Meio bêbada e de braços dados com um espanhol

Das noites em Madrid, entre o espanhol e o colombiano

"Por aqui sempre tem um monte de gente chegando e indo embora, essa é a semelhança entre São Paulo e outras cidades grandes". Li isso em uma reportagem ou guia de viagens, não me lembro direito. Naquela época, eu tinha passagens marcadas para longe. Iria viajar em mês e sabia apenas que a semelhança entre São Paulo e as cidades pelas quais eu passaria era o fato de que em todas elas sempre tinha muita gente chegando e partindo. Eu, inclusive.

O roteiro de paragens, que antes fora traçado a quatro mãos - resquício de uma ressaca amorosa -, finalmente iria sair do papel. Obviamente era muito menos megalomaníaco do que o que havíamos planejado inicialmente. Três meses de viagem, transformaram-se em vinte e cinco dias - era só quanto meu dinheiro dava. Além disso, agora já não éramos nós. Então mudei rota, apertei as contas, comprei as passagens e embarquei sozinha, no último dia do ano, como se daquele modo pudesse deixar para trás todos os últimos 365 dias.

Eu acreditava que bastaria isso para que minha cabeça voltasse para o lugar certo - apesar de nunca ter entendido direito o que significava esse negócio certo e errado. Não imaginei, no entanto, que fosse acontecer o contrário. E, na verdade, era justamente o que eu precisava.

Quando entreguei o meu passaporte para o recepcionista - uma figura com cara de personagem de filme do Almodóvar -, por alguma razão que não sei bem qual, me lembrei de todas essas coisas que eu lhe conto agora. Foram elas que me levaram até um hotel em reforma, um pouco afastado do centro. Era a minha primeira noite em Madrid e, apesar de não ter planejado encerrá-la ali, era lá que eu estava: meio bêbada e de braços dados com um espanhol, que falava português mas vivia na Suíça. Ou algo assim. Era lá que eu estava e não fazia ideia do que esperar daquele encontro - e nem de todos os que viriam depois.

Tínhamos nos conhecido algumas horas antes em uma festa do hostel em que eu realmente tinha me hospedado - o lugar em que estavam as minhas malas, e em que eu supostamente deveria passar a primeira noite. No entanto, quando a bebida acabou, resolvemos que seria uma boa ideia seguir de bar em bar, ao lado de um grupo de pessoas que também acabáramos de conhecer: um artista de rua panamenho, um mexicano que queria conhecer o mundo, uma musicista da Estônia...

Aos poucos, todos eles foram ficando pelo caminho. Algumas doses, copos acidentalmente quebrados e drinks roubados depois, acabamos sozinhos. Foi ali que pude perceber algo que as risadas de antes não tinham me deixado notar: ele tinha olhos que não olhavam. Escapavam  e tinha tanta coisa dentro deles que eu não poderia tê-las compreendido se ele não sussurrasse em meus ouvidos que nós tínhamos pouco tempo, que logo seria engolido pelas vozes que ouvia.

Sempre achei que a loucura estivesse em todos os lugares, e eu já a tinha visto em outros olhos, além dos dele. Afinal, quem é normal?

Sempre achei que, grande parte do tempo, caminhamos pela mesma corda bamba, evitando olhar para o abismo que nos cerca. Acontece que, algumas vezes, somos instintivamente tragados para dentro dele. Pode acontecer com qualquer um, a qualquer momento. Afinal, quem é normal?

Por isso resolvi ficar, porque mesmo sabendo que a loucura a qual ele se referia, era de verdade, eu já havia sido puxada para dentro do abismo. Eu não ouvi as mesmas vozes, mas entendia - mesmo que não completamente - como era estar com a cabeça fora do lugar que dizem ser o certo. E me admirava a coragem dele de falar sobre aquilo, eu mesma não a tinha - e ainda não tenho.

Tudo isso eu disse sem precisar dizer. Então, seus olhos pararam de escapar. Fixaram-se pela primeira vez. E eu mudei o assunto, porque não fazia ideia de como encará-los.

– Diz alguma coisa em francês? - pedi.

– Que coisa?

– Qualquer coisa.

Ele falou algo, e eu sorri sem entender - sem tradução não perde o encanto.

Ainda estávamos parados na rua, tentando lidar com o álcool, o tesão e todas as confissões intimas que compartilhávamos, quando os primeiros pingos começaram a nos molhar. A previsão do tempo já tinha anunciado que durante a madrugada a tempestade seria forte, mesmo assim, para ela nós também estávamos despreparados.

Foi isso que nos levou até a recepção de um hotel em reforma, afastado do centro, e fez com que eu escolhesse o quarto mais quente para terminar a minha primeira noite em Madrid - essas são coisas inevitáveis e irresistíveis, que sempre me fizeram perder a hora de voltar para casa.

Na manhã seguinte, a chuva ainda caia forte, mas agora já não estávamos tão despreparados para encará-la. Recolocamos as roupas, e ele voltou a ter olhos que não olhavam. Foi assim. Foi só isso.

Depois daquilo, nunca mais nos vimos. E seu nome só foi citado mais uma única vez, horas depois, quando um colombiano bêbado me perguntou se eu tinha transado com o espanhol. E eu respondi que sim, mas não pude dizer tudo o que aconteceu. Na verdade, não saberia dizer tudo o que aconteceu. Sabia apenas que, a qualquer momento, ele poderia entrar em um mundo que eu não tenho acesso, e eu não conseguiria conviver com essa loucura, não além daquela noite.

E é provável que já soubéssemos de tudo isso logo no primeiro beijo, quando um tirava a roupa do outro, ou enquanto eu deixava que ele me conduzisse por diversas posições. Enquanto sentia a vertigem extremamente excitante de ser guiada por um louco, sem fazer a menor ideia de para onde seria levada. Excitante e perigosa, porque fazia com que eu visse a minha própria loucura.

Aquele era só o começo da viagem, ainda havia muito para ser percorrido; inúmeros encontros para os quais eu não estava preparada. E, depois, teria que lidar com as lembranças de todos eles. Esse é o preço que se paga pela irresponsabilidade de deixar-se perder entre as paisagens dessas cidades cheias de pessoas que estão sempre indo e vindo.

Faz tempo que tudo isso aconteceu, mas ainda me pego pensando se toda essa história da loucura era verdade, ou nos riscos que eu podia ter corrido, caso ele fosse tomado por algo que eu não pudesse entender. E, algumas vezes, senti que fui imprudente. Outras, ficava excitada. Hoje não sei mais.

Esse processo de perdas, ganhos, encontros e desencontros, já me levou - e ainda leva - para lugares muito estranhos. Ainda assim, arrisco dizer que, quando já passou da hora de voltar, esses sorrisos indecifráveis e olhos que não olham, podem parecer um pouco coerentes. É por isso que (às vezes) eu escolho ficar - nem que seja só por uma noite. Nunca achei que houvesse nada de errado nisso. E, talvez, essa seja semelhança entre nós: estamos sempre chegando e partindo. Em alguns momentos, sem saber direito para onde, mas sempre chegando e partindo. E, se no final todas essas estradas nos levam para casa, pode ser que não haja nada com o que precisemos nos preocupar tanto.


publicado em 20 de Setembro de 2016, 00:00
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Amanda Cipullo

Editora do site Casos Rock n' Roll e formada em publicidade. Jornalista por acaso, atriz e escritora por paixão. Acredita que pedras que rolam não criam limo, e é esse tipo de história que conta por aqui.


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