“Das Schicksal mischt die Karten, und wir spielen.”
(O destino embaralha as cartas, e nós jogamos.)
Arthur Schopenhauer

O Gustavo pediu-me umas mal traçadas por aqui. Achando que fosse tema livre, preparei uma redação “Minhas férias”. Mas o tema não era livre. Por ironia do destino, foi logo sobre livre-arbítrio. Ou melhor, sobre ele não existir. Ele nem perguntou minha opinião. Eu poderia argumentar ao caro leitor que o livre-arbítrio não existe apenas lembrando que até blogs têm editores, e lá se vai a liberdade do caboclo… mas o Gustavo está certo.

O que se chama comumente livre-arbítrio é uma idéia aceitável para a maioria da população (segundo o índice Folha-se, ganharia em primeiro turno), mesmo porque temos uma não-desprezível sensação de liberdade: do canal de TV ao disk-pizza, fazemos escolhas o tempo todo. Mas o livre-arbítrio sugere algo além do ambiente e da nossa composição fisiológica (em vocábulo behaviorista: da hereditariedade) para fazer essa escolha.

“Escolhas: quando você sabe que vai se foder de qualquer modo.”

O livre-arbítrio é a ideia de que, mesmo com componentes ambientais e fisiológicos empurrando o indivíduo a agir de uma forma, ele, ainda assim, age de outra. Afinal, se quando é colocado diante de dois caminhos, faz-se uma escolha por apenas um deles, isso significa que o indivíduo define por sua vontade qual caminho escolher.

Mas essa concepção costuma ignorar de todo o fato de que o ambiente “ajuda” nessa tal “escolha”. Ou seja, se o ambiente “ajuda” a definir a escolha do indivíduo (não existiam pianistas na Assíria, nem analistas de mídias sociais na Babilônia), como é possível que a escolha seja “livre, pero no mucho”?

Pior: ignora-se de todo o fator hereditário. É como se decidíssemos por mágica. Por um poder fantasmagórico que tivéssemos, que pudesse solapar nossos hormônios com uma facilidade estupenda, embora seja tão difícil enchê-los de porrada assim quando se trata de espinhas, rugas e derivados.

O oposto ao livre-arbítrio é o determinismo, a teoria que diz que todo o nosso comportamento depende de fatos concatenados do passado. Não somos muito mais do que autônomos, apenas refletindo sobre a própria liberdade. Claro, há posições intermediárias entre os dois.

Para J. P. Sartre (1905-1980), negar nossa liberdade é agir de “má-fé”. Negar esse argumento, idem. Como já estou atolado em dívidas, creio que ter minha bona fides tachada negativamente não vá me causar mais aborrecimentos ainda. Sartre acredita na mesma liberdade dos primeiros cristãos, que julgavam que essa tal liberdade é presente divino, algo mágico que todos temos dentro de nós. Como meu michê no fim do mês depende de discordar dessa posição, não tenho escolha além de apresentar algumas refutações.

Comecemos pelo que diz a tradição.

Liberdade: apenas um conceito, ou algo pateta do gênero

Tradicionalmente, a única forma de provar a inexistência do livre-arbítrio seria conhecer todas as circunstâncias genéticas e ambientais que determinam o comportamento de um caboclo e, ainda assim, ele agir de maneira diferente do esperado. Como isso é impossível, você pode acreditar em mim e ponto. Caso você seja ainda assim não se convença, pode-se analisar as conseqüências de cada proposta e acreditar na minha conclusão. E ponto.

Argumentos sociais – o principal argumento contra o determinismo diz respeito ao sistema judiciário. Se não temos liberdade, não podemos condenar um criminoso por seus crimes. Vai contra o próprio sistema democrático: por que fazer eleições, se não escolhemos livremente nossos candidatos? Esse argumento é tão forte que talvez force alguém a acreditar no livre-arbítrio, mesmo que ele não exista, só por precaução contra esses monstruosos blogueiros que se opõem a ele.

Tal quizumba deriva de uma platificação muito chumbreca da ideia de determinismo. Não é só porque não há uma escolha independente de fatores externos e internos incontroláveis que uma escolha dependente deles seja impossível. O histórico do indivíduo não depende apenas de sua educação infantil: ele também inclui fatos que ocorreram imediatamente antes das eleições. É pra isso que uma campanha eleitoral existe, afinal. Um discurso é capaz de mudar meu voto. Um escândalo, um debate. Tudo isso vira meu histórico, imediatamente. Não preciso ser magicamente livre de tudo: pelo contrário, o discurso que temos por aí é justamente para sermos influenciados, e é bom sermos abertos à influência externa.

“A escravidão é produtiva.”

A democracia, aliás, não se resume a eleições. Ela é mais válida que uma ditadura por seu conjunto de práticas: liberdade política, participação (in)direta, imprensa livre, opções para escolha de governantes e influência no seu comportamento. Ademais, se temos mesmo livre-arbítrio, não precisamos nos preocupar com essa visão.

O sistema judiciário, por outro lado, serve para lidar com os fracassos das pessoas. Independentemente de agirem com ou sem influências, as pessoas são as únicas responsabilizáveis por seus próprios atos, de qualquer forma. É encarando o próprio determinismo (e seu corolário, o fato de que o comportamento possa ser “controlado”) que torna possível proteger a sociedade do transgressor, e evitar o mesmo comportamento futuramente.

Argumentos lógicos – indo pelo caminho da lógica, é bem difícil negar o determinismo. Com efeito, pode-se chamar de livre-arbítrio a ignorância dos determinantes do comportamento:

“Quanto mais sabemos das razões por trás dos atos de uma pessoa, tanto menos atribuímos esses atos ao livre-arbítrio.
–William Baum

Por outro lado, independente do quanto se saiba, o comportamento é imprevisível. Isso não é prova contra o determinismo: há muitos eventos que não conseguimos prever, e mesmo assim eles não têm “vontade” para serem livres. Tome-se qualquer exemplo de comportamento obscuro, como bolsa de valores, metereologia, ciclo menstrual ou tela azul do Windows: todos sistemas de comportamento imprevisível, mas nem por isso “livres”. O erro é simples: o livre-arbítrio implicaria imprevisibilidade, mas não quer dizer que imprevisibilidade implica livre-arbítrio.

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Por sinal, mesmo a ideia da imprevisibilidade deve ser falsa. Se minha vontade é livre, devo conhecê-la bem. Uma vontade desconhecida não seria livre, para mim. Se eu a conheço, devo ser capaz de prevê-la até o fim, perfeitamente. Dietas abandonadas e promessas não cumpridas são prova viva de que algo vai mal nesse conceito.

Moral – será que sem o livre-arbítrio passaremos a ser indivíduos imorais? Poderíamos perguntar a uma enorme fatia da humanidade que não foi criada pelo sistema judaico-cristão: budistas e hindus. São todos imorais? Ademais, é impossível viver sem uma moral. Se defino que toda a moral está errada, imediatamente passo a considerar que quem age de acordo com uma moral está mais errado do que eu. Então, mordo meu próprio rabo. Não preciso brincar de cachorro dessa forma só para me sentir mais livre. Posso, sei lá, sair correndo pelado na rua.

“Finalmente! Nós iraquianos estamos livres… para nos prostrarmos a Alá, oprimir nossas mulheres, odiar judeus e cortar nossas cabeças!”

Darwin – e também há a teoria da evolução. Para começar, uma dúvida metafísica: como algo não natural e factível (no sentido positivista-científico, mesmo) pode causar algo natural, como o comportamento? Qual a glândula no cérebro responsável por nos dar um comportamento livre da influência da constituição do nosso próprio cérebro? Por fim, como é possível que algo como “vontade livre” evoluísse, de bactérias e dinossauros até nós, os bípedes?

A vontade de vontade

Last but not least, uma argumentação minha, pouco afeita à tradição (eu tinha dito que era melhor aceitar logo de cara, não foi?).

O maior imbróglio com o qual se bate com o nariz quando se fala em livre-arbítrio é que a discussão diz respeito a controlarmos ou não nossa vontade. E, como a linguagem costumeiramente nos dá umas voadoras, ouvimos discussões moralistas sobre “ser escravo das vontades” ou outros paradoxos do gênero.

Voltando à tradição dos livre-arbitristas, de Aquino a Sartre, eles consideram a própria vontade como uma potência independente. Assim, mesmo que um indivíduo seja preso, ele ainda está “livre para se rebelar”, como diria Sartre.

Ora, o fato de um indivíduo estar livre para desgostar da sua situação, e não poder fazer nada para tal, já seria suficiente para defenestrar certos livros e ir ler Batman. Mas o principal não é isso: Sartre, escritor de mão cheia (que recusou seu Nobel por achar o prêmio muito vendido), é espertinho para dizer “livre para se rebelar”, sem atentar para sua contrapartida: o indivíduo que está preso contra sua vontade não é livre para não se rebelar.

Em outras palavras: foca-se no sentimento que surge dentro do indivíduo como uma potência que parece livre só por gritar mais alto que o ambiente, mas não se nota que (a) ela só confirma que o ambiente é que faz surgir a revolta, que não nasceria livremente sem o indivíduo sofrer; (b) o indivíduo não controla a sua revolta – ela surge independentemente dele, e ele simplesmente, por já estar com o sentimento pronto, pode cair nessa patota de “Ao menos fui livre pra mostrar o dedo pelas costas dele”; (c) Sartre continua feio bagarai, e não teve liberdade de mudar isso.

Pode-se resumir o argumento dessa forma: a vontade surge independentemente das nossas outras vontades. Por exemplo, tenho vontade de emagrecer, então penso que não comerei fritura. Mas minha vontade de comer fritura surge independentemente daquela vontade de emagrecer.

Poderia se pensar, então, que se trata de uma compensação por vontades diferentes. Mas mesmo essa primeira vontade de emagrecer não surge porque sinto vontade de emagrecer: não controlo minha apreciação estética (não “escolhi” achar a Helen Hunt mais bonita que a Zeta-Jones), nem mesmo a do que vejo no espelho. Então, desde o princípio, a vontade não é “livre”. E se algum dia, milagrosamente, não estiver com vontade de comer chocolate, não ficarei com vontade de ter vontade de comer os chocolates que aparecerem na minha frente. Não se controla a vontade ou a falta dela.

Conclusão: concorde comigo. Você não é livre pra discordar.

Por fim, podemos citar de passagem duas teorias “compatibilizadoras”. O psicólogo behaviorista Donald Hebb considera que livre-arbítrio é um comportamento que depende da hereditariedade e da história ambiental – ou seja, coisas menos perceptíveis que o ambiente direto do indivíduo. Esse “livre-arbítrio brando” ainda depende 100% dos genes e do histórico, então, não o trata como algo mais do que uma ilusão, e não uma relação entre pessoa e ação.

E Daniel Dennett, mais bonitamente, considera livre-arbítrio como “deliberação antes da ação”. Ou seja, se eu pensar se devo ou não atacar aquele pacote de batata frita durante um regime, terei uma certa liberdade de ação, embora, novamente, tudo ainda dependa dos genes e do ambiente.

Espero poder ter mudado a vida de alguém. Passarei a seguir o número da minha conta para agradecimentos em espécie – só não precisam deliberar demais antes de agir.

sitepdh

Ilustradora, engenheira civil e mestranda em sustentabilidade do ambiente construído, atualmente pesquisa a mudança de paradigma necessária na indústria da construção civil rumo à regeneração e é co-fundadora do Futuro possível.