Meu nome é Ribas. O dele, Renê

A imagem daquele gato me encarando estava entre as coisas mais aterrorizantes que já vi. No que diz respeito à honestidade, existem apenas dois tipos de homens: aqueles que já broxaram, e os descaradamente mentirosos. Se a exposição do peru murcho é uma das situações mais aterrorizantes pela qual você pode passar, junto com ver a frente do seu carro 1.0 invadida por uma carreta bitrem, é absolutamente aceitável poder personificar nos olhos daquele gato miserável um símbolo de terror objetivo, mas imparcial. O animal não fazia juízo de valor a meu respeito.

Com toda certeza, era o tribunal mais sincero pelo qual eu passei em toda a minha vida. O bichano apenas estava ali para me julgar durante o coito. E sua sentença estava acompanhada da punição: a imagem ridícula de um homem de um metro e oitenta, no auge do vigor sexual promovido pela juventude, tentando jogar sinuca com uma corda. As linhas que seguem são um relato fiel da minha vergonha.

É errado responsabilizar o gato. A culpa sempre será do vivente. Mea culpa, mea culpa, mea máxima culpa.

Foi uma experiência rápida. Renata que o diga, coitada. Desembarcamos daquele taxi desesperados. Éramos duas bestas em uma luta absolutamente proporcional. Seria uma excelente partida naquela noite. Abrimos a porta do apartamento dela sem nem ao menos tocar na maçaneta. Minha tentativa de lembrar qual de nós usou a chave é inútil. Nos beijávamos com  tanta força que a porta deve ter se aberto sozinha, de medo.

Quando entramos, ela acendeu uma pequena luminária, dessas para leitura na mesa, e despencamos no sofá. O gato já estava ali. Mas, na minha mente, ele se confundia tanto com os outros móveis da sala que o ignorei completamente.

Inacreditável foi como ele me recebeu bem. Em poucos segundos, o animal ficou à vontade e se arrastava pela minha perna. Detesto gatos.

Mas nada disso pode bloquear meu interesse pelas donas deles. Especialmente, donas com corpos esculturais e uma cintura que se encaixa na minha mão como o volante de um desses esportivos que a gente adorar dirigir no test drive, mas jamais terá condições de sustentar dentro da própria garagem. Mas ninguém estava ali para comprar nada. Nenhum contrato. Sem compromisso. Nada de leasing. Era uma partida limpa e todos deviam sair vencedores.

Sem aviso prévio a Renata interrompeu o ciclo natural das minhas mãos e fechou minha boca com seu dedo indicador macio. Era bom demais para ser verdade. O que ela iria me dizer? “Meu marido é policial federal, e está viajando”? Não era possível. Eu não sabia do que se tratava, mas a angústia não durou muito, por sorte. Ela se levantou saltitando. Expressava a felicidade de mulheres preparadas para fazer o que mais gostam. “Não esfria. E não continua sem mim!”, foram as sentenças imperativas de uma compradora de carne experiente para seu açougueiro burro.

Ela só queria ir ao banheiro.

Também era minha intenção fazer o mesmo. Afinal foram umas boas quatro horas de bebidas na festa e só uns 45 minutos de amarrotamento das nossas roupas, antes de pararmos ali. Mesmo assim, parecia uma eternidade. O banheiro fazia parte da individualidade do processo.

Certamente, ficamos mais tempo nos prometendo com olhares obscenos, algo que deve ter potencializado a vontade várias vezes.

O tempo que ela passou no banheiro foi curto, mas suficiente para eu me recompor, me habituar com o ambiente e nosso colega de sala, o gato. Era um lugar arejado e bem organizado. Meio hipster demais para o meu gosto. Mas não era hora de discutir modinha.

Então, dei atenção para o gato. Era um animal amarelo, macho e bastante jovem. Acostumado com vida de rei, não se importou quando eu fiz carinho na sua cabeça em troca de um biscoitinho que localizei dentro de um potinho fechado, perto da ração e da água. Veio alegre pegar o agrado, e pediu mais. Se refestelou pela minha perna e dei outro, sem pensar. Ele aceitou meu carinho, tranquilamente. “Estávamos entendidos”, pensei.

“Fez um amiguinho novo, Renê?!”, ela perguntou, enquanto saia do banheiro.

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Meu nome é Ribas. E ela não estava bêbada suficiente para ter esquecido em menos de uma hora. Então, naturalmente, fiquei imaginado “que diabos de gato poderia se chama Renê?” Era por causa do René Descartes, ela explicou. Fingi prestar atenção e estar interessado. Mas meu grau de preocupação com os fundamentos da ciência moderna não chegava nem perto daquele decote. E consegui deixar isso bem claro.

A pergunta dela saindo do banheiro também serviu para mostrar quem era a majestade por ali e qual era meu lugar de vassalo. Comigo, ordens e voz de comando. Com o gato, perguntas carinhosas. Tudo bem. Entrei ali disposto a fazer todas as vontades da Renata e não iria reclamar nem um pouquinho de ser escravizado. Afinal, nós estávamos nos prenunciando desde que ela pisou no bar e não poupávamos olhares indiretos e nem tão diretos, do tipo que fariam as letras do MC Catra parecerem coisa de adolescente sexualmente confuso.

Eu e ela voltamos para a ação com o gato deixado de lado. Era o que eu pensava. Nosso alvo final era o quarto. Mas a ideia daquele gato, ainda não castrado, andando por ali já estava tão alojada na minha cabeça que não conseguia fazer outra coisa direito. Nada pode ser usado em minha defesa, no entanto, o comportamento dela visivelmente também foi alterado. O nosso enrosca coxa digno de uma Coca-cola com Mentos foi substituído por alguns passinhos tímidos em direção ao quarto e uns selinhos que pareciam ter saído das fotos de perfil desses casalzinhos melosos e insuportáveis, essas duplas que todo mundo detesta. Namoro novo, sabe?

Ao invés dela me oferecer a cama, como eu previa logo de início, seu primeiro comportamento no quarto foi baixar bem a persiana e deixar o ambiente a meia-luz. Nenhum vizinho iria nos ver, aposto. Mesmo assim, foi a principal preocupação dela. Ainda tive que ouvir uma história sobre o casal do apartamento ao lado. Segundo ela, tomaram uma multa do condomínio por uma felação em volume mais elevado. Mantendo o espírito esportivo, respondi que meu objetivo ali era a fazer ser multada.

Seria multa por excesso de velocidade, buzinar na frente de hospital, ultrapassar todos os sinais vermelhos, mais algumas infrações para garantir nossas habilitações suspensas. Ela gostou da ideia e, finalmente, recomeçamos com vontade. E agora, na cama! Aproveitei cada detalhe daquele corpo, calculando o seu tamanho em beijos/polegadas². Naquele momento, jamais poderia imaginar que seria o cálculo do meu próprio prejuízo patrimonial. Hoje, fico alerta apenas de imaginar. Naquela noite, as coisas iam indo bem até o surgimento do meu companheiro empata foda.

O infeliz do gato surgiu do nada, no pior estilo de gato padeiro, amassando pão e ajeitando ninho aos pés da mesma cama onde eu era o cliente da padaria!

Diante do imprevisto, encarei o animal e fui encarado com o mesmíssimo vigor. Renata remediou, argumentando que o animal estava sendo traído pelo próprio instinto. Afinal, havia passado algumas horas do previsto para ambos dormirem e o felino costumava se ajeitar por ali mesmo, junto dela. Obviamente, não me dei por fracassado. Voltei para cima e, na primeira oportunidade, esbarrei com o pé, muito pretensiosamente, sem chamar atenção da Renata, mas deixando claro para o tal Renê que eu não o queria ali. Renê! Por algum motivo inexplicável, uma daquelas traições mentais inevitáveis, ressurgiu das trevas o nome daquele cretino na minha cabeça.

Pensei em dividir o trabalho pesado comigo mesmo, separar a empreitada na qual havia me metido por partes. Com uma das minhas mãos percorrendo aqueles seios projetados para alguma pintura renascentista, outra acariciando sua coxa direita e a boca percorrendo aquele ventre, não havia muito para se esperar de mim mesmo. Eu deveria estar pronto, mas não estava. Aqueles segundos de atraso devolveram para minha mente o olhar inflexível daquele gato. Primeiro, pensei na projeção de uma perturbação interna, não uma imagem real.

Estava errado.

O gatuno da minha ereção se reajustou dentro no layout do quarto, e repousou seu corpo pulguento em cima da escrivaninha. Enxotar o animal da cama foi uma batalha curta e a infantaria não havia se reposicionado para a nova investida do inimigo, a noroeste. A tropa principal avançava, mas estava completamente desassistida. A cavalaria inimiga me encarava com as sobrancelhas arriadas sobre os olhos e um rabo nervoso, posicionado para o ataque diagonal.

Quando a Renata me intimou, definitivamente, para comparecer a cena do crime, fiz a pior escolha dos meus 32 anos, incompletos. Projetei minha investida, como uma última tentativa de instalar a ordem no recinto. Não deu certo. Mesmo alterando o ângulo do corpo dela, para minha visão não incidir diretamente no olhar do meu algoz, o estrago estava feito. Perdi completamente a esperança de fazer as coisas darem certo ali e recolhi minhas esperanças. Renata se ofereceu para o método de ressuscitação oral, mas eu não estava preparado para duas situações ridículas daquela monta, em um espaço de tempo tão curto.

Pedi licença para ir ao banheiro e, quando estava saindo do quarto, vi aquele gato aos meus pés, com o rabo espanando o vento e os olhos voltados para o alto em minha direção. A testa enrugada de alguns minutos atrás havia dado lugar a um semblante de felicidade. “Ele gostou de ti. Agora, pensa que você está indo buscar mais biscoito pra ele”.


publicado em 25 de Março de 2014, 06:46
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Everton Maciel

Everton Maciel é gaúcho e não suporta bairrismo. Só tolera bares que não permitem camisas polo. Nasceu jornalista, mas fez mestrado em Filosofia e mantém um blog próprio, o Blog do Maciel. Tem Facebook e Twitter


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