“Nem toda madrasta é má, nem toda mãe é maravilhosa”

Eu estava feliz como madrasta, até que um dia a criança solta, sem querer: “minha mãe me falou que eu iria te odiar, que você não seria legal comigo, mas ela estava enganada”. Que soco no estômago!

Crescemos com aquela velha história manjada de “má-drasta”. A Branca de Neve tem uma que quer cortar o coração dela, a Cinderela tem uma que faz ela de empregada doméstica, e assim vai. Crescemos com a ideia de que madrasta é o contrário de mãe. Fazemos a piada “essa é boa-drasta” para as que não se encaixam no papel de bruxa má, sem perceber os valores de gênero que isso carrega, afinal, cai muito bem o papel de megera para qualquer mulher. Ainda mais se ela for “madrasta”.

Teve uma época em que meus pais estavam com o casamento abalado e pensaram em se separar. Começou um assunto em casa, meio velado, de como seria para mim viver sem os dois juntos. Uma das primeiras coisas que minha mãe falou, uma mulher estudada e que sempre me deu uma criação progressista, foi: “se seu pai arranjar outra mulher, você morde ela!”. Os dois se acertaram, o casamento dura até hoje, mas por anos eu e ela tínhamos essa piada interna de “morder” ou fazer outras pequenas maldades com a futura-mulher-que-nunca-existiu que meu pai viesse a namorar.

Um dos meus primeiros namorados foi criado com madrasta. A mãe dele era, segundo relatos dele, irresponsável e imatura, e ele escolheu morar com o pai com 10 anos de idade. O pai tinha acabado de ir morar com uma namorada, o que fez esse meu antigo namorado ter que “engolir” essa madrasta. Aos poucos, fui percebendo que ele gostava muito mais da madrasta do que da mãe dele, mas nem ele mesmo assumia esse discurso. Me falava que amava a madrasta, mas nunca tinha dito isso a ela. Talvez por medo de ser julgado, pois que tipo de filho é esse que sai da casa da mãe para ir morar com o pai (tabu 1) e ainda ama a madrasta (tabu 2)?

O fato é que quando conheci essas duas mulheres, que se viram uma única vez na vida e moravam há mais de 500km de distância, percebi o quanto uma fazia mal a outra. O quanto uma falava mal da outra e o quanto se sentiam ameaçadas. Eu pensava: mas por que elas se odeiam tanto, se não houve traição de casais e se uma nunca fez nada de fato para a outra? E tudo isso respingava no meu antigo namorado: era uma pessoa extremamente imatura no que diz respeito a sentimentos e, no dia que terminamos, ele me falou: “eu não sei se quero ter família. E se tivermos filho, porque todo mundo só tem, sem pensar em ter, e eu querer te abandonar e fugir?”. O mais confuso é que ele tinha me pedido em casamento um mês antes.

Passado essa experiência terrível, eis que eu me apaixono por um moço que tem uma filha de 8 anos. Fiz de tudo para não me envolver, pesava muito para mim pensar na palavra “madrasta”.

Mas nos gostamos muito e fui me envolvendo, tentando entrar nesse relacionamento sem criar rótulos. Conheci a criança e foi amor à primeira vista. Ela é igualzinha a mim quando pequena! Pensa igual, tem comportamentos feministas, é divertida, livre. É maravilhoso estar com ela, brincar com ela, cuidar dela. Ela me acolheu e foi muito emocionante para mim vê-la aberta assim.

Eu estava vivendo meu conto de fadas ao inverso (afinal, não era a má-drasta da Branca de Neve).

Como que eu, que sempre fui extremamente independente e cuidei das minhas coisas, poderia ser alvo de ódio de uma mulher que eu nunca nem tinha visto na vida?

Perguntei a minha sogra e ela me confirmou: a mãe da criança falava constantemente mal de mim. A troco de que? Chorei, fiquei revoltada, mas fazer o que? Não posso entrar nesse jogo sujo, fruto de uma sociedade patriarcal e cruel com mulheres, que nos diz que temos que ser rivais umas das outras. Eu tento ter pena dessa mulher que se sente ameaçada por uma pessoa como eu. E tento “retribuir” amando e respeitando a filha dela.

Mas desde que eu comecei a ter muito mais contato com a filha dela, comecei a perceber pequenas maldades, tanto em relação a mim quanto em relação ao meu namorado. No facebook, ela curte todas as fotos de tios e de pessoas com quem ela era brigada da família do meu namorado, comenta, deixa corações. Mas quando minha sogra postou a primeira foto minha, ela a excluiu das suas redes sociais. A vó da filha dela. Uma mulher admirável e bondosa, que não merece o ódio de ninguém, principalmente de outra mulher.

Certa vez dei um livro infantil, de cunho feminista, para a menina. E adivinha? O livro foi confiscado e ela foi proibida de lê-lo. A explicação foi que o livro era feminista e ela não gostava do feminismo. Pode ser realmente isso, mas será que também não foi por que era um presente da mulher que ela tanto odeia?

Com meu namorado, as maldades são bem mais constantes. Ele nunca atrasou uma pensão, mas todo dia de pagamento ela dá um jeito de ligar para ele e infernizar. Ela implica com o horário do pagamento, com ele não ter atendido ela, e assim vai, os dois brigam por motivos que eles nem sabem todo dia 10. Dia 10: dia das brigas. Por que tudo isso? Todo namorado que ela arranja tem um incrível ciúme do meu namorado. No ano passado, o mais recente namorado tentou bater nele, na frente da filha, na apresentação de ballet dela. Que coisa, por que será que os namorados dela têm tanto ódio de um cara que não significa mais nada na vida dela há pelo menos cinco anos?

Desconfio que ser mãe e ex-mulher de alguém não dá a ela o direito de sair fazendo essas coisas, machucando tanta gente, inclusive a filha dela.

A gravidez dela foi acidental. Ninguém se torna mãe do dia para noite, ninguém se torna mãe só porque teve um filho. Ela tem um filho há oito anos, mas desconfio que nem por um dia ela foi mãe.

Eu, madrasta, gostaria de deixar uma carta à essa mãe:

“Eu não quero roubar sua filha de você. Também não roubei seu ex. Quando eu cheguei, vocês já estavam separados há cinco anos e, até onde sei, a separação aconteceu por motivos muito justos. Quero te falar de mulher para mulher que eu nunca nem me imaginei sendo mãe, quem dirá sendo madrasta de alguém. Eu imagino as frustrações que você deve estar sentindo, pois minha própria mãe quase se comportou assim uma vez comigo. Mas olha, para mim também não está sendo fácil lidar com todos esses rótulos e com o seu ódio infundado.

A vida já é tão complicada para nós mulheres, porque temos que complicá-la ainda mais, comprando esse discurso vazio que temos que ser inimigas?

Eu não sou mãe, mas acho que ser mãe não te dá direitos sobre a vida de uma outra pessoa. Não te dá privilégios e nem você tem que passar a fazer papel de “protetora da família e da moral”. Porque moral, para mim, pelo visto é algo muito diferente do que é para você. O nome disso não é maternidade, é escravidão. Você não é senhora de sua filha. Você não é senhora de seu ex só porque engravidou um dia, sem querer, dele. Se ninguém pertence a ninguém, não tem como ninguém roubar ninguém. Como eu posso ter roubado essas pessoas de você se eu não estava lá quando tudo aconteceu?

Cuidar de uma criança não é fácil. Comprar o papel de mãe em uma sociedade machista, como você faz, também não deve ser fácil. O meu papel também não está sendo fácil, mas porque você mesma faz questão de dificultá-lo. Reforço: ninguém se torna mãe só porque engravidou. Só porque pariu. Só porque cuida dessa criança. Você tem um filho há oito anos, mas desconfio que nem por um dia foi mãe, de uma maneira justa e digna. Ser mãe não é ser dona de alguém. Quanto ao relacionamento de sofrimento que você insiste em manter com o pai da criança, se liberte disso também. Não compre esse papel de “esse homem é meu para sempre” ou “quem é a vagabunda que ele está?”. Isso, tenho certeza, deve te fazer muito mal. Não quero disputar homem com você, nenhuma mulher deveria comprar esse papel. Já nos dá muito trabalho e pesar sermos apenas donas de nós mesmos.

Não precisamos ser donas de mais ninguém, isso também é machismo.

Então, nos libertemos uma da outra e nos libertemos dos padrões que nos prendem. Será que você já não é para sua filha a madrasta que gostaria que eu fosse? A maternidade para você é um meio ou, de fato, uma escolha?

Para mim, ser madrasta, sim, foi e é uma escolha, todo dia, não um meio.

***

Nota do editor: A partir de Novembro o PdH vai republicar, mensalmente, conteúdo elaborado pela Revista AzMina. Ela é online, gratuita e disponibiliza um jornalismo independente, com foco em redes sociais e interação constante com as leitoras e leitores. 

Os principais propósitos do PapoDeHomem ao trazer esse tipo de conteúdo são aproximar homens e mulheres de assuntos comuns a ambos, furar bolhas e amplificar debates. 

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publicado em 11 de Novembro de 2016, 04:43
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