Minha ambição

Um sonho para o futuro

Ele morava numa cidadezinha do interior, nem muito grande nem muito pequena, amistosa, daquelas onde ainda se dá "bom dia" quando se encontra alguém na rua.

Tinha a cara enrugada e marcada pelas estações, gostava de se mesclar a elas. Mãos grossas e ásperas, mas suaves e precisas, olhar brilhante, penetrante e alegre, como se o corpo tivesse envelhecido, mas a mente continuasse a de uma criança arteira.

"Não é sempre que a gente está vivo assim, desse jeito. Tem muito que ainda quero aprender, principalmente sobre isto aqui", explica, fazendo um gesto vago apontando tudo e nada ao mesmo tempo.

Casa era simples, rude à primeira vista, mas aconchegante e acolhedora, com a porta de entrada sempre aberta, como se imitasse o dono. Dois quartos, um pra dormir e outro para o altar e suas contemplações, uma sala com um tapetão, almofadas pra sentar e uma cozinha, sempre com fogão à lenha queimando, esquentando chá para servir chá aos amigos e desconhecidos que vinham visitar.

Embutidos e temperos secos pendurados, panelas, frutas e hortaliças frescas ajudavam a compor o cenário deste que era o coração da casa, o lugar onde os papos mais íntimos e abertos aconteciam, onde já se chorou e riu tantas vezes que até perdeu as contas.

"Na cozinha não tem problema que seja sério e nem risada que não corte o peso das histórias". Sua frase favorita, enquanto servia um chá quentinho de ervas do quintal.

Gostava de acordar cedinho, fazer suas práticas no quarto do altar antes de começar o dia. Depois, pegava uma caneca de café fumegante, dois pães torrados – um com queijo outro com geleia caseira – e sentava em sua cadeira de balanço para sentir o frio da manhã e ver as estrelas se apagando, o céu se colorindo, a névoa sumindo e as pessoas passando correndo para o trabalho.

"Dou um 'bom dia' para cada um que passa, mas nem sempre percebem ou respondem. Estão mergulhados em outros mundos, né?", e respirava fundo o ar calmo da manhã. 

No que sobrou de terreno ele fez crescer uma horta, adorava trabalhar a terra, sentir o cheiro de chuva, sujar as mãos, ver as plantas mudando conforme as estações, as flores desabrochando e os brotos crescendo. Era um exercício de paciência e contemplação. "Comer qualquer fruta em qualquer época do ano é coisa recente, de quando a vida ficou mais fácil, mimada", refletia.

Gostava de ver os insetos passearem, se transformarem, e não matava nenhum deles, "são todos amigos" dizia com um sorriso e uma formiga no rosto. As plantas também eram suas amigas, todas, mesmo os matinhos que ele arrancava vez ou outra, quando se alastravam demais, afinal “até com criança a gente tem que ser meio enérgico, por amor, de vez em quando”.

Tinha tomates, couve, pepinos, repolhos, beterrabas, cenouras, abóboras e temperos diversos, alguns pés de banana e mandioca e umas moitas de capim cidreira. Um galinheiro que só servia pras galinhas se abrigarem da chuva, ja que vivam soltas "pra serem mais felizes e darem ovos mais amarelos"

Plantava sem planejamento e pra consumo próprio, sem esperar uma grande produção.

Quando sobrava mais do que ele precisava, colocava tudo numa cesta na porta de casa ao lado de um cartaz: "Leve e pague o que quiser". Uma lata velha e enferrujada de leite em pó fazia as vezes de caixa registradora. "Não preciso ficar cuidando, não. A natureza me deu a mais e eu ofereço pras pessoas. Dou a oportunidade delas praticarem a generosidade", dizia enquanto dava uma banana pro macaquinho. 

Uma vez me contou que, enquanto colocava a cesta aos pés da porta, secretamente, mentalizava uma aspiração que a mera visão das hortaliças fizesse brotar na mente das pessoas a vontade de beneficiar todos que estão em volta. "Eu não planto verduras, eu cultivo amigos. As verduras são só uma desculpa pra levar um pouco alívio e felicidade pra dentro das casas."

Se a pessoa levasse sem pagar, ou se roubavam o dinheiro da latinha velha, tudo bem, não tinha porque se enfezar, já que, "aquilo nunca foi meu, né?”

Nos dias de chuva a música era pingos caindo nas telhas de barro em coro com os grilos cantando. Os estalos e o cheiro da madeira queimando faziam a casa parecer ainda mais aconchegante do que já era, e ele ficava ali paradinho, como todo dia, em silêncio, sorrindo para a vida, observando sua própria mente seguir seu fluxo.

É assim que eu me lembro do meu avô, Marcos Bauch. Um velhinho pacato, mas bonachão, que nasceu no século passado. Em 1982.


publicado em 27 de Janeiro de 2016, 14:20
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Marcos Bauch

Nascido na Bahia, criado pelo mundo e, atualmente, candango. Burocrata ambiental além de protótipo de atleta. Tem como meta conhecer o mundo inteiro e escreve de vez em quando no seu blog, o De muletas pelo mundo.


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