Mapa da Cachaça: 9 alambiques inesquecíveis em 2 anos de estrada

Em agosto de 2010, eu e a Gabi Barreto criamos o Mapa da Cachaça, um projeto sobre a cultura e história do destilado brasileiro produzido desde os tempos coloniais. Nosso objetivo com o Mapa é bem simples: queremos conhecer e divulgar o Brasil.

O desejo de entrar num carro e pegar a estrada, por mais clichê que pareça, fazia muito sentido pra gente. Acho que como muitos outros brasileiros, conhecemos muito pouco nosso país, e a nossa vontade era pegar nossas câmeras de foto e vídeo e registrar uma parte da história brasileira ainda pouco conhecida, até porque trabalhamos com produção de conteúdo multimídia.

Eu acredito que dá pra falar muito sobre um povo ao analisarmos sua gastronomia. E se o francês têm o vinho, o russo a vodca, o japonês o saquê, o mexicano a tequila, nós brasileiros temos a cachaça.

E nada melhor para representar a nossa cultura do que esse destilado que já foi símbolo contra a dominação da Metrópole e que mostra como somos um povo extremamente criativo: é só analisar a quantidade de marcas e rótulos de cachaça existentes, a quantidade de sinônimos para referenciar a bebida e as variedades de madeiras utilizadas para o envelhecimento da pinga (são mais de 25, algo único no mundo dos destilados).

Neste post, eu queria compartilhar com vocês um pouco mais sobre as nossas viagens por alambiques. Criei uma lista com 10 cachaças produzidas em alambiques que visitei nos últimos dois anos e que chamaram a minha atenção seja pela tradição, pela beleza natural onde estão localizados, pelos personagens que as produzem ou simplesmente porque são boas pra caramba!

Maria Izabel (RJ) - Uma produtora de cachaça de personalidade

Eu já vi personagens bem interessantes neste mundo da cachaça, alguns eu diria um tanto peculiares, como o produtor da cachaça Seleta, famoso pelas suas roupas e hábitos extravagantes - ele já foi vestido de marinheiro no programa do Jô Soares.

De todos os personagens, o que eu mais gostei de conhecer foi a Maria Izabel. Ela já foi pescadora, jardineira, vendedora de pães integrais e atualmente trabalha produzindo a Cachaça Maria Izabel em um sítio paradisíaco de Paraty, litoral do Rio de Janeiro. Se você andar pelo centro histórico de Paraty é capaz de encontrá-la vagando descalça pelas ruas de pedra da cidade. Quando fomos visitá-la para gravar um vídeo, a produtora estava balançando numa rede do ladinho do seu alambique lendo “Crime e Castigo” do Dostoiévski, um livro que não reflete em nada a vida que ela leva no seu sítio à beira mar.

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Quem estiver em Paraty precisa passar por esse alambique e conhecer sua produtora. Maria Izabel é uma mulher simples, com uma rica história de vida e com grandes surpresas, como ter o rótulo da sua cachaça desenhado por Jeff Fisher, o designer das capas dos livros do Harry Potter.

Flor do Vale (RS) e Vale Verde (MG) - Alambiques bons pra turista

Ao longo destes dois anos, visitei muitos alambiques bonitos. Seja no meio do mato, no litoral, nas encostas de uma montanha, não faltam lugares para beber cachaça e apreciar uma linda vista. Mas alguns produtores de cachaça vão além e aproveitaram a beleza natural onde seus alambiques estão localizados para montar uma estrutura própria pra turistas.

Fazenda Vale Verde, em Betim -MG. Belo, não?

Os alambiques da Vale Verde em Betim - MG e da Flor do Vale em Canela - RS são dois exemplos de alambiques para visitar nas férias. O primeiro é de uma tradicional marca mineira localizado a 35 km de Belo Horizonte e que, além de produzir pinga, possui uma estrutura com museu, parque ecológico e restaurante.

É aqui que fazem a "Flor do Vale"

Já no Rio Grande do Sul, próximo ao centro da cidade turística de Canela, famosa pela sua gastronomia e eventos, como o Festival de Cinema, tem um ônibus amarelo – o TragoBus – saindo da praça da Catedral Nossa Senhora de Lourdes que leva o pessoal até o alambique da cachaça Flor do Vale.

Seguindo o exemplo da Vale Verde, a Flor do Vale também é parque ecológico, restaurante e, de acordo com os produtores, vão começar a oferecer atividades de tirolesa, arco e flecha e montanhismo – só não dá pra beber e brincar de tiro ao alvo.

Mato Dentro (SP) e Santo Mario (SP): Empresas tradicionais com uma postura jovem

Além de beber uma boa pinga, claro, uma das coisas que mais gosto no mundo da cachaça é a tradição familiar na produção da aguardente. Estas duas cachaças do interior de São Paulo são exemplos de como podemos manter a tradição, mas ainda assim pensar num público mais jovem e emergente que é o novo consumidor de cachaça de qualidade.

A Mato Dentro em São Luiz do Paraitinga e a Santo Mario de Catanduva são cachaças produzidas há três gerações e que agora têm o futuro da marca nas mãos dos netos dos seus fundadores.

As duas têm na tradição da família italiana a importância de manter os laços e primar pela qualidade de um produto artesanal, mas conseguem manter inovando com identidades visuais modernas e usando ferramentas de marketing digital. A Santo Mario, por exemplo, usa o Facebook pra chamar os catanduvenses para tomar um caldo de cana fresquinho no alambique da família – já são mais de 10 mil seguidores na rede social!

Ypióca 150 (CE) - Industrializada pode ter qualidade

O mercado da cachaça, assim como o da cerveja, tem também sua produção artesanal e industrial. Ao visitar o parque de produção da Cachaça Ypióca em Maranguape no Ceará, pude evidenciar as diferenças entre cada tipo de produção.

A Ypióca é uma das principais produtoras industriais de cachaça. Enquanto um pequeno produtor destila 10 mil litros por ano, a Ypióca engarrafa mais de 120 milhões de litros vendidos no Brasil e no exterior. Todo esse poder de produção fez com que a britânica Diageo desembolsasse quase 1 bilhão de reais pela tradicional marca cearense! Um Bilhão!

Como defensor dos pequenos produtores da cachaça de qualidade, tinha um enorme preconceito em relação às cachaças industrializadas, algo que só foi mudar depois de visitar a fábrica da Ypióca em Maranguape-CE.

Tem um bilhão de reais aí

Chegando na fábrica da Ypióca minha visão mudou por três motivos.

O primeiro é a razão pela qual criamos o Mapa da Cachaça: descobrir e divulgar o Brasil. A Ypióca é uma marca centenária e uma das primeiras a produzir cachaça no país. Durante 6 gerações a família Telles se dedicou a produção de cachaça e isso, minha gente, é pura história da indústria brasileira, que inclusive é contada no belo museu presente na fábrica.

O segundo motivo é a própria produção da cachaça. Ao contrário de outras marcas industrializadas que compram a cachaça de outros produtores e a padronizam, a Ypióca controla todas as etapas de produção: da plantação até o envelhecimento da bebida em barris de madeira. Isso garante o controle de qualidade e a melhoria do processo de produção. Por exemplo, todos os subprodutos são reaproveitados, como a utilização do bagaço da cana depois da extração do caldo para fertilizar o solo da plantação.

O terceiro e último motivo está na Ypióca 150, um blend de carvalho e bálsamo, ou seja, uma mistura das duas madeiras, que provou pra mim que cachaça industrial pode também ser gostosa - eu realmente gosto dessa combinação pela picância de especiarias do bálsamo e o doce avanilado do carvalho, que na medida certa produz uma excelente cachaça.

Depois da compra pela Diageo, espero que a Ypióca continue quebrando outros preconceitos e ajudando a divulgar o nome “Cachaça” Brasil afora, afinal esse era uma dos compromissos da família Telles. No mercado sempre teve e sempre haverá espaço tanto para o produtor artesanal quanto para o industrial, cabe aos consumidores aos poucos compreenderem os prós e contras de cada tipo de produção.

Século XVIII (MG) - O alambique dos descendentes de Tiradentes

Na Estrada Real, na cidade de Coronel Xavier Chaves, pertinho de São João Del-Rei, está localizado o Engenho Boa Vista, o alambique mais antigo do Brasil ainda em produção, onde é produzida a Cachaça Século XVIII. A propriedade é de Rubens Chaves, descendente de Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.

Pura história brasileira

O Engenho foi construído há aproximadamente 250 anos pelo padre Domingos da Silva Xavier, irmão do herói inconfidente, e continua produzindo cachaça artesanal de maneira muito parecida como era feita no Brasil Colonial. Nos tempos de Tiradentes, a produção de cachaça abastecia as minas de extração de ouro em Minas Gerais e era símbolo contra a repressão e controle de Portugal.

A região tem um apelo turístico e histórico muito interessante e para quem for ficar na cidade, recomendo a pousada da família Chaves, um antigo sobrado há apenas 3 quilômetros do Engenho Boa Vista.

Havana (MG) - O mito

Em todas as referências sobre cachaça o nome Havana é presença confirmada. Esta cachaça de Salinas-MG é hoje uma das mais famosas e mais caras cachaças existentes no mercado. Uma garrafa de Havana custa entre R$300 e R$400 e tem uma Havana antigona no Mercadão de São Paulo custando o preço de um carro popular.

Sinceramente, conheço cachaça envelhecida em bálsamo que acho mais gostosa e outras com um melhor custo benefício. Mas amigos, a Havana vale cada centavo que nosso dinheirinho de pinga pode pagar. Vou explicar o porquê:

A Havana representa o lado romântico da cachaça. Ela era produzida por Anísio Santiago, um homem simples, que gostava de um bom jogo de truco de vez em quando e que fazia cachaça não pela grana ou porque gostava de beber (ele não bebia!), mas porque queria ver seu nome associado a uma cachaça especial – a qualidade estava acima de qualquer retorno financeiro.

Anísio morreu sem poder rotular suas cachaças como Havana devido um processo que sofreu do rum Havana Club. Uma vez proibidos de utilizar o nome Havana, os produtores rotularam as garrafas como Anísio Santiago e as poucas garrafas de cachaça Havana disponíveis se tornaram itens – caríssimos – de colecionador. Só recentemente a família Santiago conseguiu reaver o direito de rotular sua produção como Havana na justiça.

As cachaças Havana e Anísio Santiago seguem sendo produzidas por Osvaldo Santiago, filho de Anísio e o seu sucesso motivou toda uma geração de produtores da região, que hoje é sinônimo de cachaça de qualidade.

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Anísio Santiago é uma dessas figuras raras, que cativa pela simplicidade e pela obra. A Havana é um mito e um símbolo brasileiro.

Tulha (SP) e Encantos da Marquesa (MG) - O mundo dos blends

Hoje a minha grande curiosidade em relação à cachaça é entender mais sobre a influência das madeiras e misturas de cachaças para a criação de um blend. A Tulha em São Paulo já é conhecida por fazer todos os anos uma versão limitada de blends usando madeiras como o carvalho, amburana e bálsamo.

A variedade de madeira é enorme e cada uma influencia de maneira distinta as propriedades sensoriais do destilado. Por isso, começamos um experimento no Mapa da Cachaça para entendermos mais sobre esse universo ainda pouco conhecido. No nosso escritório colocamos a cachaça Encantos da Marquesa em barris de amburana, jequitibá, bálsamo, eucalipto, ariribá, castanheira e carvalho europeu, para identificarmos o que cada madeira traz para a cachaça – não apenas as qualidades, mas defeitos também.

Percebemos, por exemplo, que ao passar muito tempo na amburana, a cachaça fica com um cheiro de estábulo e um gosto de madeira muito forte, quase intragável.

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Nós escolhemos a Encantos da Marquesa pela sua produção primorosa e personalidade – é uma cachaça que já chama a atenção na sua versão purinha. E ela tem também uma versão que utiliza diferentes tipos de cana-de-açúcar: a Java Branca e a Java Amarela.

Estamos falando de um novo tipo de blend que é realizado ao misturar canas distintas para a criação de uma bebida inovadora.

O potencial disso é enorme e à partir daí podemos – talvez – começar a falar de um terroir para as nossas cachaças.

Será que a cana que cresce no interior de Minas vai dar uma cachaça diferente daquele que tem a cana crescendo no litoral fluminense?

* * *

A lista acima não é um Top 10 do Mapa da Cachaça. Pela variedade de madeiras e tipos de cachaça, não seria esta a melhor forma de fazermos uma classificação sensorial. A ideia aqui é compartilhar um pouco da minha experiência e fazer um convite à todos aqueles que, assim como a gente, também tem esse desejo de conhecer e divulgar as coisas boas do nosso país.

No Mapa da Cachaça você pode encontrar mais informações técnicas, históricas e também indicações de locais onde comprar as cachaças citadas, seja em doses (nos bares), ou em garrafas (em lojas online especializadas).


publicado em 28 de Janeiro de 2013, 19:15
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Felipe Jannuzzi

Felipe é produtor cultural, empreendedor e consultor multimídia. Na velhice, talvez sossegue e monte o próprio alambique, mas agora quer conhecer e divulgar todos os cantos do Brasil. É editor no Mapa da Cachaça.


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