Filmes como Whiplash definiram valores que aspirei como homem durante a maior parte de minha vida. 

O filme narra a história de Andrew Neiman, um jovem baterista de 19 anos que aspira ser um dos grandes, como seu ídolo Buddy Rich. Ele estuda no Conservatório Shaffer, a melhor escola de música dos Estados Unidos. Não tem amigos, hesita em fazer contato olho a olho, e fora um flerte frustrado, parece se relacionar apenas com seu pai e com o mais temido professor da escola, Terence Fletcher.

Esse é Andrew

Fletcher passou dos cinquenta, é musculoso, alto e careca, suas veias saltam compondo uma figura quase fálica que se comunica aos urros, exultando agressividade em cada um de seus contatos com os alunos.

Os humilha por acreditar que seu dever é levá-los até onde eles mesmos jamais imaginaram poder chegar. 

No primeiro diálogo no qual troca mais de duas frases com o assustado Andrew, descobre que o menino foi abandonado pela mãe e o pai é um professor do ensino fundamental. Poucos minutos depois humilha Andrew dizendo que não à toa sua mãe o abandonou e ele será um fracassado na bateria como o pai é na carreira.

Fletcher abusa dos alunos, que se tratam como inimigos em busca de um assento entre os principais da sonhada Studio Band. 

Nas salas do conservatório não há camaradagem que resista. Os músicos mais jovens são tratados pelos mais experientes como imbecis e qualquer um pode perder seu posto pelo mais irrelevante deslize.  

Errar significa ser taxado de fraco, bicha, eunuco, patético. Ser bom não rende elogios, garante apenas a sobrevivência do dia.

Pois no Conservatório Shaffer só há espaço para os melhores. O fato de que eles se tornem obsessivos, ansiosos, paranóicos e dispostos a qualquer sacrifício pessoal ou ético em busca da glória é um colateral aceitável, que ninguém parece interessado em questionar muito. 

Esse é Fletcher

Separando os meninos dos homens

Relações cujo pano de fundo é a competitividade, sustentadas por um ambiente de esforço coletivo sob domínio de um líder abusivo, não raro comandando aprendizes que o odeiam e desejam secretamente ser como ele no futuro.

Essa é uma boa descrição para o Conservatório Shaffer. E para muitos outros locais notoriamente masculinos, como equipes esportivas profissionais e empresas em busca de crescimento exponencial.

A mensagem implítica é que os homens de verdade aguentam e os meninos não. 

Que bons professores nos fazem sofrer por generosidade, não pelo gigantismo do próprio ego. 

Que xingar o outro de gay é tão banal quanto chamá-lo de idiota, e tudo bem. 

Três equívocos cruéis que reforçam uma masculinidade limitada, homofóbica, medrosa e ansiosa, passada adiante para as próximas gerações por professores do medo e do abuso, muitas vezes louvados por sua capacidade de formar vencedores.

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Mas quantas sanidades valem um “vencedor”? Uma cultura de adoração aos campeões é povoada por massas de derrotados, frustrados.

O sacrifício de Andrew na bateria (mata suas relações e a si mesmo) pode ser interpretado como o caminho dos fortes, dos machos. É o que eu tentei seguir quando tinha 19 anos e ninguém estava do meu lado para dizer que as historinhas do cinema muitas vezes reproduzem estruturas ferradas da sociedade e das pessoas e de nossos pais.

Mas não precisa ser assim.

O talento não é um diamante bruto a ser lapidado pela violência.

Disciplina, método, diligência, paciência e persistência são virtudes a serem cultivadas sim, mas com lucidez. 

Professores e mestres devem nos iluminar, não nos violentar. Isso não significa ser bonzinho, é possível ser profundamente severo sem camadas desnecessárias que não fazem mais do que expor as próprias neuroses de quem ensina.

A maneira como interpretei filmes como Whiplash em minha adolescência me “ensinou” que homem de verdade sangra e desmaia e endurece e não é bicha e suporta e se humilha e persiste e chora e se anula e se violenta sem jamais desistir. Quanto maior a dor, maior a recompensa.

Aprendi a interpretar filmes e revistas e o mundo por esse filtro: o do homem-herói-destemido-corajoso que eu deveria ser um dia. 

Mesmo nunca tendo aulas oficiais de macheza na escola, as falas permeavam todo canto. Os almoços de família, as puxadas de canto de nossos pais e tios, a selva do pátio na escola, as palmas da mídia e do jornalismo, as conversas escutadas por aí, cada pequeno gesto em minha volta era parte de uma grande e ininterrupta aula sobre como ser homem. E tanto melhor que eu começasse aprendendo rápido, sem frescuras de ficar pedindo ajuda ou choramingando pelo caminho.

Ver Andrew perdido e se recusando a pedir ajuda me lembrou da primeira vez em que pedi socorro, de coração. Eu devia ter 27 ou 28 anos. Foi o tempo que gastei pra aceitar que homem pode chorar em público, assumir que errou, está perdido e precisa de auxílio.

Whiplash acerta ao retratar a agonia por trás das escolhas de quem abriu mão de tudo por um sonho.

A busca pelo reconhecimento não tem fim.

O medo de não ser reconhecido não tem fim.

Dois medos expostos como o preço a ser pago por quem deseja apostar a vida em troca de uma suposta genialidade. 

Em Whiplash, ser homem e a busca pelo triunfo são apresentados de modo entrelaçado e doente, numa história impossível de se largar. O final revirador de estômagos é brilhante. Seria glorioso ou trágico?

Aos 19 anos, diria glorioso. Hoje, aos 30, enxergo o tamanho da tragédia.

Guilherme Nascimento Valadares

Fundador do PDH e diretor de pesquisa no Instituo PDH.