Dois homens transaram na novela das onze. E agora?

Há quem aplauda e quem subitamente lute pela causa da hipersexualização da mídia. Mas vamos falar do que importa?

Na noite de ontem, a tevê Globo transmitiu mais um capítulo da novela das onze, Liberdade, Liberdade. Nela, os personagens André e Toletino, que vêm se envolvendo ao longo da trama, protagonizaram a primeira cena de sexo entre dois homens cisgênero da história da televisão brasileira.

Aos fatos

Lá nos tempos idos da novela Mulheres Apaixonadas, em 2003, as personagens Rafaela e Clara protagonizaram o primeiro selinho gay da televisão. Querendo ter seguido o mesmo rumo, a novela América, de 2005, quase chegou aos finalmentes com um beijo entre os personagens Junior e Zeca, mas a ideia foi rechaçada e a emissora deu pra trás. Foi só no último capítulo da novela Amor à Vida, em 2014, que vimos dois homens cis, os personagens Félix e Niko, encostarem boquinha com boquinha.

Algumas coisas ainda não havíamos visto nas nossas principais novelas, no entanto: um beijo verossímil, de língua, ardente, ao melhor estilo french kiss, entre dois homens ou duas mulheres, e uma cena de sexo ou que o implique.

À conversa

A Rede Globo é um dos mais importantes veículos de mídia do país e, de longe, a emissora com mais adesão dos brasileiros. Do ponto de vista técnico, é a emissora que tem mais recursos e mão-de-obra qualificada para produzir jornalismo e entretenimento na televisão, especificamente.

Sem entrar no debate acerca das orientações editoriais do jornalismo da rede, nem do gosto ou desgosto subjetivo por seus programas de entretenimento, a emissora produz o que há de mais bem acabado em mídia televisiva, e suas novelas são exportadas para todo o mundo.

São também as novelas que mais assistimos por aqui, e que assumem papel de pautar nossas discussões no ônibus, no trabalho, na mesa do almoço de domingo e nas outras mídias.

Nesse sentido, é extremamente importante e representativo que o sexo em outros formatos que não homem/mulher estejam igualmente retratados nos nossos produtos culturais. Se tais variações são parte do todo social em que vivemos e tecemos nossas narrativas, não faz sentido que essas histórias excluam parte desse todo.

A preocupação com a supersexualização desses produtos, no entanto, é válida (e haverá quem subitamente virá a se preocupar com isso só depois da cena de ontem).

O sexo como vemos na tevê é essencialmente heterossexual, fetichizado, implica expectativas muitas vezes pouco realistas sobre nossos corpos e comportamentos e pula quaisquer insinuações à camisinha ou outros métodos contraceptivos.

Além dos ideários problemáticos e potencialmente frustrantes que podem alimentar, a incidência de cenas de conteúdo sexual na televisão está correlacionada com maiores taxas gravidez na adolescência e a idade com a qual jovens dão início à vida sexual, de forma comprovada nos Estados Unidos e provável aqui nas nossas terras.

Mas a correlação não é necessariamente causa e consequência. Os motivos mais apontados para que ela exista não são o fato de cenas sexuais serem exibidas em si, mas justamente serem construídas de forma pouco educativa e realista.

Ao que realmente importa

Preconceituoso seria, no entanto, usar desse argumento pra criticar a cena de sexo que vimos ontem, especificamente. É claro que a conversa cabe, mas sejamos coerentes.

Se o que temos hoje é a presença de cenas de conteúdo sexual na televisão, nada mais justo e natural que retratos diversos da nossa realidade tenham lugar na ficção, especialmente quando esta assumiu o importante papel de pautar debates sociais.

Que seja também costumeiro e banal o beijo apaixonado entre dois homens, que seja uma oportunidade de conhecer o diferente, aquilo que nos causa receio, medo e, portanto, rejeição e preconceito.

A novela das onze nos deu uma oportunidade de exercermos a razão, o coração e o respeito. De encararmos as nossas dificuldades com o que não é espelho. Aproveitemos.

Afinal, sexo é sexo, e você também gosta.


publicado em 13 de Julho de 2016, 11:44
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Marcela Campos

Tão encantada com as possibilidades da vida que tem um pézinho aqui e outro acolá – é professora de crianças e adolescentes, mas formada em Jornalismo pela USP. Nunca tem preguiça de bater um papo bom.


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