Nunca pensei que seria um cara estranho, fui um cara estranho

A gente acha que ser estranho só acontece com os outros. Nem sempre.

Depois que tudo acabou, abruptamente e sem explicação (e, é verdade, algo que sequer começara), fiquei um pouco frustrado. Foi tudo muito rápido, mais do que eu era capaz de processar. Passei do estágio da indignação para o de lamento profundo, ambos tentativas falhas de me convencer de que, afinal, não valia tanto a pena. Talvez não tivesse valido mesmo, sei lá. Nunca saberei.

Um tempo depois, já mais conformado, desejei que você me desse um “oi” outra vez só para ter a chance de descobrir onde eu errara. Tipo um feedback, como a operadora de telefonia faz quando ligo ao SAC para reclamar que a Internet de 300 mega não roda vídeos do YouTube sem engasgar. Aperte “cinco” se fui um cara legal por quem você apenas não se interessou, ou “um” se fui um babaca irremediável sem perceber.

Falando sério: foi algo que eu fiz? Alguma bobagem que falei? É minha aparência? Minha risada soa esquisita, meu nariz estava sujo, ficou uma folhinha de salada no meu dente? Cheguei a enrolar a língua com apenas três cervejas? Repassei mentalmente aquela noite inúmeras vezes desde então e ainda não consegui achar o ponto de ruptura. É a única coisa que eu quero saber: o que me tornou tão desinteressante de uma hora para outra.

Porque foi naquela noite. Até então conversávamos e havia interesse mútuo. Ora eu te procurava para conversar, ora era você. Eu me divertia, e você também - parecia, pelo menos. Um encontro era o próximo passo, o caminho natural. Não imaginei que nossa presença no mesmo espaço-tempo, sem o intermédio de telas, da Internet, pudesse ser tão devastadora. Foi. Acho até que esse episódio me credenciou a figurar na sua lista de caras estranhos, embora tenha dificuldades em entender o porquê. Eu nem sei qual o motivo. Essa é a pior parte.

Nunca pensei que seria um cara estranho, fui um cara estranho.

Caras estranhos são caras que se interessam por uma mulher e, às vezes sem perceber, às vezes intencionalmente, fazem alguma coisa constrangedoramente idiota na tentativa de salvar uma situação que, de antemão, sem que eles percebam, já está perdida. 

Está decidido, ela decidiu, você começa derrotado e o que está em jogo não é vocês, mas você: se você será outro cara estranho sobre quem ela falará ao próximo candidato a cara estranho.

Faço esse prognóstico com tanta segurança porque, a mim, ela citou vários deles. Não sei qual é a etiqueta para falar de ex num primeiro encontro. Eu não ligo, para ser sincero, especialmente quando são todos caras estranhos como eram os dela. Se não fossem, não mereceriam histórias contadas aos risos, em tom de estupefação com pitadas de surrealismo. 

Quando “Acredita!?”, “Foi isso, eu juro!” e outras expressões de incredulidade são usadas para encerrar histórias de rompimentos, pode ter certeza: era um cara estranho.

Teve um com quem ela saiu menos de um mês e, na primeira reunião de amigos na casa dele, foi recebida pelo pai do cara estranho, que o havia instruído ou dado a entender que era ok chamá-la de “nora” — ou, ainda, talvez seja um lance genético. 

Outro, cobrava relatórios minuciosos dos dias dela, como se fosse um diário de bordo, e ficava irritado com lacunas. “Onde você estava às 17h14min? Por que não ligou para mim após o jantar? ONDE VOCÊ JANTOU E O QUE COMEU??” 

Detalhe: eles tinham saído uma vez. 

E teve o cara que, na primeira vez em que saíram, só queria beijá-la, nada mais, como um adolescente retardado com hormônios em ebulição aos vinte e tantos anos.

Saber onde errei é mais do que ficar em paz sobre um futuro não realizado com alguém que me derrubou de cara, uma dessas raras pessoas em quem a gente bate o olho, conversa uma ou duas vezes e já se imagina curtindo domingos preguiçosos em casa e planejando viagens a dois. É muito mais que isso. Essa informação é imprescindível para me resgatar do balaio onde ela guarda os outros caras com quem não deu certo, esses aí de cima, os totalmente errados, os bizarros, os caras estranhos.

Não quero tomar a iniciativa de entrar em contato. Ela disse que faria isso (nunca fez), então não quero dar (mais?) motivo para ser um cara estranho. Mas a incerteza da situação me leva a elaborar, vez ou outra, algumas ideias. Para um dia em que… sei lá, eu estiver bêbado e puder atribuir a isso uma recaída. 

Por um momento, por exemplo, me ocorreu mandar um e-mail daqui a alguns meses, quando eu estiver em alguma viagem. Sóbrio, claro.

Explico. Naquela noite, comentei que costumo viajar a trabalho. Ela respondeu que isso era legal, e disse para que eu me lembrasse dela quando estivesse numa próxima que fosse especialmente boa. Seria o gancho perfeito:

“Oi, desculpe-me entrar contato assim, do nada, e sinta-se à vontade para ignorar este e-mail caso prefira. Se não, como você está? Como anda aquele projeto complicado? (Aliás, já começou?) Viu o filme que você está super ansiosa pela estreia? Eu já, é ótimo! Estou viajando, a trabalho, e agora que parei um pouco e admirei a vista daqui, me peguei pensando em algo que você disse aquela noite, sobre eu me lembrar de ti num momento como esse. E também em como as coisas descarrilharam depois dela. Desculpe por qualquer coisa.
Ah, desculpe também por ter me apaixonado por você. Nem deveria estar dizendo isso, mas fiquei uns meses, ou melhor, estou até hoje com o coração partido por não ter tido uma chance. E, pior, por talvez ter me tornado um cara estranho sem nem saber a porra do motivo. Até isso eu tentei: te xingar mentalmente, tentar acreditar que você não tinha coração. Uma pena que não funcionou.”

Eu deveria ter pelo menos considerado esse desfecho. Afinal, todo mundo, até os meus amigos e conhecidos mais legais, foram estranhos em algum momento, sem notar ou, pior, sem nem dar motivos. Os caminhos são diferentes, o motivo, nunca o mesmo e nem sempre racional, mas todos uma vez na vida foram estranhos numa tentativa de relacionamento com outra pessoa.

Isso é meio como sair correndo pelado na chuva num dia bem frio: a gente nunca acha que pegará gripe, aí pegamos gripe. No caso, nunca achei que um dia me pegaria sendo um cara estranho. Não sou de insistir, lido bem com a indiferença, minha e dos outros. Achava, pois, estar blindado contra esse tipo de situação. Mas ela aconteceu, e é bizarro como quando acontece é de um jeito que você sequer nota — veja, eu ainda não sei onde errei, ou mesmo se errei.

Agora pouco entrei no perfil dela no Facebook. Faço isso às vezes para… sei lá, me torturar, talvez. Tinha uma foto nova, dela com algumas amigas se divertindo numa balada. Nos comentários, o quinteto parecia comentar os eventos da festa e, entre eles, havia um dela, desejando um “cara normal, kkkk”, porque até hoje não encontrara um.

É, eu fui só mais um cara estranho.


publicado em 28 de Julho de 2015, 11:06
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Rodrigo Ghedin

Escreve sobre tecnologia, estuda comunicação e vive tentando entender a convergência dessas duas áreas. Está à frente do Manual do Usuário, um blog de tecnologia diferente. Ele não sabe consertar seu computador.


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