Mão direita no corrimão para evitar o término

As conversas que circundam o fim de um relacionamento

Enxerga a placa de longe e não consegue referenciar se a frase que a compõe é pedido ou recomendação. Talvez os dois. A madeira branca dividida em duas partes, apoiadas de costas uma para a outra, carrega palavras impressas graficamente em vermelho para evidenciar o pedido/sugestão: estacione aqui. Em algum momento da história de nossa civilização, alguém olhou para esse tipo de sinalização e refletiu a potencialização publicitária. Enfiaram seres humanos entre as duas chapas de madeira para caminhar em perímetros específicos, ou não, do centro da cidade. Ele pensa, então, que há tempos não enxerga um dos homens-placa, depois questiona o próprio pensamento. Talvez eles apenas tenham se integrado à paisagem e ele já não os vê. Tenta, em vão, lembrar se havia visto um em 2015 enquanto gira o volante para subir a rampa circular. Dá duas voltas por andar até chegar ao quinto, onde encontra uma vaga. Estaciona.

Agora, o único motivo para ter subido a vertiginosa rampa do estacionamento, e antes disso dirigido dez quilômetros e, antes, solicitado o carro de sua mãe emprestado, era para o determinado fechamento do ciclo. A oficialização do término do namoro. Ok, eu vou até aí buscar o resto das coisas, ele disse supondo que ela estava lá, no apartamento. Mas não. Ela negou a possibilidade imediatamente após a mensagem ser sinalizada como lida. Respondeu que não, não era para ele ir lá, e escreveu para evidenciar que, no momento em que se correspondiam por Whatsapp, ela não estava no apartamento em que passaram três anos juntos. Ela queria que se encontrassem em ambiente neutro. E outra, ela ia sair de lá, o apartamento devia estar já repleto de caixas. Havia um mês que o contrato havia se encerrado, e ele bem sabia que o prédio era ruim, o condomínio caro, e os vizinhos barulhentos. Mas isso não foi dito. Ok, ele respondeu. Onde, então? No shopping tal, ela disse. E especificou horário e local de encontro antes que ele pudesse perguntar, tornando nula qualquer possibilidade de extensão da conversa. Mesmo que ele quisesse questionar a incongruência de ela se fazer presente em um shopping, não houve abertura.

O local marcado era em frente a uma loja que haviam brigado, dois anos antes, quando ela se sentiu esgotada pela falta de paciência dele por ter de esperar quarenta e cinco minutos enquanto ela experimentava vestidos para uma das tantas formaturas que compareceram juntos. Por esse motivo sabia quais eram os bancos ao qual ela se referia na mensagem. Eram os mesmos que usou para sentar e espantar o tédio com um jogo qualquer de celular enquanto ela estava no provador. Lembrava, e sempre lembraria, quando ela saiu da loja, já com a intenção implícita de discutir, perguntando com veemência desnecessária por que ele não havia esperado lá dentro, afinal, havia um sofá de espera. Ela, na ocasião, queria sua opinião sobre os vestidos. Fiquei chamando teu nome igual uma palhaça, ela havia dito. Suas justificativas para aquele momento haviam sido esquecidas, ele só não queria brigar ali. Depois tudo tinha ficado bem. Tudo bem.

Encerrada a conversa no celular, ele se esticou na cama do quarto no qual passara a adolescência e movimentou o polegar de cima para baixo na tela até que o histórico de conversa com ela acusar ter chegado ao fim. Ou, melhor, ao início. A partir daí, releu tudo. Do início até a sua última mensagem, indicando o ponto de encontro para que seus últimos pertences, deixados para trás, fossem entregues. Das brigas aos corações monótonos e rotineiros que se enviavam após qualquer contato. Das mensagens corriqueiramente românticas aos encontros marcados. Tudo foi revisitado antes que pegasse o carro. Antes que tentasse desanuviar suas ideias pensando sobre os homens-placa. Antes que implorasse para que a rampa circular mexesse com sua cabeça a ponto de dar o braço a torcer, pedir para voltar. Mas, não.

A porta de vidro do shopping se abre automaticamente e ele para em sua frente. Pensa em voltar. Volta. Não por receio, mas por uma dúvida grotescamente instaurada quanto ao acionamento do alarme do carro. Apesar da quase certeza de ter trancado, decide voltar. No meio do caminho, aperta incessantemente o botão de desligamento do alarme e como não há resposta sonora, continua a apertar. Um pouco duvidando da eficácia da bateria do controle, outro pouco duvidando do ato inconsciente de ter ativado o alarme. Repente a ação durante os últimos dez passos. Apenas quando se escora no carro, desiste do primeiro botão, e testa o de acionamento. A resposta é imediata. Alarme acionado. Agora, portanto, não tem desculpas, nenhuma convincente ao menos. Hora de entrar. Caminha devagar na direção da porta automática que gasta uma quantidade desnecessária de energia elétrica apenas para suprir o conforto humano de não interromper a trajetória para empurrar um pórtico qualquer.

Do andar do estacionamento precisa descer dois lances de escada para chegar ao local marcado. Sabe, no entanto, que sequer precisará dobrar os joelhos para isso, a escada rolante, em ritmo constante e suave, cuidará dessa tarefa. Estica o braço e sente o corrimão emborrachado e preto na palma da mão. Entende, pela sensação que a textura lhe causa, que lavar as mãos será sua próxima tarefa. Ainda durante a descida, olha para baixo, na distância, na procura de uma placa que indique os banheiros. Não encontra. Mas é nisso que continua pensando enquanto contorna a primeira escada para saltar no segundo lance que o levará para o andar em que ela o espera.

Desentende-se com as pernas quando vai dar o primeiro passo na segunda escada rolante. Talvez por ter fixado a ideia de não se apoiar no corrimão dessa vez, talvez pela brusca ideia de voltar ao estacionamento, subir no carro, e rumar para uma cidade qualquer, longe dela, longe do resto de suas coisas, longe do término. Num último instante leva a mão direita ao corrimão para evitar o desastre. Está desorientado. Olha para trás, na direção oposta ao ritmo da máquina rolante. Vê duas mulheres, cinco ou seis andares acima dele, e desiste da ideia de voltar aos pulos no contrafluxo. O celular vibra. É ela. O balão verde do whatsapp apresenta um Onde tu tá? acompanhado de um emoji que ele não consegue decifrar, mas acredita indicar confusão. Tô no banheiro, mente. Atinge terra firme e se encarrega de tornar a mensagem uma verdade adiantada. Acha o banheiro, liga a torneira e deixa a água correr por cima das mãos.

O nervosismo toma conta de seu estômago. Ensaia mentalmente algumas desculpas. Encara o espelho e percebe o que está fazendo, sente medo. Materializa os pensamentos num vômito que torna a pia do banheiro do shopping uma imundície completa. Olha em volta através do espelho e enxerga os pés de alguém deixando uma das cabines privadas. Rapidamente joga água no rosto e procura papéis para se secar antes que o homem chegue ao seu lado. Em vão. O homem se aproxima da pia e pergunta se tá tudo bem. Ele diz que sim, mas sabe que não. Foi alguma coisa que comi, diz, reproduzindo a frase de algum filme ou livro. A interação constrangedora volta a lhe corroer internamente. Do estômago aos pulmões tudo se retorce. A única forma de secar as mãos é por meio de um aparelho estranho na parede. O sensor de presença detecta suas mãos e joga um ar quente, acalentador mas insuficiente. Seca a maior parte nas calças enquanto sai do banheiro olhando para baixo, por medo de encontrar o olhar do outro.

Caminha rápido. Mira os próprios pés durante o resto do caminho. Quando chega próximo ao local, a enxerga de costas, com o celular na mão. Ela digita algo. Descobre ele mesmo era o destinatário quando o celular vibra em seu bolso com outro Onde tu tá?, acompanhado de um Por que a demora?. Sem emojis dessa vez.

Cutuca o ombro dela. E aí, desculpa a demora, ele diz.

Tudo bem. Tu tá bem? Tá pálido.

Tudo ótimo. Tô não, impressão tua. Trouxe as coisas?

Trouxe, sim. Tá aqui, ela diz esticando uma ecobag. Ele odeia ecobags.

Valeu, então. Tá tudo aqui?

Tu tá bem mesmo? Tá, sim, tudo aí. Teu kindle, o carregador da câmera, o HD externo, dois cartões de memória e umas cuecas.

Aham. Tô meio na correria, só. Tu chegou a passar tuas fotos?

Não, não quis mexer.

São as fotos da viagem que a gente fez pra São Paulo e pra Buenos Aires, ele pensa em dizer, mas a voz não sai. O que sai é um arroto. Ele sabe que ela vai sentir o cheiro, pois não conseguiu desviar o rosto.

Caralho! Que porra é essa?, ela berra, os olhos arregalados num susto. E ele lembra o quanto odeia essas interjeições em tons exagerados. E ela sabe o quanto ele odeia que prestem atenção às suas conversas. Durante três anos, ele se esquivou de discussões ou conversas em voz alta na presença de quaisquer pessoas. Nas calçadas, sempre falava aos sussurros sobre qualquer assunto. Não por vergonha ou coisa parecida. Tantas vezes ele havia admitido um suposto trauma, como se ao reconhecer o próprio defeito, tivesse a possibilidade de implorar para que ela não elevasse a voz. Ela ignorava, sempre ignorou. Parava o caminhar aonde estivessem, virava para ele já com as mãos na cintura e urrava Qual é a porra do teu problema? E, agora, ela repetia a cena. Afinal, ele arrotara um aparente resquício de bile na cara dela. Sua fisiologia havia solicitado um grito. E o pedido foi atendido magistralmente.

O grito, por sua vez, faz com que seus pulmões murchem em definitivo. Ele balança a cabeça e o corpo para trás e para frente num movimento ignóbil e incompreensível para ambos. Por cima do ombro dela, enxerga três pessoas olhando na sua direção. Olha para os lados, ainda se sacudindo. As vendedoras das lojas chegam às portas. Ele tem quase certeza que uma das meninas loiras é a mesma que havia atendido ela na fatídica vez. Mas, então, já não interpreta corretamente coisa alguma. Finalmente, entende porque está se balançando daquela maneira. O ar não está entrando. O nariz e a boca não aspiram oxigênio algum. Pronto, então, o fechamento do ciclo será perfeito, redondo, pensa.

Numa lucidez ofegante e repentina, puxa a ecobag da mão dela. Feito isso, ainda sem saber se está respirando, vira e corre. Vislumbra alcançar as escadas rolantes, a porta automática, o carro, a descida vertiginosa da rampa do estacionamento e, finalmente, a placa e a estrada. No entanto, o movimento repentino esgota as possibilidades. O HD externo, o carregador da câmera e quatro cuecas voam pelo piso do shopping após sua queda. O Kindle e os dois cartões de memória ficam enrolados dentro de uma cueca, dentro da ecobag.

Acorda numa sala de atendimento emergencial do shopping. Uma das tantas áreas que ele não sabia existir em um shopping. O ambiente é iluminado por luzes fluorescentes brancas. Ele está deitado numa maca e uma senhora de uniforme azul está sentada ao seu lado. Algo que ele acredita ser soro está pingando através de um cilíndro transparente diretamente para uma agulha espetada nas costas de sua mão. Ele pergunta quanto tempo esteve desacordado e a mulher diz que não tem certeza. Ele busca o celular no bolso. Dez mensagens não lidas. Nove da sua mãe, que estava indo para lá. A ex havia lhe avisado.

A mensagem restante era dela. Apenas para informar que recolheu a ecobag e os pertences. Que ele poderia passar no novo apartamento qualquer hora dessas para buscar. Desgraça, ele sussurra enquanto tenta se sentar na maca. Se aquieta, responde a senhora de uniforme azul que ele não tem certeza se é enfermeira, faxineira, zeladora ou coisa parecida. Deitado, encara o teto e não consegue diferir o tom da mulher como ordem ou sugestão, mas volta a sentar, desobediente, antes de responder um Ok. Mensagem que repete no celular, mas acompanhado de um emoji qualquer, sorteado às cegas entre tantos.


publicado em 03 de Fevereiro de 2016, 00:00
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Sergio Trentini

Cursou psicologia, administração e jornalismo. Não terminou nenhuma das três. A última já passou da metade, e essa, jura que vai acabar. Assim como todas as histórias que começa a escrever. Escreve lá no Medium


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