Eu sou uma grande enganação.
Mas se existe algo em que não engano, é na memória. Ou pelo menos em 50% das vezes.
Eu tenho boa memória, cara. Boa memória para futebol, por exemplo. Um dia até achei que poderia seguir carreira com isso. Fiz faculdade de jornalismo e sonhei trabalhar como repórter de campo. Desisti quando, após a primeira aula de rádio na faculdade, a professora argumentou sobre a minha voz:
— Ainda bem que você sabe escrever.
Mas eu já havia sido infectado. Consigo relatar gols, corrigir dados e citar escalações de maneira assustadora. Esse domínio me coloca numa posição de respeito. Quando me perguntam como consigo, respondo cheio de certeza:
— Eu fui colecionador de figurinhas dos anos 90.

Já contei essa história, mas faço questão de relembrá-la para introduzir a análise. O meu primeiro álbum de figurinhas foi o de 1996. Completei. Na raça. Nos acréscimos. Suplicando para o pai trazer um pacotinho depois do trabalho, economizando a grana do lanche do colégio e no bafo. Sim, no bafo.
Confesso que não tenho ideia de como esse grande e com potencial Olímpico esporte é conhecido na sua cidade, mas em Porto Alegre (RS), na Zona Sul, em Ipanema, no Colégio Odila, é bafo. Consiste em juntar as figurinhas de cabeça para baixo numa pilha e tentar virá-las batendo com a mão. Quem virar, leva. E a única e mais importante regra trata-se de: não é permitido encostar na figurinha.
Naquele período de 1996, mais precisamente no final de outubro, só faltava um rosto no meu álbum: o César Prates, do Inter. Fui até diversos pontos de troca. Em vão. Comecei a achar que aquele seria um álbum incompleto. Até que surgiu a notícia:
— “Acharam, acharam o Cesar Prates” — dizia o Pancinha, grande amigo que falava assoviando e havia perdido todas as figurinhas durante fiscalização surpresa da diretoria. — “O Pires tem e vai jogar” — complementou.
Justo o Pires. O Pires da sétima série. Pires era tipo o melhor do bafo. Ele não colecionava, apenas jogava. Era o prazer dele: rapar. Tinha uma lancheira dos Cavaleiros do Zodíacos com mais de 500 figurinhas repetidas. Ele era o Pelé do bafo. O Michael Jordan. O Zorro. O Gustavo Gitti.
Pires era conhecedor dessa minha necessidade. Era ele ou ninguém. Assim, propôs o Cesar Prates contra meu álbum.
— “Ohhhhhhh…” — fez-se nos pátio.
Pedi para ver o Cesar Prates. Estava lá e em bom estado. Pensei duas, três vezes. Não podia ratiar. “Ok”, concordei. Aplausos. Nunca o Odila havia visto um acontecimento daquele tamanho tirando a famosa bomba no banheiro de 1992 — sim, eu estava lá.
Ele colocou o Cesar Prates virado no chão e aguardou meu movimento.
— “Matar ou morrer” – disse.
Resumindo: se eu virasse, era minha. Se eu falhasse, ele levava o álbum. Aceitei mais uma vez. Que pena que as câmeras digitais não eram populares naquele época, que pena.
Levei minha mão sobre o ombro direito. A respiração de todos num raio de 30m simplesmente parou. Quando esperavam meu tapa, surpreendi. Saquei o Dinho, capitão do Grêmio em 1996, e o coloquei no agora monte. Antes que o Pires da sétima série ameaçasse qualquer reação, lembrei a todos que eu havia, até aquele momento, acatado todas as exigências do meu adversário. Ou seja, ele não tinha moral para discutir.
Virou um Grenal no bafo. O negócio ficou pessoal. Tranquei a respiração, fiz o movimento característico dos grandes jogadores e dá-lhe bangornada. POW. Levantei a mão poucos centimetros do chão e mantive meus olhos fixos nas figurinhas. Tanto o Cesar Prates quanto o Dinho subiram, rodaram e cairam. Em pé! Ambas, encostada uma na outra. Silêncio. Qualquer movimento poderia interferir no desfeixo.
As figurinhas começaram a escorregar, uma de frente para a outra e cairam. De um lado, o Dinho. Do outro, um Cesar Prates olhando para o alto e sorridente, certamente por estar à caminho do meu álbum.
Aquele dia entrou para a hitória do bafo gaúcho, sendo lembrada até hoje por quem estava lá. Quem não estava, jura que viu de longe. Ou pelo menos ouviu os gritos.

Foi lançado há poucas semanas o Álbum do Campeonato Brasileiro de 2012. A edição desse ano vem com novidades, como a volta do direito de usar times como o Flamengo e Corinthians , o formato diferente de cromos para a Série B e a ilustração de um jogador de cada time feita pelo Estúdio Maurício de Souza. A maior novidade é a versão online, onde o álbum pode ser compartilhado com outros usuários.
A disposição dos jogadores na diagramação continua a clássica. O que sofreu enorme alteração foi o conteúdo textual dos clubes. Não há, como em décadas passadas, a história e dados genéricos da instituição, as informações do estádio e a classificação do time em todas as edições — apenas nas três últimas. Essa limitação economiza espaço e foca, claramente, no número de figurinhas. Além dos jogadores — inclusive reservas, há o símbolo, o mascote e a já citada ilustração do pai da Mônica. Isso rende 500 figurinhas. Sendo que os jogadores da série B são 3 em 1.
Quinhentas figurinhas. E uma pressão: completar!
É evidente que o motivo dessa inflação de cromos visa o lucro. Até aí tudo bem, nada impede que a Panini deseje bater recordes de vendas em 2012. O que realmente incomoda é o desprivilegio da informação. Com o aumento de adesivo e páginas com publicidade, foram limados os bons e velhos gráficos históricos. Se em 1996, como pode ser visto na página acima há dados detalhados dos atletas, em 2012 isso não existe por um motivo simples: não há espaço.

Desde o da Copa do Mundo de 2010, quando, durante uma reunião de colecionadores, uma mãe desesperada me ofereceu dinheiro em troca da figurinha que faltava ao filho, percebi que o consumo do álbum está cada vez mais escasso. O livro perdeu sua funcão de inicial: a de informar. Isso explica, inclusive, o motivo da Panini limitar as pesquisas históricas dos clubes nas edição. Ninguém mais quer saber disso.
Depois de 1996, nunca mais completei um único álbum. Mas sempre colecionei e e fiz questão de guardar todas as edições. É um prazer, mesmo com cromos faltando, conferir as alterações nos dados dos clubes, as evoluções e as transformações dos jogadores. É o valor do arquivo orgânico, onde você sente a textura e o cheiro do papel, remetendo a uma época e memórias perdidas. Essa educação do álbum que me fez ter boa memória para futebol.
Até compreendo a ânsia para finalizar os espaços vazios, mas não concordo com a pressa. O que fizeram com o ritual de colar a figurinha? Todo o processo de olhar o nome do jogador, a posição, colar na página dupla do clube e ver o álbum cada vez mais grosso ficou no passado. Culpa de uma geração imediatista e acostumada, afinal, as pessoas são outras. Ninguém mais lê o álbum do Campeonato Brasileiro.
Completar o livro, um prazer que fez parte do aprendizado de persistência de muitos, tornou-se um motivo de exibicionismo. Essa necessidade compulsiva e compulsória de não falhar motiva caminhos mais curto. Algo que limita a inocência e encerra a diversão.
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