Nem todos os psicopatas são criminosos – alguns estão até associados ao sucesso

Alguns traços psicopáticos podem levar ao sucesso, pelo menos no curto prazo

Tom Skeyhill foi um famoso herói de guerra australiano, conhecido como “o soldado-poeta cego.” Durante a monumental batalha de Gallipoli na Primeira Guerra Mundial, ele foi 'sinalizador com bandeiras', uma das posições mais perigosas. Acabou transferido ao ficar cego quando uma bomba detonou aos seus pés.

Depois da guerra ele escreveu um livro bastante popular de poesias sobre a experiência em combate e viajou por toda a Austrália e Estados Unidos recitando sua poesia para audiências cativas. Numa das ocasiões, o presidente Theodore Roosevelt subiu ao palco com ele e disse: “tenho mais orgulho de estar no mesmo palco que Tom Skeyhill do que com qualquer outro homem que já conheci.” Algum tempo depois, sua cegueira foi curada com um procedimento médico nos EUA.

Mas, de acordo com o biógrafo Jeff Brownrigg, Skeyhill não era o que parecia. O poeta havia, na verdade, fingido ser cego para escapar do perigo.

E isso não é tudo. Depois de se apresentar bêbado, ele disse que sua fala arrastada se devia a um ferimento de guerra inverificável. Ele dizia ter conhecido Lênin e Mussolini (não há evidência de que isso tenha acontecido), e falava sobre sua vasta experiência de batalha em Gallipoli, quando na verdade só havia estado lá por oito dias.

É preciso ser bem audacioso para fazer funcionar esse tipo de mentira de autopromoção e levar isso a cabo por tanto tempo quanto Skeyhill conseguiu. Embora ele nunca tenha recebido um diagnóstico psicológico formal (pelo menos até onde sabemos), suspeitamos que a maioria dos pesquisadores atuais não teria dificuldade de reconhecer nele um caso clássico de personalidade psicopática, ou psicopatia.

Além disso, Skeyhill personificava muitos elementos de uma condição controversa algumas vezes chamada de “psicopatia bem sucedida”.

Apesar da percepção popular, a maioria dos psicopatas não é composta de pessoas frias ou de assassinos psicóticos. A maior parte deles vive com sucesso entre nós, usando seus traços de personalidade para obter o que querem na vida, muitas vezes à custa dos outros.

Uma cela na Área de Segurança durante uma visita da imprensa à Prisão do Estado de Corcoran, Califórnia. Robert Galbraith/Reuters

Se você procurar na cadeia, todos os psicopatas serão criminosos

A psicopatia é difícil de ser definida, mas a maioria dos psicólogos a veem como uma desordem de personalidade caracterizada por charme superficial unido a uma desonestidade profunda, frieza, ausência de culpa e fraco controle sobre os impulsos. De acordo com algumas estimativas, a psicopatia é encontrada em cerca de um porcento da população geral, e, por razões ainda não muito bem compreendidas, a maioria dos psicopatas é do sexo masculino.

Esse número provavelmente não se aproxima do número real de pessoas com algum grau de psicopatia. Os dados sugerem que os traços psicopáticos ocorrem em termos de um espectro, de forma que alguns indivíduos possuem traços psicopáticos marcantes, mas ainda assim não apresentam todos os critérios de uma psicopatia completa.

Não é surpresa, portanto, que indivíduos psicopáticos sejam mais propensos a cometer crimes do que a população em geral. Eles quase sempre entendem que suas ações são moralmente erradas – isso apenas não os incomoda. Ao contrário da crença popular, apenas uma minoria deles usa de violência.

Como os pesquisadores tendem a procurar pelos psicopatas onde podem encontrá-los em profusão, a maior parte da pesquisa sobre o distúrbio se dá em prisões. É por isso que até muito recentemente a maior parte das teorias e pesquisas em psicopatia se focava em indivíduos, sem dúvida, fracassados – como são os criminosos condenados.

Mas a maioria das pessoas no espectro psicopático não estão na cadeia. Pra ser honesto, alguns indivíduos são capazes de usar traços psicopáticos, tais como a audácia, para atingir sucesso profissional.

Um núcleo profundamente perturbado

A própria existência da psicopatia bem-sucedida tem sido controversa, talvez, em parte, porque muitos estudiosos insistem em dizer nunca tê-la encontrado. Alguns chegam a dizer que o conceito é ilógico. Outros chegam ao ponto de denominá-la uma contradição em termos.

A psicopatia em pessoas bem sucedidas pode até ser uma ideia controversa, mas não é recente. Em 1941 o psiquiatra americano Hervey Cleckley foi um dos primeiros a destacar essa condição paradoxal em seu livro clássico “A Máscara da Sanidade.” De acordo com Cleckley, o psicopata é uma criatura híbrida, exibindo um véu de normalidade que encobre um núcleo emocionalmente empobrecido e profundamente perturbado.

Aos olhos de Cleckley, os psicopatas são pessoas charmosas, autocentradas, desonestas, sem culpa e frias que levam vidas sem rumo, destituídas de conexões interpessoais profundas. Mas Cleckley também aludiu à possibilidade de que alguns indivíduos psicopáticos fossem bem-sucedidos em relações interpessoais, e até mesmo ocupacionais, pelo menos no curto prazo.

Em um artigo de 1946, ele descreveu psicopatas típicos que muitas vezes superam 20 vendedores rivais num período de seis meses, ou casam com a garota mais desejada da cidade, ou, quando se aventuram na política, se elegem muito facilmente.

Charmoso, agressivo, e em busca do primeiro lugar

Em 1977, Catherine Widom publicou um estudo sobre “psicopatas não institucionalizados.” Para encontrar esses indivíduos, ela colocou um aviso pago em jornais de baixa circulação em Boston, pedindo por “pessoas charmosas, agressivas e livres, irresponsáveis e impulsivas, mas boas no trato com pessoas, e em busca do primeiro lugar.”

Os indivíduos que ela recrutou exibiram um perfil de personalidade similar ao dos psicopatas na prisão, e cerca de dois terços deles havia estado na cadeia.

Qual a diferença entre os psicopatas que foram colocados na cadeia e os que não foram? Uma pesquisa de Adrian Raine, que agora leciona na Universidade da Pennsylvania, conduzida nos anos 1990, joga luz sobre essa questão.

Raine e seus colegas recrutaram homens de agências de emprego temporário na área de Los Angeles. Depois de identificar aqueles que se encaixavam nos critérios da psicopatia, compararam os 13 participantes que haviam sido presos por um ou mais crimes com os 26 que não haviam. Raine temporariamente considerou estes 26 como “psicopatas bem-sucedidos”.

Cada um dos homens foi convidado a gravar um vídeo sobre seus defeitos pessoais. Raine e seus colegas descobriram que os homens que consideravam psicopatas bem-sucedidos apresentavam variações muito maiores do batimento cardíaco enquanto falavam, o que sugere uma ansiedade social maior. Estes homens também se deram melhor numa tarefa que os obrigava a controlar os impulsos.

Resumo: ter um pouco de ansiedade social e controle da impulsividade pode explicar porque algumas pessoas com traços psicopáticos conseguem evitar problemas.

Alguns traços psicopáticos podem ajudar no sucesso, inclusive na política. Carlo Allegri/Reuters

O psicopata na bolsa de valores

Mais recentemente alguns pesquisadores, incluindo os autores deste artigo, especularam se pessoas com traços psicopáticos pronunciados talvez não acabem desproporcionalmente trabalhando em determinados nichos profissionais, tais como política, negócios, policiamento e segurança, combate ao fogo, operações especiais, serviço militar ou esportes de alto-risco. A maior parte das pessoas que apresentam esses traços provavelmente não são “psicopatas” clássicos, ainda que exibam muitas características da condição.

Talvez o carisma, como se coloca socialmente, a audácia, o senso de aventura e a resistência emocional causem uma tendência ao melhor desempenho, no que diz respeito a situações de alto risco, quando comparados com as outras pessoas. Como disse o psicólogo canadense Robert Hare, o maior especialista em psicopatia no mundo, brincou: “se eu não estivesse estudando psicopatas na cadeia, o faria na bolsa de valores.”

Nosso laboratório na Universidade de Emory, e o de nossos colaboradores na Universidade do Estado da Flórida, estão investigando se alguns traços psicopáticos, tais como a audácia, não predispõem a pessoa a certos comportamentos de sucesso.

E o que queremos dizer com audácia? Tem a ver com postura e charme, tomar riscos em termos físicos e resistência emocional, e é um traço bem representado em muitas escalas de psicopatia já bastante usadas.

Por exemplo, em estudos com alunos de universidade e com pessoas na comunidade em geral, descobrimos que a audácia é modestamente ligada a comportamentos heroicos impulsivos, tais como intervir em emergências. Também está ligada a uma probabilidade maior de assumir liderança e posições de gerência, e a certas profissões, tais como segurança e policiamento, combate ao fogo e esportes perigosos.

Quer ser presidente? Ter alguns traços psicopáticos pode ajudar

Há um trabalho em particular no qual a audácia pode fazer a diferença: presidente dos Estados Unidos.

Num estudo com 42 presidentes, incluindo até George W. Bush, pedimos a biógrafos e outros especialistas que completassem uma lista detalhada de itens de personalidade sobre o presidente em que eram especialistas – inclusas questões associadas com a audácia. Então conectamos esses dados com avaliações independentes de desempenho presidencial feitas por historiadores proeminentes.

Descobrimos que a audácia estava positiva, ainda que modestamente, associada com um melhor desempenho presidencial. E várias facetas específicas desse desempenho, tais como gerenciamento de crises, escolha de programa e capacidade de persuasão do público, estavam também associadas à audácia. Isso pode ser algo a ter em mente na próxima vez que você ver candidatos presidenciais falarem sobre como serão audaciosos na Casa Branca.

Theodore Roosevelt, o mais audacioso presidente de todos.

Numa coincidência interessante, o presidente mais audacioso em nosso estudo foi aquele que disse se orgulhar de estar no mesmo palco com Tom Skeyhill. Theodore Roosevelt foi descrito por um biógrafo recente como possuidor de “uma persona robusta, impetuosa, naturalista, bombástica, de olhar nos olhos, ranger os dentes, sentir na pele: uma verdadeira avalanche.”

Os mais audaciosos presidentes não eram necessariamente extremos ou patológicos em termos disso, mas sua audácia era muito maior quando comparada com a da pessoa média.

Embora a audácia esteja ligada a algumas ações bem-sucedidas, o que vemos geralmente é que outras características psicopáticas, tais como frieza e fraco controle de impulsos, são desconectadas com ou negativamente associadas ao sucesso profissional.

A audácia pode estar associada com certos resultados positivos na vida, mas a psicopatia com todas as características geralmente não está.

E onde fica o limite entre o sucesso e a criminalidade?

Será que os traços psicopáticos surgiram pela evolução adaptativa? Alguns poucos investigadores exploraram uma hipótese de “Cachinhos de Ouro”. Além disso, sabemos muito pouco sobre como os traços psicopáticos preveem comportamento no mundo real no que diz respeito a períodos maiores de tempo.

O charme do psicopata é superficial. Com isso em mente, podemos afirmar que aquela audácia e traços comuns a ela podem estar ligados a comportamentos bem-sucedidos no curto prazo, mas sua efetividade quase sempre se dissipa com o tempo. Afinal de contas, até mesmo Tom Skeyhill só conseguiu enganar as pessoas por alguns anos.

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Nota da tradução:

Esse texto foi originalmente publicado em inglês no site The Conversation e é de autoria de Scott O. Lilienfeld, junto à Ashley Watts.


publicado em 06 de Março de 2016, 00:05
Scott

Scott O. Lilienfeld

Professor de psicologia na Universidade de Emory, doutor em Psicologia Clínica pela Universidade de Minessota e articulista do site The Conversation.


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