Modelo Panóptico: como vigiar com esforço mínimo | Tecla SAP #4

Vigiar mais gente com menos gente ou simplesmente ninguém, o segredo do olho que tudo vê

Se você acredita em Deus, ou até se não acredita mas conhece minimamente o conceito Dele, o tópico de hoje é moleza. Você deve saber que, nas diferentes religiões, os atributos do Todo Poderoso passam pela onipresença, onipotência e onisciência.

É sobre o primeiro deles que vamos nos dedicar hoje. Além de alguns prefixos da língua portuguesa.

O olho que tudo vê

Onipresença é a junção da palavra presença com o prefixo oni que significa tudo. Juntando os termos formamos o substantivo que serve para designar algo ou alguém que está presente em, no popular, tudo quanto é canto.

Mas se antes isso servia apenas para classificar Deus, átomos e clipes, veio a revolução tecnológica e umas microempresas tipo o Google e o Facebook quiseram entrar nessa conta. Aliás, tem umas teorias bem malucas que dizem que o Google é o próximo anticristo. A ver.

O que isso tem a ver com o modelo panóptico? Tudo. A palavra também diz respeito a junção de óptico (visão) com o prefixo pan que significa tudo num contexto mais geográfico, tal qual em pangeia, pandemia ou panamericano. Panóptico é, portanto, um modelo de ver tudo.

A piração com esse suposto 'olho que tudo vê' é mais antiga do que nós podemos imaginar. Ele dialoga com as pirâmides do Egito, tem a ver com o cristianismo, é um símbolo muito popular na maçonaria e foi impresso até na cédula de um dólar americano

O conceito não é novo. Foi mencionado formalmente dessa forma pela primeira vez em 1785 pelo filósofo e jurista inglês Jeremy Bentham que formulou um sistema prisional baseado num modelo arquitetônico de um prédio circular que teria no centro uma única cabine de vigilância. Com visão 360º de todas as celas e vidros escuros ou persianas para que os prisioneiros não saibam quando estão sendo observados, a intenção era provocar a sensação de vigilância e controle permanente através da dúvida. O vigilante perfeito tornaria-se, portanto, uma espécie de fantasma que nunca aparece e que ao mesmo tempo pode aparecer a qualquer instante.

Foram construídos pelo menos 7 edifícios com esse modelo no mundo. Um em Portugal (único a céu aberto), um na França, três na Holanda, um nos Estados Unidos e este da foto: a penitenciária da Ilha dos Pinheiros, em Cuba, construída em 1928 e desativada em 1967

No sistema prisional, as celas teriam janelas para a parte externa e portas com grades para um amplo pátio interno, mas Bentham alertou que o mesmo modelo poderia ser aplicado em outros locais como escolas, hospitais e fábricas onde se desejasse manter a disciplina e o controle.

O que Bentham não foi capaz de prever, porém, é que a tecnologia chegaria e colocaria em xeque seu modelo arquitetônico ao mesmo tempo que ampliaria e muito seu conceito de "tudo vê". Num contexto com câmeras de vigilância em elevadores de pequenos condomínios residenciais até imensos parques públicos, nós nunca sabemos quando estamos sendo observados e a sensação de onipresença do vigilante é quase plena.

Foi aí que pensadores como Michel Foucault e George Orwell piraram na ideia.

O Big Brother

Muito antes do reality show importado pela Globo se popularizar no Brasil, o conceito homônimo de Big Brother foi apresentando por George Orwell, em 1948, no livro "1984" onde ele prevê a criação de uma sociedade do futuro vigiada inteiramente por câmeras. Décadas depois, em 1976, o filósofo francês Michel Foucault lançou o livro “Vigiar e punir: o nascimento da prisão” onde traça um paralelo do conceito introduzido por Bentham com o apresentado por Orwell.

Big Brother is watching you

Quando Foucault dedicou seu olhar ao conceito, porém, ele extrapolou o modelo arquitetônico e se dedicou mais à ideia de visibilidade total. Entendendo o panóptico dessa forma, ele se aplica desde o degrau onde fica a mesa do professor que lhe permite ver toda a sala de aula, até as portas reduzidas dos sanitários públicos que tornam possível saber se as cabines estão ocupadas ou não.

"O Panóptico permite aperfeiçoar o exercício do poder. E isto de várias maneiras; porque pode reduzir o número dos que o exercem, ao mesmo tempo que multiplica o número daqueles sobre os quais é exercido."

Michel Foucault

O panóptico portanto se baseia num conceito de prisão psicológica que evita, de certa forma, a violência física. Através dele, a vigilância se torna permanente no seu efeito, ainda que não seja em sua ação. A real intenção do sistema de vigilância, portanto, é modificada: deixa de ser o uso das imagens para punir e passa a ser para evitar. Dessa forma, mais importante do que a capacidade de ver a tudo e todos simultaneamente, propaga-se a sensação de que isso é possível e a vigilância se torna psicológica.

Como sempre o impacto e o uso da ideia varia de acordo com as intenções. Ao mesmo tempo em que a sensação de segurança é reforçada sob vigilância constante, este modelo reforça a necessidade do temor da punição para que o acordo social seja cumprido. Quando pensamos dessa forma no macro, talvez isso não seja tão tangível, mas a questão se torna latente em pequenas atitudes onde o modelo panóptico está subliminarmente presente.

Cercas elétricas que ficam desligadas, placas de "você está sendo filmado" onde não existem câmeras e até mesmo avisos de "cuidado, cão bravo" onde não existem cães. Todas elas são instrumentos de garantir a disciplina e a ordem social através da sensação psicológica de vigília. Uma abstração do conceito de modelo panóptico que tornou a vigilância constante possível através de um esforço mínimo.

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Tecla SAP é uma série de autoria de Breno França publicada quinzenalmente às quintas-feiras que se propõem a explicar ou traduzir conceitos complexos que estão presentes nas nossas vidas, mas não sabemos ou reconhecemos.


publicado em 03 de Novembro de 2016, 14:22
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Breno França

Editor do PapodeHomem, é formado em jornalismo pela ECA-USP onde administrou a Jornalismo Júnior, organizou campeonatos da ECAtlética e presidiu o JUCA. Siga ele no Facebook e comente Brenão.


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