Anna Karenina costumam vir acompanhados de cutucadas nas pirações religiosas do fim da vida de Tolstói.

Zumbis em campo

Quando desafia o tempo, o craque joga contra nós, enquanto humanidade, mas contra ele também. Atenção, boleiros: no futebol, parar no auge é preservar a beleza de uma bela arrancada, duma bicicleta certeira, dum elástico bem dado. E, neste caso, não precisar nem morrer.

O problema é que a carreira dos jogadores parece estar ficando cada vez mais curta. Adriano e Ronaldinho Gaúcho são os exemplos mais claros da decadência campestre. Talvez possamos incluir o Shevchenko e o Raúl nessa lista, para não ficar só no Brasil (para o texto não ficar sem exceção, menciono Seedorf e Rogério Ceni como um veteranos de nível atuando por aí ainda).

Que a torcida do Mengão não me ouça, mas o que é aquilo? O Ronaldinho não acerta um passe, e todo jogo tenta acertar as bolas de um adversário. Não, não venham com essa onda de que tá tudo bem, marcando gol e dando assistência contra o Madureira. E agora é o Adriano no Corinthians, depois de passar uma banda na Inter de Milão e outra na Roma, o Imperador chega de novo pra tocar o terror. E o Robinho, que surgiu como novo Pelé (lembra?) e agoniza num senta e levanta no banco do Milan?

É impressão minha ou as carreiras estão morrendo cada vez mais cedo no futebol? Sei lá, mas que tem um monte de zumbi andando em campo, ah, tem.


publicado em 27 de Março de 2011, 05:31
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Rodolfo Borges

Jornalista e editor do osgeraldinos.com.br. Teórico do esporte bretão, acredita que não gostar de futebol é um desvio de caráter. Alimenta pretensões literárias com alpiste, mas lê muito e escreve pouco. Entulha o pouco que escreve em literaturadeverdade.wordpress.com.


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