O aborto espontâneo na perspectiva do pai

No primeiro dia quando me mudei para Dallas acordei com o som de minha esposa chorando alto no banheiro. Só podia ser uma coisa. Eu estava certo.

Estávamos grávidos. 13 semanas. Portanto, basicamente bem no período em que se espera que as coisas, estatisticamente, sigam bem daí em frente. Mas, como diz minha esposa, Melissa, “Sou amaldiçoada, então estatísticas não valem para mim.” Ela começara a sangrar. Não parecia muito forte, mas era sangue, e isso nos remeteu a uma sombra passada de medo, angústia e insanidade...

Em julho de 2013, 2 anos e meio atrás, perdemos nosso filho Rowan numa gestação quase completa. A gravidez dele pareceu razoavelmente normal. Havíamos nos mudado de São Francisco para Portland, para ficarmos mais próximos da família. Em uma única ida à emergência do hospital todos os planos se desfizeram. Explodiram produzindo muita fumaça, mudanças a aceitar por algum tempo.

13 semanas não é uma gravidez muito adiantada. Mas é uma gravidez. É uma vida. É uma coisa pela qual você muda tudo ao redor, e a si mesmo também. É algo para que alguém precisa se abrir. A vida dentro da mulher começa a falar com ela quase imediatamente. A língua do corpo, enjoo, náusea, fome, nervosismo, premonições.

Era o que estava acontecendo com a gente. Mas agora acabou.

Falamos com alguns especialistas de nossa cidade natal, “sigam até uma emergência, se puderem, e façam um ultrassom para verificar as coisas.” Fizemos isso. Levou quase o dia todo. Tentei não ficar chateado por não ver meus amigos logo que cheguei na cidade, uma ocasião especial para quem quase que se fala apenas pela internet. Mas me portei bem. Sei como não desconsiderar os impulsos da maternidade. Tivemos que esperar o técnico de ultrassom, já que eles não têm um disponível no local para emergências. Assim, aguardamos.

Eu conhecia essa sensação, esperar por um técnico de ultrassom. Aconteceu a mesma coisa com o Rowan. “Eu realmente não quero que outro médico olhe uma tela de ultrassom e diga, ‘fico bem chateado de ter que dizer isso...’”

As imagens do ultrassom são gradientes de preto, como nuvens e bolhas. Eu vi uma bolha que sabia que era nosso bebê (não foi meu primeiro ultrassom... de forma alguma). Mas com 13 semanas o feto é muito pequeno. Aparentemente, com 13 semanas o bebê já tem digitais únicas. Mas não dá para ver as digitais nas bolhas e nuvens da tela.

No momento do ultrassom da emergência não há uma tela disponível para a mãe. Eles mantém a visão toda com o medico. Mas os pais podem ver. E eu vi. Como com Rowan, eu sabia. Não havia movimento, apenas uma calmaria. O coração já totalmente desenvolvido geralmente é muito claro na tela, mas só calmaria. Fiquei sabendo antes da Melissa.

Dessa vez eu já sabia. Isso é muita responsabilidade para um homem, esses momentos entre a tela e a fala do médico. Nesse caso o técnico precisou ir embora sem resposta, ele não podia nos dizer nada, já que a lei diz que isso deve ser feito pelo cara “que ganha bem mais do que eu”, o médico. Melissa e eu ficamos uns bons 30 minutos um com o outro, esperando o médico chegar.

Eu não tinha certeza se devia dizer o que vi. Num dado momento achei que sabia bem o que havia visto. Bem, eu sabia, mas eu não queria deixar aberta a possibilidade de erro, já que não sou um técnico de ultrassom, e não sei bem o que é o que (especialmente nesse estágio tão precoce da gestação).

Mas certa parte eu conhecia muito bem.

Quando você vai fazer um ultrassom normal no início da gravidez, a melhor parte, o evento principal, são as batidas do coração. Eles ligam o som e você ouve os sons líquidos esquisitos enquanto se procura o bebê e então… ali está… o técnico movimenta até encontrar. E como num filme em câmera lenta, um belo ângulo do coração batendo. Você pode ouví-lo como um gerador velho e fiel num casebre, ronronando no seu tempo compassado. E você também vê na tela de LCD as batidas na linha do tempo, enquanto o batimento é medido visualmente. Dá para ver como se em pleno dia.

Naquele dia em Dallas nosso técnico não ligou o som, mas a tela mostrava tudo. Não havia batimento.

“Batimento.” Quando o técnico saiu e ficamos esperando o médico eu quis dizer a Melissa o que vi, mas “batimento” parecia uma palavra muito elaborada. Diz algo sobre a pessoa que seria nosso filho. Médicos usam termos como “término” para serem exatos, ou, apenas posso conjecturar, proteger os pais de algum modo desse tipo de personificação. (Eles precisam fazer isso o tempo todo, não os culpo.) E, nesse espaço, quando estávamos esperando pelo médico, eu não sabia o que dizer a Melissa – aquela que deu vida ao batimento que uma vez havia. Eventualmente, deixei escapar, “Eu realmente… eu acho que o bebê se foi... não havia batimento... aquelas linhas pequenas embaixo.”

É durante o ultrassom que o bebê se torna uma pessoa para mim. Como pai, você não sente os impulsos da gravidez em seu corpo. Eu não senti bem a pessoalidade de meu primeiro filho até que ele começou a mostrar sinais de me reconhecer. Como com Rowan, não aconteceu até eu ver seus dedos intensamente delicados e detalhados. (Eu ainda perco o ar quando percebo que nunca vi seus olhos.) No ultrassom eu vagamente consegui discernir os braços e pernas, o contorno desse bebê, sem saber o sexo, e dessa forma ele ou ela se tornou algo real para mim. Até aquele momento havia sido apenas planos e datas no calendário, e agora se tornara essa pequena pessoa isolada que existia em algum sentido real.

Talvez você se torne uma pessoa quando seu coração começa a bater. Os médicos não nos pronunciam mortos quando o coração para, mas quando cessa a atividade cerebral. A atividade cerebral começa a se mostrar bem regularmente (com eletroencefalograma ou algo assim) com 25 semanas de gravidez. Parece que não importa onde se trace a linha que indica que alguém se torna humano, se está sempre fazendo a mesma coisa que um trabalhador de campo de concentração faz: definir fronteiras, quem está dentro, quem está fora.

Quando me apaixonei por esse bebê, quando passei a amá-lo ou amá-la, foi aí que tive um sentido real de perda. Não só uma perda porque dessa vez estava tudo tão perfeitinho marcado no calendário – com alguns amigos tendo bebê quase ao mesmo tempo, e com alguns feriados bem posicionados na agenda. Não só porque estamos tentando ter um filho há cerca de quatro anos, depois da perda de Rowan, a gravidez até o último momento completa e saudável. E não só pelo planejamento e pelo calendário e pelo esforço, mas pela perda dessa pessoa pela qual só agora eu reconhecia me importar tanto.

E é preciso saber que os abortos espontâneos ocorrem de verdade. Ocorrem frequentemente. 15-20% das gravidezes nos EUA acabam em aborto espontâneo. É bem perto de uma em quatro. Já sofremos aborto espontâneo numa ocasião antes dessa, antes de Rowan e de nosso filho saudável de seis anos, Aiden. Esta foi nossa quarta gravidez. Somente um entre quatro sobreviveu para nós.

É difícil para minha esposa não se sentir amaldiçoada. Em vez de um espaço aconchegante para seus filhos ela visualiza seu corpo como algo perigoso e inabitável. Ela considera Aiden como nosso milagre, aquele que sobreviveu ao clima inóspito de seu corpo defeituoso. Já imaginou se sentir assim? Já imaginou como é difícil manter esses pensamentos em cheque, e fazer surgir um sentimento de esperança e amor próprio perante eles? Como lhe deve ser cansativo viver em meio a uma perspectiva em que a vida surge abundantemente, sem ajuda, por todo o planeta.

Se essa mentalidade se arraigasse, ela envenenaria todo o jardim. Nós nos preparamos para lidar com isso. Gravidez, maternidade, paternidade, família, tribo, vila – são todos nomes pelos quais a vida sobreviveu, e formas pelas quais continuamos prosperando enquanto espécie. A maioria de nós não lida com vida e morte de forma tão regular quanto nossos ancestrais lidavam, mas ainda temos as ferramentas para isso. É um código profundo em uma língua ancestral. Você mesmo pode ainda não ter passado por uma perda pessoal profunda, mas é bastante provável que venha a passar por uma. Você pode não ter passado por essa experiência singular de perder um dos seus. Mas, se você seguir na direção da recriação da vida humana, venha seu filho a sobreviver ou não, você vai sentir mais do que consideraria possível.

Por favor, nos ajude a nos abrir, e ajude a si mesmo se abrindo a essa grande vulnerabilidade. Algumas vezes parece que as coisas por todo o lado conspiram para nos fechar e endurecer. Mas mesmo agora – talvez especialmente agora – a vida é vasta. Quero seguir dando boas-vindas à vida com tanto amor quanto possível.

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Esse texto foi originalmente publicado no Medium do autor.


publicado em 03 de Abril de 2016, 00:05
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Chase Reeves

Co-fundador da Fizzle.co. Existencialista, místico relutante. Quer viver o bem e a verdade, trabalhando nesse sentido.


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