Vaticano: Jacques Le Goff, Ratzinger e a Modernidade

28 de Fevereiro de 2013. O alemão Joseph Aloisius Ratzinger oficializou sua abdicação e, dessa data em diante, deixou de ser Bento XVI, líder supremo da Igreja Católica. O anúncio certamente pegou seguidores e observadores de surpresa.

O acontecimento, não sem precedentes, é um fenômeno raro na história da instituição. As inquietações mais frequentes se colocaram sobre os motivos que levaram o Papa a abandonar o cargo assumido após a morte do então pontífice João Paulo II.

De que maneira este acontecimento abala a cristandade? Teria o Vaticano se curvado diante da complexidade do mundo moderno? Estaria Bento XVI acometido por alguma doença terminal? Não poderia dessa forma manter suas funções? Estaria sendo ameaçado por alguma organização não revelada? Trata-se de uma estratégia arquitetada no seio do catolicismo?

É certo que, de norte a sul, a dúvida prevaleceu. Mas para que possamos pensar a respeito, trago a vocês trechos de uma entrevista realizada com um renomado historiador francês de nome Jacques Le Goff, especialista em História Medieval e membro do grupo de pesquisadores que, ainda na primeira metade do século XX, ficou conhecido como Escola dos Annales.

Assim como a maioria das pessoas, Le Goff se colocou intrigado e curioso diante da atitude do Papa Bento XVI, observando esse como um evento raro que demonstra, na verdade, a força plurissecular do cristianismo. A reportagem foi feita por Giampiero Martinotti, publicada no jornal La Repubblica no dia 12 de Março. Seguem abaixo alguns trechos selecionados.

1. A imagem do trono vazio

“Pessoalmente, não é uma imagem que me toca muito, mas é importante para uma religião: ela mostra que, mesmo que a religião não tenha uma cabeça humana para mostrar, há sempre o trono que simboliza a existência de um rei no céu, Deus. Consequentemente, o trono vazio é o símbolo da continuidade.

Ele é um dos pilares do cristianismo, que sempre evitou as rupturas e para o qual a única ruptura foi a encarnação de Jesus. Pode haver crises, reviravoltas, catástrofes, mas o trono de Deus está sempre lá. Essa eterna associação entre a mudança e a continuidade, encarnada pelo trono vazio, é uma das virtudes do cristianismo”.

2. A demissão

“Não se trata de demissão, porque a demissão é dada diante de uma assembleia perante a qual se é responsável, é um termo que se refere às democracias, não existe para o papa.

Acredito que se deva voltar à palavra abdicação, como para os monarcas”.

3. Motivos

“Ele diz que é por causa da idade e do cansaço, mas, fundamentalmente, ele se retira diante do mundo moderno.

Ele se sente incapaz de dominar este mundo, de fazer ouvir suficientemente a voz do Deus dos cristãos e da Igreja Católica neste mundo. Na sua retirada, sintetiza-se a lucidez, a modéstia, a esperança de permitir que a Igreja volte a subir a descida e enfrente melhor o futuro”.

4. Consequências

“É a pergunta mais importante: o que o conclave fará? Certamente, eu não sei, não sou cardeal, nem eclesiástico e muito menos especialista da Igreja contemporânea. Como historiador, olho para o passado: nunca houve um papa que tenha se retirado entre o século XV e hoje. Na Idade Média, houve dois casos.

Fala-se sobretudo de Gregório XII, papa no período do Grande Cisma, que se pode dizer que renunciou diante do Concílio de Basileia: na Idade Média, havia quem pensasse que o concílio era superior ao papa. Antes ainda, em 1294, houve Celestino V, do qual Dante fala na Divina Comédia como aquele que fez “a grande recusa”.

Apesar das diferenças muito grandes, há algo em comum entre Celestino V e Bento XVI”.

5. As abdicações

 “Celestino V era um eremita tradicional; Ratzinger, um teólogo tradicional. Penso que há algo de comparável. Celestino V pensava ser incapaz de guiar a Igreja porque pertencia profundamente ao cristianismo medieval tradicional, dominado pelo monaquismo, o anacoretismo, enquanto a cristandade havia se modificado profundamente, havia conhecido um desenvolvimento rural e urbano considerável e, no fim do século XIII, havia se tornado um mundo novo.

Eu vejo uma semelhança entre essa época e este início do século XXI.

Faz-me pensar em uma coisa que, como historiador, sempre me chamou a atenção, mesmo não sendo crente: penso que uma parte do Ocidente teve a sorte de ter o cristianismo como religião”.

6. Modernidade

“Nunca se havia visto nada do tipo e, por isso, Dante fala a respeito.

Ratzinger não rende homenagem à modernidade, porque, ao mesmo tempo, o seu gesto é uma rejeição da modernidade: o papa que abdica se retira dela”.

Le Goff apresenta um argumento que me parece definitivo em suas ideias sobre o assunto Bento XVI: O Papa se retira do enfrentamento com a Modernidade, sobretudo quando observa, na visão do Papa, uma espécie de incapacidade para o cristianismo nos dias atuais. Uma rejeição, como ele mesmo coloca.

Àqueles pertencentes ao catolicismo me parece uma visão um tanto quanto cruel, senão trágica, uma sensação semelhante a de crianças órfãs, só que neste caso de um tutor que permanece vivo e não mais encontra forças ou razões para conduzir o rebanho. Pessoalmente vejo o conflito da religião com o mundo secular como algo que não esgota a nenhum dos lados.

De qualquer forma, trata-se, amigos leitores, de um terreno bastante complexo e certamente com visões heterogêneas sobre as relações entre a cristandade e o mundo moderno.

O que vocês pensam a respeito?


publicado em 10 de Março de 2013, 21:00
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Valdir Pimenta

Historiador, tem especialização em História Social e Ensino de História. Mestre em História Social com ênfase em Religiosidades, Judaísmo e Intolerância. Professor no Ensino Superior e na Rede Pública de Educação. Interesse nas Artes, literatura, poesia e \r\ncinema. Ainda escreverá um romance.


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