“Na Estrada”: você está lendo isso errado

A história de um "não".

O livro “Na Estrada”, de Jack Kerouac, é um dos clássicos mais deslidos de todos os tempos. 

 

Na Estrada
Já falo do filme, espera aí

 

A pior coisa que se pode fazer por Kerouac

Escreveu alguém:

 

"A coisa mais cruel que se pode fazer com Kerouac é relê-lo aos 38."

Eu, por acaso, tenho 38. Li “Na Estrada” aos 29, quando não estava mais na idade de acampar, pegar carona ou outras coisas que eu aliás nunca fiz, nem aos 18.

Quando temos 18, ainda não sabemos fazer nada direito, nem ler, nem transar, nem coisa nenhuma. (Dica: já que não podemos voltar no tempo e retransar nossas transas toscas dos 18, podemos ao menos reler os livros que lemos.)

Então, aos 18, quando fazemos tudo de forma superficial e apressada, quando estamos loucas para pegar o carro e sumir, é fácil ler o romance de Kerouac como uma celebração desse espírito.

Mais tarde, aos 38, quando a vida já sugou nosso espírito e nossa energia, quando olhamos com pena e escárnio para nossa persona de 18, quando fazemos pouco de seus sonhos e esperanças sem nos dar conta que não conseguimos acrescentar melhores sonhos e esperanças nesse meio tempo, então, é fácil lembrar somente de nossa desleitura adolescente de “Na Estrada” e usar isso para menosprezar o livro:

 

“Rá, só um livro bobão e pueril sobre jogar pro alto as responsabilidades e pegar a estrada! Não tenho mais tempo pra isso! Minha vida hoje é muito melhor! Tenho três filhos de dois casamentos, uma hipoteca da casa, trabalho dezesseis horas por dia e devo dez mil no cartão de crédito, mas, se Deus quiser e meu coração deixar (estou com a pressão meio alta, sabe?), em vinte anos eu consigo minha aposentadoria, vou comprar aquela casinha em Iguaba Grande e, aí sim, vocês vão ver, eu vou ser feliz!”

Mas, justamente, “Na Estrada” é um clássico da literatura universal por não ser apenas isso.

Sal Paradise e Dean Moriarty, os personagens principais, são da geração de nossos avós e bisavós. Nós, as gerações seguintes, com tanta coisa melhor pra fazer, com iPorras e iPulhas, não continuaríamos lendo sobre as farras de nossos bisavós se elas também não dialogassem diretamente com a nossa experiência.

 

Na Estrada
Calma, eu vou falar do filme logo mais

 

Todo grande livro é mais inteligente que seu autor

A intenção de Kerouac provavelmente era sim fazer uma celebração da estrada. Se tivesse sido bem-sucedido, provavelmente não estaríamos falando dele hoje.

Porque todo grande livro é mais inteligente que seu autor. Toda grande obra contém em si o seu próprio contradiscurso. Toda grande narrativa sempre se constrói em torno de uma fratura estrutural que ameaça lhe demolir.

É essa tensão que atrai os leitores, que nos faz voltar ao livro sempre renovados, que nos faz ler e reler, emprestar e resenhar, recomendar aos filhos e aos alunos. Esse é o ciclo de vida de uma obra. Só os livros que causam esse tipo de engajamento conseguem sobreviver de uma geração para a outra, e se tornar clássicos.

 

Toda grande obra contém em si o seu próprio contradiscurso

Então, por um lado, “Na Estrada” é a história de Sal Paradise, um escritor certinho de Nova Iorque, que encontra o malucão Dean Moriarty, e sai loucamente com ele pelas estradas da América do Norte. É a celebração da estrada, um elogio à liberdade, um chamado para que todos saiam de suas casas e sumam por aí. Eba!

Mas, por outro lado, “Na Estrada” é exposição, progressiva e sistemática, desse exato contradiscurso.

Apesar de idolatrar Dean, até mesmo Sal vai percebendo que ele é um canalha, egocêntrico, narcissista que só se preocupa consigo mesmo; que usa as pessoas como se fossem objetos – carteiras, especialmente; que não tem pudor nenhum em descartá-las quando lhe dá na telha.

Ao longo do livro, várias pessoas, inclusive o narrador, são atraídas pela energia e força vital de Dean... até perceberem que essa energia e força vital está sendo sugada delas mesmas: como um vampiro, Dean se alimenta dos seus fãs. Suga até o caroço e depois cospe fora.

Por isso, Sal diversas vezes larga a estrada e volta para Nova York, para o rabo de saia da mãe, para o ambiente familiar e seguro onde pode viver e trabalhar. A estrada pode até ser boa, parece dizer o livro, mas não por muito tempo: bom mesmo é uma casa tranquila e uma mãe companheira.

Até que, mais uma vez, Sal fraqueja, fica de pau duro por Dean, ambos pegam a estrada, Sal quebra a cara, volta pra Nova York.

O livro acontece nesse movimento pendular. Na prática, como “O Processo”, de Kafka, “Na Estrada” poderia continuar ad eternum, em uma infindável sucessão de idas e vindas, mas o livro só termina mesmo quando Sal finalmente supera Dean.

 

Na Estrada
Daqui a pouquinho

 

O final de um livro revela seu enredo

É sempre interessante reparar onde as narrativas começam e terminam, pois essas balizas nos revelam qual é a história sendo contada – algo nem sempre óbvio.

(Um exemplo: o que os últimos seis capítulos do Senhor dos Anéis revelam sobre o plano geral do livro? Afinal, a história poderia ter acabado com a destruição do anel e a vitória sobre Mordor, não? Seria até um final natural... Por que então o autor escolheu não terminar o livro ali? Se o Senhor dos Anéis não é a história da vitória sobre Sauron... é a história do quê?)

Pois “Na Estrada” começa com Sal encontrando Dean e termina no momento em que ambos se esbarram na rua, em Nova York: Dean chama: “vem”, e Sal, escaldado, responde: “não, obrigado, estou com amigos, a gente se vê.”

Em literatura, tudo é contexto. Então, cabe ressaltar que essa cena não é mostrada como “a derrota de Sal” ou “vejam como Sal ficou careta”, “a vida derrotou Sal”, “o bobão do Sal ficou pra trás enquanto Dean ganhou o mundo”, etc.

Pelo contrário, o que a cena mostra é: Dean está só, depois de passar a vida usando e abusando de todos; e Sal, nosso alter-ego, está sábio o suficiente para não mais se deixar vampirizar.

E, nesse momento, termina o livro.

Ou seja, “Na Estrada” é não uma celebração da estrada (se fosse, o livro terminaria com todos alegremente ainda dirigindo pelo país) mas sim a história do amadurecimento de Sal Paradise.

De como ele finalmente aprendeu a dizer “não”.

 

Na Estrada
Beleza, agora vou falar sobre o filme

 

Então, o filme

O filme é ruim. Ruim, ruim. Toda a vida e a energia que pulsam no livro estão totalmente ausentes do filme.

Sua principal virtude é recuperar a homossexualidade da versão inicial de Kerouac, expurgada da primeira edição de 1957, e somente conhecida em 2007, com a publicação do manuscrito original. Na época, os editores acharam que incluir as cenas de experimentação homossexual poderia alienar muitos leitores.

A outra virtude do filme está em não desler a obra: ele poderia facilmente ter sido a tal “celebração da estrada” mas não, Dean continua um grande babaca. A cena final captura bem o espírito do romance.

Mas falta tesão, energia, vida – enfim, tudo o que fez de “Na Estrada” um clássico da literatura.

Leiam o livro. É uma delícia.

* * *

assine a newsletter do alex castro


publicado em 18 de Agosto de 2012, 21:02
File

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.

Sugestões de leitura