Nota do editor: esse texto foi escrito por Natália Viana e originalmente publicado na Agência Pública.

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Na tarde desta quarta-feira, 29 de junho, o presidente interino Michel Temer assinou um decreto liberando crédito a fundo perdido de R$ 2,9 bilhões para o governo do Rio de Janeiro reforçar a segurança na Olimpíada.

Mas o esquema de segurança dos Jogos deixa muito a desejar em relação à transparência sobre gastos, protocolos de atuação e planejamento, em todas as diferentes forças e esferas governamentais envolvidas. E a Secretaria de Estado do Rio é a mais problemática. 

Organizações Artigo 19 e Justiça Global constataram que há pouca transparência em relação ao plano de segurança da Olimpíada do Rio (Foto: Alex Ferro/Rio 2016)

É o que revelam as respostas a 16 pedidos de acesso a informação feitos pelas organizações Artigo 19 e Justiça Global e analisados pela Pública. As demandas foram feitas em fevereiro e março deste ano a diferentes instâncias: Polícia Federal, Ministério da Defesa, Ministério da Justiça, Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Anatel e Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro (Seseg). Apenas nove pedidos foram respondidos satisfatoriamente – um deles, somente após recurso em terceira instância às Controladoria-Geral da União (CGU), que levou quase dois meses para ser concluído.

“Estamos trabalhando há alguns meses em torno desses pedidos, e o que vemos é que de fato segurança pública ainda é um dos temas mais problemáticos e obscuros quando se trata de transparência do poder público”, explica a advogada Camila Marques, coordenadora do Centro de Referência Legal da Artigo 19, organização que defende o direito à informação. “Não podemos afastar do controle social a elaboração e previsão de políticas públicas tão somente pelo fato de se tratar de segurança pública. A divulgação dessas informações, em muitos casos, não traz riscos para a segurança pública; pelo contrário, fomenta debates, pesquisas, o monitoramento da sua eficácia e outros elementos.”

O buraco negro da Seseg

A Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro foi a mais opaca entre todas as instâncias consultadas. Não cumpriu nenhum dos prazos estabelecidos pela Lei de Acesso à Informação (12.527/2011) e em alguns casos simplesmente ignorou os pedidos feitos. “A Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro apresentou diversas peculiaridades e problemas. Em todos os casos da Seseg, tivemos que utilizar o instrumento recursal para cobrar que a secretaria apenas respondesse. Teve um caso em que tivemos que recorrer apontando o descumprimento do prazo e cobrando uma resposta por três vezes”, explica Camila.

A “lista de compras” de equipamentos não letais só foi obtida depois de uma batalha que levou o pedido, feito no dia 18 de fevereiro, à terceira instância recursal. A demanda feita à Secretaria foi solenemente ignorada duas vezes e foi respondida só em 11 de abril, depois de as organizações apelarem à Controladoria-Geral da União (CGU). (Leia mais aqui)

José Mariano Beltrame, titular da Secretaria de Segurança do Rio de Janeiro, a mais opaca de todas as instituições consultadas pela Artigo 19 e Justiça Global (Foto: Amanda Santos/Seseg)

Outro questionamento da Artigo 19 era sobre a aquisição de equipamentos eletrônicos e softwares para uso policial durante a Olimpíada. A Seseg respondeu apenas que as informações eram estratégicas e de caráter reservado, mas não explicou o porquê. A ONG recorreu em 14 de abril e ainda não recebeu resposta. “O órgão que for questionado sobre informações sigilosas deve sempre oferecer informações como: assunto, grau de classificação, autoridade que decretou o sigilo, data desse decreto e o dispositivo que fundamente de maneira clara o sigilo”, explica Camila.  (confira o pedido)

A advogada chama atenção ainda para o fato de que o governo do Rio lançou apenas há alguns mesesum site em que se podem protocolar pedidos pela Lei de Acesso – até então, alguns pedidos tinham de ser levados pessoalmente à sede da Seseg, no centro do Rio. Porém, o site ainda deixa a desejar: “Não é bem divulgado, não há espaço destinado para a interposição de recurso, e para recorrer é preciso entrar com um novo pedido de informação, com um limite de 2.000 caracteres, o que é insuficiente para tratar de uma questão recursal”, diz.

Secretaria não explica como gastará R$ 2,9 bilhões

A falta de transparência na segurança da Olimpíada já se estende à aplicação do montante de R$ 2,9 bilhões liberados pelo governo federal por medida provisória quatro dias depois de o governo do Rio de Janeiro decretar estado de calamidade pública pela sua falência financeira. (Na véspera do decreto, o presidente interino, Michel Temer, jantou em Brasília com o governador do Rio de Janeiro, Francisco Dornelles, também interino, e o prefeito carioca Eduardo Paes).

O crédito passou a valer a partir de outra medida provisória, publicada nesta quinta-feira no Diário Oficial.

O valor é mais que o dobro do gasto previsto para segurança para a Olimpíada, que era de R$ 1,3 bilhão segundo anunciou o secretário de Alto Rendimento do Ministério do Esporte, Ricardo Leyser, no final do ano passado. É 50% a mais do que o total gasto pelo governo federal com a Copa do Mundo nas 12 cidades-sede (cerca de R$ 1,9 bilhão).

Procurada pela Pública no mesmo dia em que a verba foi liberada, a assessoria de imprensa se Seseg afirmou: “Em reunião hoje do secretário José Mariano Beltrame com o governador em exercício Francisco Dornelles ficou acertado que primeiramente serão atendidos os servidores policiais, com o pagamento do restante do salário de maio, pagamento do salário de junho e das gratificações em atraso do Regime Adicional de Serviço (RAS) e Sistema Integrado de Metas”.

O RAS significa um regime de hora extra pago a policiais que fazem rondas fora do horário do serviço. Os soldados recebem R$ 150,00 por oito horas trabalhadas. A estimativa do custo para ter 25 mil PMs trabalhando e ganhando por fora durante os Jogos era de R$ 42 milhões,segundo O Globo. Já a folha de pagamento mensal da SESEG com policiais da ativa custa cerca de R$ 500 milhões.   

Questionada sobre quanto por cento do valor total representa esse gasto inicial com salários e o que se pretende fazer com o restante, a assessoria de imprensa disse que “a ideia é descentralizar esse recurso para os batalhões policiais pagarem suas contas, por exemplo, com contratos de manutenção de aeronaves”.

A assessoria disse à Pública que não sabe os valores exatos, e quem deve saber isso são a PM e os departamentos. Após insistência, pediu mais prazo para enviar dados mais concretos, mas não respondeu até a publicação.

Além de indagarem sobre valores e equipamentos a serem utilizados na Olimpíada, a Artigo 19 e a Justiça Global perguntaram à Polícia Federal e ao Ministério da Defesa quais os protocolos que as forças atuantes do megaevento adotariam.

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As respostas foram evasivas. “Recebemos uma resposta da Polícia Federal que ilustra bem a falta de justificativas concretas para a negação de uma informação: indagamos sobre as normativas editadas que dizem respeito especificamente a medidas e ações que ocorrerão durante a Olimpíada de 2016. Em sua resposta, a Polícia Federal afirmou que essas normativas não existem, porém, caso existissem, estariam guardadas em sigilo. Entretanto, ao determinar que a informação é sigilosa, o órgão deve sempre fundamentar e apresentar a motivação do ato classificatório demonstrando o risco, ainda que potencial, que a divulgação causaria à segurança pública. Nesse caso, além de não justificar concretamente a necessidade desse sigilo, o órgão estabelece a classificação em abstrato em relação a documentos que nem sequer existem”. (confira o pedido).

Para Camila, “é essencial que a sociedade possa conhecer como o policial deve se comportar para que possa cobrar a estrita legalidade das suas ações”.

Ela diz que o levantamento permite concluir que órgãos do Executivo federal responderam com mais pontualidade às demandas de acesso à informação do que o estado do Rio.

“A realização dos Jogos Olímpicos pressupõe uma série de políticas públicas, obras e gastos que geram impactos de grandes dimensões na população. Sabemos que a execução desses chamados ‘megaeventos’ geralmente vem acompanhada por uma série de violações aos direitos humanos: remoções de comunidades inteiras, aumento da militarização, criminalização dos movimentos sociais, entre outros. A sociedade tem o direito de estar informada e participar de todos os processos que a afetem. A opacidade verificada nas respostas que recebemos aponta que o legado dos jogos à sociedade será bastante negativo e contrário à garantia dos direitos humanos.”

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