O caixa rápido do mercado

Nada mais justo nesse mundo que o caixa rápido do mercado. Barack Obama ficaria orgulhoso.

"Aqueles que possuem mais, gastam mais tempo. Os que sobrevivem com até 20 itens, despendem menos tempo"

Que delícia. Andar triunfante rumo ao caixa que passa tudo na velocidade da luz, a mocinha mais rápida do oeste do mercado, atirando códigos de barra e acertando na mosca, bem no centro do leitor óptico. Um talento nato. Passa gente, passa produto, sem nota fiscal paulista, sem ser credenciado, apenas bota o cartão, digita a senha e "próximo!". Uma agilidade fordiana sem igual.

"Nada mal"

Domingo pede uma refeição mais elaborada, aquele tempo gostoso conversando na cozinha, ouvindo jazz, deixando o mundo lá fora a deus dará. Antes de não me importar com mais nada, fui ao mercado na frente de casa comprar meia dúzia de coisas. Moleza.

Andei altaneiro pelos corredores, com uma certeza de CEO do almoço dominical. Olhar preciso, o poder da escolha livre, uma coisa aqui, outra acolá e estava pronto pra ir embora sem deixar rastros. Estava eu a caminho da fila do caixa rápido.

Ah... a gostosura de entrar numa fila pequena, com pessoas sensatas carregando um tiquinho de manufaturas. Nada que não possa ser carregado numa mão só. Pessoas espertas, pessoas de bem, todas conhecedoras do decoro do caixa rápido. Haviam 6 pessoas na vila. Eu era o quarto dessa prole daqueles que lutaram pelo direito de transpassar rapidamente aquela linha quase soviética de protetores do pagamento. Houve, n'outros tempos, aqueles que batalharam, com rabanetes e farinha em mãos, pelo direito humano de ester entre os seus, em meio àqueles que não saem do mercado com o carro cheio de sacolas, com estoques de massa, de chocolate, com caixas completas de leite longa vida. Não se trata de um apartheid do consumismo alimentar e de limpeza. Estamos falando de um equilíbrio de tempo/espaço. Naquele momento, eu representava todos aqueles que morreram em filas de 18 carrinhos abarrotados para pagar um pacote de biscoito.

"Caixa rápido, hein. Só se for no nome"

Proferida a frase enquanto se virava pra ganhar apoio, o careca à minha frente olhou para trás e sorriu um sorriso malicioso pra jogar toda a sua frustração daquela falha no processo. À frente, duas senhorinhas empacavam a procissão dos que pouco levavam. Não encontravam o dinheiro, não lembravam a senha do cartão, não sabiam nem se tinham cartão. Lá na frente, na boca do caixa, o tempo caminhava sem pressa.

"Pois é. Eu já até parei de contar os minutos pra não xingar alguém"

O garotão atrás de mim parecia um pouco menos intencionado ao sarcasmo. Um cara barbado, olhando pro alto e para os lados, mas vendo apenas o seu dia escorrer pelos dedos. No meio disso tudo, eu, preocupado mais em resolver o quiprocó que se empacava à frente do que vomitar frustração com estranhos. Contudo, a cada reclamação, concordei com a cabeça.

Uma visão triste desses dois

Silenciosamente, começou a se pintar em minha cabeça a noção de que não éramos os passivos da história. Pera lá! não somos as vítimas, tão pouco os algozes. Somos o baluarte dessa prática ocidental contemporânea! Somos guardiões do que, de verdade, representa aquela placa pendurada com o suor de muitos, dizendo que o caixa é, de uma vez por todas, rápido. Se as senhorinhas não possuem mais a destreza de preservar essa verdade absoluta, há se sermos nós os belicosos com a missão primordial de estabelecer a ordem, a estabilidade, a igualdade média desse direito adquirido. Lutemos então!

Foi lindo. Éramos os três mosqueteiros da velocidade, os três pilares da verdade do tempo economizado, éramos como Rômulo, Remo e a loba, prontos a fundar o mais novo império que iria se dissipar por todas as redes de supermercado. Passaríamos nossas compras como nunca se havia visto, tampouco comentado nesse mundo. Digitaríamos nossos quatro dígitos com o poder destuidor uma metralhadora automática a derrubar cada segundo a mais naquela situação. Nós éramos os maiorais, os melhores, nós éramos demais!

Nós éramos os três patetas.

Ao chegar a vez do tiozão careca, depois de passar seu itens, o pouca-telhas resolveu informar que não havia encontrado pilhas, que queria comprar pilhas. A mocinha do caixa, sem se importar com a brilhante função que carregava consigo - a de fazer tudo rápido no caixa rápido - explicou com todas as parcimônias que as pilhas estavam no balcão após o caixa. O senhor de alguns fios de cabelo queria pilhas. A menina apertou o botão, esperou a outra mocinha de patins chegar e pediu pilhas. Lá foi a menina sobre rodinhas buscar as pilhas. Ao chegar, foi verificado pelo careca que eram pilhas erradas. Ele queria maiores. Repetiu-se o processo. Chegaram outras pilhas, essas sim corretas.

Tendo a exata noção que perdemos um homem da pequenina infantaria dos segundos perdidos, me virei para pedir apoio ao garotão de trás. enxerguei-o 2 metros na retaguarda, feliz e presunçoso jogando joguinho no celular, rindo a beça enquanto empacava ridiculamente a fila que se formava atrás dele.

Eu era a derrota de Jack.

...

Com um desgosto sem fim escorrendo grosso pela garganta, fui até o caixa e murmurei que não tinha o cartão da loja, que não queria nota fiscal paulista, que pagaria em dinheiro. Peguei o troco como Judas pegou o punhado de moedas ao se arrepender de trair Jesus. Elas pesavam em minha mão, escorregavam vergonhosas pra dentro da abertura da minha carteira.

Naquele dia, não almocei direito.


publicado em 12 de Dezembro de 2012, 22:00
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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna Do Amor. Tem dois livros publicados, o livro Do Amor e o Ela Prefere as Uvas Verdes, além de escrever histórias de verdade no Cartas de Amor, em que ele escreve um conto exclusivo pra você.


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