Não houve jazz esta noite

O que sei sobre Hemingway é:

"Escreva bêbado, revise sóbrio."

E não vai dar tempo de revisar.

Amigos, hoje eu decidi que ia escutar jazz. Durante uma mijada, no meio do expediente, concluí que, sentado durante 7 horas por dia em frente a uma tela de computador e depois indo pra casa e sentando em frente à tela de outro computador por mais umas 4 horas, poucas coisas além do comum iriam acontecer.

Mas hoje eu estava irredutível: não vou pra casa depois do trabalho. Vou pro Páginas Tantas, um bar de jazz no Bairro Alto.

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(Imagem: Cowboy Bebop)

Carreguei a bateria do MP3, estiquei no trabalho até umas sete e meia e peguei o metrô em direção à Baixa. Subi o zíper da jaqueta, coloquei o capuz do moleton, pois ainda caíam uns pingos de uma chuva intermitentemente outonal, e segui em direção às ruas do Bairro Alto, o bairro boêmio-turístico de Lisboa, onde fica o Páginas Tantas, o tal bar de jazz.

Em frente à estátua de Camões (deus é mesmo um fanfarrão), eu ouço um "Filipe!". Parei e, nos meus trezentos e sessenta graus de euforia, divisei Isabela, uma maranhense que eu conhecera meses atrás e que via SMS tinha me dispensado solenemente.

Achei justo, achei franco. Respeitei.

Ela disse que me acompanharia. Fomos até o Páginas Tantas, mas estava fechado. Disse a ela que iria ficar ali, esperando o bar abrir. Mas ela revelou que tinha uma garrafa de vinho na bolsa.

Mal intencionada?

Peguei o vinho, entrei no primeiro bar e pedir para o bartender abri-lo. Fomos ao Miradouro de São Pedro e tomamos a garrafa de vinho, entre uma afagada e outra em um labrador que passeava com seu dono reticente.

Finda a bebida, sugeri que fôssemos ao Loucos & Sonhadores, o bar que seria nosso se tivéssemos um bar, amigos. Pedi dois cálices de vinho à garçonete, que é a Janis, versão proletária. Ferido com a rejeição de meses atrás via SMS, retomei o assunto, que para ela aparentemente estava morto.

Ela relutou com argumentos ridiculamente mentirosos. Toquei em seu rosto, que ela insistia em afastar, quando o celular dela acendeu. Então ela me revelou que o motivo pelo qual não me beijaria estava aceso, impresso naquela tela.

Ela atendeu, disse em que rua e em que número estava. Já era a nona chamada. Quando ela desligou, despejei: "Eu não ligaria nove vezes e, se você atendesse, eu não viria. Amor só dura em liberdade, e foi Raul quem disse. Deve ser verdade".

Foi então que ela fez aquela expressão de quem quer, de quem vai, de quem cede, de quem não se importa, de quem fecha os olhos simplesmente. Beijamo-nos durante segundos.

Em seguida, mas muito em seguida, segundos depois, o tal do telefonema chegou, perguntou quem eu era e ela respondeu qualquer coisa que eu não tive a mínima intenção de gravar. Tomei mais um gole de vinho enquanto ele se apresentava para mim. De chofre ele a beijou, mas eu -- muito sinceramente vos revelo: não me importei.

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(Imagem: Cowboy Bebop)

Antes que eu percebesse, eles deixaram o bar. Terminei de beber meu cálice de vinho sentindo ainda o gosto do batom barato que ela insistira em reforçar antes de me beijar, mesmo tento reafirmado que entre nós nada, nada haveria.

Terminei meu vinho, vesti a jaqueta e fui ao balcão pagar minha bebida. Já estava paga. Não sei se foi ele ou ela quem pagou, mas desejo profundamente que tenha sido ele. Portanto, esta será a história que eu vou contar sempre: eu levei uma garota para um bar, pedi dois vinhos, senti a textura de sua língua e o timbre de sua voz ao meu ouvido e ao final outro homem pagou a despesa.

Cinco euros que tenham sido sequer.


publicado em 22 de Novembro de 2013, 12:07
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Filipe Teixeira

Filipe Teixeira é escritor amador e ansioso profissional.


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