Existe uma época da vida em que meninos e meninas podem ser moleques e molecas: você chega na praia e estão todas dentro d'água, brincando e pulando, pegando jacaré e fazendo stand-up paddle.
Aí, aos poucos, sem ninguém mandar, sem ninguém obrigar, as meninas vão saindo da água. Uma por uma.
Sempre sobra uma ou outra, claro, mas são as exceções que comprovam a regra: de repente, você chega na praia e quase todos os meninos estão na água, correndo e nadando, brincando e pulando (sabe como é, "sendo meninos"), e as meninas, na areia, fofocando, uma penteando a outra (sabe como é, "sendo meninas").
Essa fase dura a vida inteira: você chega hoje em qualquer praia do Rio de Janeiro e 90% das pessoas, de todas as idades, dos vinte aos sessenta, nadando e correndo, jogando frescobol e pegando onda, são homens.
A maioria das mulheres continua no mesmo lugar desde a adolescência: sentadinhas na areia, arrumadinhas, paradinhas, bem comportadas, "femininas".
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De tantas coisas que minha mãe me ensinou, a mais antiga que me lembro foi como detectar (e escapar) das valas na praia.
Um conhecimento que de fato salvou minha vida diversas vezes: o mar sempre ganha. Se ele quiser me levar pra algum lado, eu vou. A escolha é se vou de boa, flutuando, ou se vou lutar contra até morrer afogado. De um jeito ou de outro, vivo ou morto, meu corpo vai pra onde o mar quiser.
Obrigado, mãe.
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Minha mãe, moradora de Copacabana e da Barra da Tijuca nas décadas de 50 e 60, passou a infância inteira dentro d'água e, até hoje, é uma verdadeira enciclopédia sobre o assunto: tudo o que eu sei sobre a praia e sobre o mar, sobre ondas e sobre valas, foi ela que me ensinou.
Eu, assim como ela, também cresci em frente à praia e passei literalmente a infância dentro d'água. Até hoje, se tenho algum habitat natural, onde me sinto 100% a vontade, é o mar batido e gelado das praias oceânicas do Rio.
Nunca admirei tanto a minha mãe como quando eu, peixinho filho de peixona, bebia sofregamente, de olhinhos brilhando, toda sua sabedoria sobre o mar, que eu e ela tanto amávamos.
Mas eu NUNCA vi a minha mãe dentro d'água.
E eu perguntava:
"Poxa, mãe, se você sabe tudo isso, se gosta tanto do mar, por que não vem pra água com a gente?"
"Porque vai molhar meu cabelo."
"Porque estou de brinco."
"Porque vai estragar a maquiagem."
"Porque estou aqui conversando com as minhas amigas."
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Vocês, em outras cidades, com outras vivências, com certeza têm outros exemplos.
Em minha vida, o primeiro espaço de onde reparei as mulheres à minha volta sendo expulsas... foi o mar.
Depois de sair da água, infelizmente, as meninas continuam saindo:
Saem dos tatames e das quadras, dos laboratórios e das empresas-júniores, vão saindo e saindo, ocupando cada vez menos e menos espaços.
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Ilustração original de Flávia Tótoli, criada especialmente para esse texto.
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publicado em 15 de Dezembro de 2016, 00:05