Uma das características mais marcantes do Romantismo era a fuga. Os românticos nunca estavam satisfeitos com nada. Refugiavam-se na loucura, na morte e no passado. Alguns uniam esse retorno ao passado à outra característica do movimento que era o Nacionalismo, por isso os autores europeus reconstruíram suas origens medievais por meio de suas obras e os brasileiros buscaram no elemento indígena essa reconstrução.

Outros fugiam egocentricamente para o próprio passado. Um bom exemplo é o poema “Meus Oito Anos”, de Casimiro de Abreu.
Oh ! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais !
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais !
Como são belos os dias
Do despontar da existência !
– Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’amor !
Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar !
O céu bordado d’estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar !
Oh ! dias de minha infância !
Oh ! meu céu de primavera !
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã !
Em vez de mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã !
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
De camisa aberta ao peito,
– Pés descalços, braços nus –
Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis !
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo,
E despertava a cantar !
Oh ! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais !
– Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais !
Casimiro de Abreu — As Primaveras, publicado em 1859.
Mas essa história de achar que o passado não é coisa de artista. Pelo menos a maioria de nós vê o passado como uma época tranquila e amena, sem problemas ou com problemas menos complicados que os que temos hoje. Não é raro flagrarmos nossos pais ou avós dizendo coisas como “no meu tempo é que era bom” ou flagrarmos a nós mesmos sentenciando que “éramos felizes e não sabíamos”.
Outro dia eu estava numa lanchonete aqui em Lisboa chamada The Great American Disaster. A decoração, o cardápio e a música ambiente remetem à década de 50 nos EUA, parece aquela lanchonete em que o Marty McFly conhece o próprio pai quando volta no tempo. Depois de comer, fui a um bar chamado Loucos e Sonhadores, no Bairro Alto.

Não intencionalmente, o bar também é retrô. A decoração é randômica, o ambiente é meio noir, a música é R&B, jazz e soul antigos, tem uma caixa registradora daquelas que fazem plim e umas estantes com livros. Lembrei do bar em que a Shoshanna é importunada pelo soldado Frederik Zoller em Bastardos Inglórios. Lá nesse bar, encontrei uma amiga, que me convidou pra ir a uma discoteca (boate aqui é pejorativo) que só toca música dos anos 80.
Eu não fui à discoteca. Fiquei lá no bar pensando nessa força que o passado exerce sobre nós. E embora a vida tenha me ensinado que é no hoje definitivamente vivemos e que não adianta muito ficar tentando trazer o ontem de volta, percebi que algumas coisas talvez tenhamos perdido pra sempre.
No documentário The Beatles Anthology, o Paul McCartney comenta que tinha um cara do outro lado de Liverpool que sabia tocar o acorde B7. Então, o John Lennon e ele (acho que o George também foi) atravessaram a cidade de bicicleta pra encontrar esse cara e aprender a tocar o B7. Mas hoje, com alguns cliques, temos acesso não só ao B7, mas a outros vários acordes, vídeos tutoriais, variações etc. Se meu corpo fosse um país, o sistema de governo seria o sedentarismo, por isso eu acho ótimo ter o B7 ao alcance da mão e não ter que atravessar a cidade de bicicleta. Mas aprender a tocar um acorde pela internet é bem mais insípido do que dizer que pedalou horas pra isso.
Pedi outro vinho e continuei devaneando. Lembrei que durante quase dez anos, minha avó sempre fez bolo de cenoura no meu aniversário. Ela tem a receita anotada num caderno amassado e amarelado. Embora já saiba os ingredientes e o procedimento de cor, sempre tem esse caderno à mão — por costume, ou por garantia. Sua memória lhe trai às vezes, assim como a vista e o paladar, gastos em 90 anos de vida, mas o bolo de cenoura fica melhor a cada ano. Quando cheguei a Lisboa, decidi aprender a cozinhar. Comprei um bloco pra anotar as receitas, mas a quem eu queria enganar? Sempre que preciso, quem me diz o que fazer é o Google. O bloco uso pra fazer minha to-do list, embora existam sites pra isso também.
Não quero com isso demonizar o mundo digital só porque ele deixou certas coisas pasteurizadas, frias e insossas. É complicado, hoje, viver off-line. Me considero, na verdade, parte de uma geração privilegiada, que apanhou a transição entre o mundo analógico e o digital, e por isso às vezes me acometem uns rompantes românticos de fuga ao passado. Agora mesmo, escolhi umas músicas pra me acompanhar enquanto escrevia este texto.
Link YouTube | A história do B7
Selecionei a playlist a partir das músicas do meu HD e joguei no Winamp. Se fosse há uns quinze anos, eu teria colocado uma fita K7 que eu teria gravado no deck Sansui do meu tio depois de ter calculado minuciosamente a duração das músicas pra que elas coubessem na meia hora de cada lado da fita.
Quando eu perguntei à minha amiga Eliana Nzualo por que o passado era tão sedutor, ela me respondeu que era uma armadilha. Pra não cair melancolicamente nessa armadilha, encerro por aqui, quase três horas depois de ter começado a escrever porque procrastinei até não poder mais na internet – o que não acontecia quando eu escrevia direto no papel.
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