Já ouviu falar em quadrinhos reportagem?

Carol Ito usa desenho e texto para contar histórias da vida real.

Carolina Ito tem 24 anos e se formou há um ano em jornalismo. Ela gostava de desenhar desde criança e como não queria deixar de lado a faceta ilustradora, decidiu incluí-la na área que escolheu como profissão. Acabou fazendo um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) que uniu as duas coisas: uma História em Quadrinhos Reportagem.O resultado foi a HQ Estilhaço: uma jornada pelo Vale do Jequitinhonha, uma reportagem de 60 páginas sobre uma viagem de dez dias pelas cidades da região, em Minas Gerais, marcada pelos baixos indicadores sociais e pela seca.

Daí pra frente, ela já fez HQ reportagens para grandes revistas, como a Trip e a Carta Capital.Em São Paulo, depois do expediente em uma empresa onde trabalha como ilustradora, Carolina falou ao Projeto Lupa como conseguiu juntar a paixão que cultivava desde criança com a carreira profissional que, aparentemente, não tinha como incluir o hobby.

“Eu sempre desenhei, desde criança. Comecei a desenhar mangá, né? Acho que muita gente da minha idade também tem esse percurso. Mas, assim, era como um hobby. Na verdade, ainda é um pouco hobby, mas era muito mais descontraído.

Teve uma obra que me marcou muito, que foi Persépolis da Marjane Satrapi. Eu falei: ‘Meu, isso é genial, eu tenho que fazer isso um dia’. Só que, assim, sem pretensões, né? Aí depois da Marjane, eu conheci o Joe Sacco, que é o mais renomado em termos de jornalismo em quadrinhos. Ele é um jornalista maltês que trabalha pra imprensa norte-americana. Aí eu li Palestina e outros livros dele e fui achando aquilo muito interessante.

Na graduação, todos os trabalhos que tinham a ver com fazer charge, tirinha, era eu que fazia. Então, eu pensei: “Meu, meu TCC vai ser isso. Vou juntar jornalismo, reportagem, com quadrinhos.

Em 2013 eu já tinha feito toda a apuração, feito as entrevistas no Vale do Jequitinhonha. Eu tinha todo o material, vários gigas de vídeo, áudio, anotações e muitas fotos, que foi o que eu usei bastante para basear os desenhos. Eu só comecei a desenhar mesmo em 2015. Assim nasceu o livro, o Estilhaço: uma jornada pelo Vale do Jequitinhonha.

HQ sobre o Vale do Jequitinhonha. 

Eu colhi muitas coisas boas com o livro. Conheci muita gente, participei de eventos por conta desse trabalho. Aí depois continuei fazendo isso em outros lugares, como na Caros Amigos, na Trip. Eu faço a apuração e os desenhos. Eu sou repórter e quadrinista. Assim, é multimídia, entendeu? (risos)

No Brasil, essa coisa do jornalismo em quadrinhos é meio recente. O próprio Joe Sacco, que é o grande ícone dessa área, publicou o primeiro livro nos anos 1990. E ele conseguiu repercussão mundial e tal. No Brasil tem um jornalista que se chama Alexandre de Maio (em 2010, ele começou a fazer reportagens em quadrinhos para veículos como o site Catraca Livre e a revista Fórum). Ele também foi uma referência pra mim.

Acho que existe certo bloqueio, assim, da imprensa de aceitar esse tipo de formato de jornalismo em HQ. Porque às vezes muita gente ainda associa quadrinhos com uma linguagem infantil ou que não lida com temas com profundidade e complexidade. Mas na verdade é o contrário, a ferramenta do desenho te dá muita liberdade. Você pode transmitir muita subjetividade e ao mesmo tempo relatos mais factíveis, né? E é muito rica em detalhes também.

Você mantém as práticas jornalísticas tradicionais de apuração, levantamento de dados, pesquisa, só que tem o componente das suas impressões, das suas observações in loco. Às vezes numa reportagem, mesmo que tenha fotos, você não tem essa abrangência de: ‘Pô, captei uma postura do corpo da pessoa, ou um gesto assim’. Se você não filma, você não consegue captar isso. E tem a vantagem também de você poder ocultar a identidade quando a fonte não pode ou não quer ser identificada. Você pode alterá-la no desenho, você pode alterar o nome. Então, o relato continua sendo passado de forma humana, mas ele não prejudica a fonte.

Trechos de reportagem em HQ sobre a Parada Gay 2016 para a Revista Trip. Reportagem completa aqui

Eu acho que a internet mudou muito a forma como a gente lê e se concentra na leitura. Tem a questão das distrações né, como a gente não consegue fazer uma coisa só, está sempre conectado em vários dispositivos. Então eu acho que o quadrinho prende mesmo o leitor porque é um negócio diferente. Você não precisa pôr tanto texto porque o desenho já vai dizer muita coisa. É difícil você ver quadrinhos com textos enormes e tal. Pra internet é um formato muito interessante.

Eu, enquanto quadrinista, vejo que quando a pauta não é muito imagética, é mais difícil de transformar em uma HQ reportagem. Mas não é impossível. Por exemplo, já vi uma entrevista em quadrinhos. Nesse caso, eu estaria aqui conversando com você, só que a partir do que você diz eu iria desenhando coisas que, sei lá, vêm na minha cabeça, ou referências que pesquiso ou coisas que crio a partir do que você diz, entendeu? Então aí tem um trabalho de imaginar muito mais.

Agora, uma pauta que já tem imagens fortes facilita o trabalho. Por exemplo, eu cobri a Parada LGBT no ano passado em São Paulo. Então é um negócio que por si só já é imageticamente maravilhoso! É cor, é gente, é fantasia! Então eu não precisava inventar nada, aquilo ali já era um desenho a céu aberto. Era uma transcrição da realidade. Eu só reportei alguns personagens e tal. Mas, assim, em termos de imagem já era muito bonito.

Quando eu estou num momento menos tenso, tipo, quando o entrevistado não está com pressa, já faço uns sketchs (desenho rápido, feito de forma simplificada). Ou anoto mesmo a descrição da cena, tiro foto e tal. Mas eu fico captando detalhes. Um elemento que está fora da cena ou que a pessoa não citou diretamente pode ter a ver com o que ela está relatando. Então, no desenho é legal você brincar com isso.

Eu sofro mais pelas fontes, na verdade. Porque às vezes a pessoa fala muito, né? Ela se empolga e tal, aí eu no fim eu vou ter que explicar: ‘Olha, não vai caber tudo isso num quadrinho porque é uma linguagem sintética’. Eu explico, mas às vezes a pessoa acha ruim mesmo assim.

É um negócio que dá muuuito trabalho. Porque eu apuro, eu tiro foto, eu desenho, eu faço um roteiro tipo de cinema, porque tem que conter as falas e tal. Aí depois eu desenho, colorizo e finalizo.

A minha meta na vida é que a minha reportagem e o meu desenho possam ser uma ferramenta de transformação. Acho que a imagem, mais do que em todos os outros tempos, ela tem um papel muito forte e muito relevante atualmente. E a gente pode usar isso pra tratar de temas importantes socialmente e que contribuam para que a vida das pessoas, sei lá, seja melhor.

Acho que ser repórter e quadrinista é um diferencial. A minha pouca experiência profissional, de um período de um ano mais ou menos, foi boa, né? Eu sempre ponho no currículo como algo que me favorece, porque eu já tenho esse olhar não só para texto, mas também para imagem, para enquadramento, enfim… É o que eu quero fazer sempre! Não sei quando esse vai ser meu único trabalho, mas vamos caminhar pra isso.”

***

Carolina Ito é Jornalista formada pela Unesp de Bauru em 2015, cursa atualmente mestrado na USP em Ciência da Informação, no qual pesquisa a produção feminina de quadrinhos no Brasil. Trabalha como ilustradora e produz reportagens em HQ como freelancer. Mantém o blog Salsicha em Conserva.


publicado em 19 de Janeiro de 2017, 00:05
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Projeto Lupa

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