Liberdade inesperada: 3 casos de impunidade?

Não é incomum vermos na mídia algum caso de impunidade acontecendo no mundo. Só no Brasil três casos de morte me chamaram a atenção recentemente: para cada um deles, há algum amparo legal para seu desfecho.

Sendo assim, até que ponto então podemos considerá-los casos de impunidade? Será que as leis que amparam esses casos estão erradas?

Cesare Battisti, terrorista comunista ou inocente injustiçado?

O ex-ativista político italiano de 56 anos foi condenado na Itália pela participação em quatro assassinatos ocorridos entre 1977 e 1979, época em que integrava o grupo Proletários Armados pelo Comunismo. Até hoje, Battisti nega as acusações, alegando perseguição política. Ele foi preso no Brasil em 2007, e em seguida a Itália pediu a sua extradição.

Cesare Battisti não usa mais algemas, mas ainda deve usar o mesmo sorriso.
Cesare Battisti não usa mais algemas, mas ainda deve usar o mesmo sorriso.

O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu no dia 8 de junho, por seis votos a três, que ele não seria extraditado – mantiveram a decisão anunciada pelo presidente Lula ao término do seu mandato. Para os seis ministros, se o presidente decidiu negar a extradição, eles não deveriam se opor. A decisão é uma atribuição do presidente, democraticamente eleito, que não precisa justificá-la. Ainda segundo eles, Battisti está sendo liberado por não haver mais razão para mantê-lo preso. O ex-prisioneiro afirmou que se dedicará a escrever livros.

A Itália já ameaçou não participar da Copa de 2014 em retaliação (o que não deve acontecer, pois nunca um país abdicou da vaga por questões políticas, ainda mais a Itália!) e vai apelar ao Tribunal Internacional de Justiça, em Haia. Esse tribunal não tem autoridade sobre estados soberanos e todas as suas decisões são somente “morais”. Ou seja, se “condenarem” o Brasil a extraditar Battisti e o Brasil, como país independente e soberano, negar, o pior que pode acontecer é... nada. O país fica com o “nome sujo” em Haia, ao lado de nações como Estados Unidos e Israel, que nunca respeitaram a legitimidade do órgão.

Manifestantes pedem ao seu presidente democraticamente eleito que exerça sua prerrogativa constitucional.

A morte de Glauco: pode um inimputável premeditar?

Em março de 2010, Carlos Eduardo Nunes, conhecido como Cadu, invadiu a residência da família e matou o cartunista Glauco e o seu filho, Raoni. Glauco era responsável pela igreja Céu de Maria, inspirada na filosofia do Santo Daime, e Cadu era um dos seguidores da comunidade. Ele foi preso pouco tempo depois, enquanto tentava fugir para o Paraguai.

Assassino confesso, ele estava sob efeito de maconha e haxixe na hora do crime. Além dos assassinatos, ele cometeu outros crimes. No total, nove foram registrados: duplo homicídio, tentativas de homicídio em dois lugares distintos, lesão corporal dolosa, roubo, resistência à prisão, porte ilegal de arma e porte de entorpecentes. Caso condenado, ele teria que cumprir, no mínimo, vinte anos de pena por esses crimes e, no máximo, cerca de oitenta – embora o tempo máximo de reclusão no Brasil seja de trinta anos.

No entanto, um ano e dois meses depois de cometidos os crimes, o Ministério Público considerou Cadu inimputável. Segundo a Justiça, ele tem esquizofrenia paranoide e não compreende a gravidade dos seus atos; por isso, não pode ser responsabilizado por eles. Ele deve passar por três anos de tratamento em um hospital psiquiátrico e, ao final desse período, se a Justiça constatar que não oferece mais riscos à sociedade, ser libertado.

Por um lado, Cadu confessou ter premeditado o crime (ele disse que levaria Glauco para outro lugar, mas ficou assustado com a aparição do filho do cartunista). Depois do crime, ficou escondido em um matagal, roubou um carro e tentou passar pela Ponte da Amizade (que liga o Brasil ao Paraguai), quando foi preso.

Por outro, a imputabilidade penal é uma das bases mais importantes do nosso sistema penal. Só pode ser condenado por um crime quem tem a capacidade de entender o que está fazendo e de poder determinar se será, ou não, legalmente punido por isso. A equipe de profissionais do Ministério Público, considerou, oficialmente, com base em exames presenciais, que Cadu não é imputável.

E você, depois de ler duas ou três matérias sobre o caso no jornal, o que acha? Discorda? Acha que, independente da consciência da ação, só é considerado justiça se houver punição?

Carlos Eduardo Nunes, o Cadu, atrás das grades - mas por pouco tempo.
Carlos Eduardo Nunes, o Cadu, atrás das grades – mas por pouco tempo.

Morte no estacionamento da USP e os limites da confissão

No dia 9 de junho, Irlan Graciano Santiago admitiu cumplicidade no assassinato do estudante Felipe Ramos de Paiva em um estacionamento da USP em meados de maio. Segundo ele, seu comparsa, cujo nome não foi revelado, é que teria dado deu o tiro fatal no estudante.

Irlan e seu parceiro teriam começado a assaltar uma mulher e, ao notarem que era portadora de necessidades especiais, teriam ficado com dó e deixado o assalto de lado, pegando apenas uma “carona” com ela para encontrar uma próxima vítima. Em seguida, ao ver Felipe abrindo a porta de seu carro blindado, partiram para cima. Felipe teria reagido e, por isso, levado o tiro. Eles teriam fugido em seguida.

Depois de confessar a participação no crime (ressaltando que o parceiro teria atirado), Irlan deixou a delegacia pela porta da frente, sorrindo. A razão: por ser réu primário, ter residência fixa, e ter se apresentado e confessado o crime espontaneamente, ele tinha o direito de responder em liberdade. É importante ressaltar que Irlan não ficou “impune”, ou seja, não foi inocentado do crime: ele ainda vai a julgamento.

A justificativa de Irlan é a usual de praticantes de crimes desse tipo – Felipe é que teria errado ao reagir e etc. O que surpreendeu no quesito argumento foi a explicação do advogado de Irlan, Jeferson Badan, que afirmou que “uma regra de quem é do crime é nunca entregar o parceiro. Todo bandido tem ÉTICA. Vocês sabem que toda profissão tem ética”. Não surpreende mais quando advogado criminal defende bizarramente o cliente, mas dizer que existe ética nisso é definitivamente uma pérola.

Quando perguntado se seu cliente garantidamente não fugiria, Jeferson retrucou perguntando “Você garante que amanhã estará vivo?”. Os comentários do advogado foram repudiados pela OAB-SP, e ele se desculpou pelo suposto equívoco nas afirmações. Apesar da incerteza apresentada pelo próprio advogado, Irlan não fugiu e foi preso preventivamente no dia 16, uma semana após a apresentação na delegacia.

Irlan, aqui fazendo cara de mau, se apresentou, foi solto, foi preso de novo.
Irlan, aqui fazendo cara de mau, se apresentou, foi solto, foi preso de novo.

A letra da lei

E aí? Três casos diferentes: um, internacional, no qual a mudança de território salvou a vida de um acusado de assassinato; outro, envolvendo estados mentais alterados, no qual um tratamento mais breve que as penas de praxe poderá ser suficiente para a libertação do responsável pelo crime; e um terceiro, no qual um cúmplice de assassinato entrou e saiu da delegacia tranquilamente, somente para ser preso poucos dias depois.

Em todos os casos, se cumpriu a letra da lei.

Concordam com esses casos? As leis deveriam ser mais severas? Mais brandas? O presidente deve poder decidir quem é extraditado ou não? Se não ele, quem? Concordam com a imputabilidade penal? Devemos condenar pessoas que (segundo exames por profissionais da área) não sabiam o que estavam fazendo? Qual é o limite? Devem presos que se apresentam voluntariamente ter privilégios? Se não, isso não significaria mais trabalho para a polícia (que já não pega quase ninguém) caçar todos um por um?

Nenhuma dessas respostas é simples. Se você acha que são simples, pense de novo. As possíveis consequências são enormes.


publicado em 22 de Junho de 2011, 05:11
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Felipe Guerra

Jornalista, músico, fotógrafo e aspirante a professor. Já viu enchente levar tudo o que tinha em casa (menos os gatos e a mãe) e morou em seminário mesmo sendo agnóstico.


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