Pós-doutora em psicologia clínica, professora, psicóloga e coordenadora do grupo de pesquisa em saúde mental e gênero do CNPq. Valeska Zanello tem esse currículo acadêmico de peso, mas fala de forma acessível, sempre utilizando exemplos e metáforas para explicar conceitos.
Com 24 anos de experiência em clínica e pesquisa em psicologia, Valeska percebeu que não era possível falar de saúde mental sem falar de gênero.
“Os homens aprendem a amar muitas coisas. As mulheres aprendem a amar, sobretudo, os homens” – Valeska Zanello
Esta é uma das frases mais impactantes do livro da pensadora que refelto sobre como “enquanto ensinamos meninos a se aventurar, a gostar de esportes, a desenvolver interesses e habilidades, ensinamos meninas que elas têm que ser bonitas, boazinhas e comportadas. Estamos preparando meninos para a vida e meninas para o amor.”
A casa dos homens
Das metáforas que Valeska utiliza em seus trabalhos para explicar sexismo, a “A casa dos homens”, do pensador francês Daniel Welzer-Lang, é a principal delas.
A casa dos homens nada mais é do que esse espaço em que objetificar mulheres é a regra e a broderagem é o modo de ação padrão. A misoginia é a argamassa que sustenta essa casa.
Na prática o que se observa é que a maioria dos homens, para continuar sendo parte do grupo, para continuar dentro dessa “casa”, agem da maneira que o grupo espera.
Podemos citar aqui alguns exemplos:
Quando um amigo conta para o outro que não assumiu o filho e esse outro, concordando ou não com a atitude, não fala nada. No fundo, é porque ele acha que o parceiro é um cara legal e assim firma uma cumplicidade.
Ou então, quando se nota que outra amigo está stalkeando, perseguindo uma mulher que o rejeitou, e aqueles que olham de fora também não falam nada porque não querem se meter.
Também acontece quando um companheiro que é pai, com guarda compartilhada, deixa com a criança com a avó no final de semana para curtir com os amigos. Estes amigos também não falam nada e alguns até incentivam a ausência paterna justificada pelo lazer individual.
Dentre tantas outras coisas, assim que funciona a casa dos homens. A cumplicidade entre os brothers vai perpetuando o sexismo.
Como bem lembra Valeska, as mulheres não têm acesso à casa dos homens, então romper com esse silenciamento é tarefa de vocês, dos homens que estão dentro dessa “casa”.
“Só quem consegue implodir, ou transformar a casa é quem está dentro dela.” – Valeska Zanello
Prateleira do amor
Para explicar como funciona o amor em nossa sociedade, Valeska criou uma metáfora genial chamada “prateleira do amor”.
Imagine aquelas gôndolas de supermercado: na prateleira na altura dos olhos, mais visível, estão as mulheres brancas, loiras magras e jovens.
Naquelas prateleiras lá embaixo, que ninguém dá muita bola, estão as mulheres que estão longe desse padrão, mulheres racializadas, com filhos, com deficiência, com corpos gordos ou mulheres trans.
Valeska explica que o amor é construído socialmente como um fator identitário para as mulheres, mas não para os homens.
Para as mulheres, existe uma pressão social maior para estar em um relacionamento. Se uma mulher está solteira, é porque tem algum motivo: ou ela é difícil demais, ou não é bonita o suficiente.
Tem que ter algo de errado com aquela mulher para ela continuar na “prateleira do amor”.
Se um relacionamento acaba, para as mulheres, entende-se como um fracasso pessoal. Não que homens não sofram por amor, mas a vida deles segue mais rápido porque nunca parou. A dedicação que o homem dá para o relacionamento, em geral, é infinitamente menor do que a que as mulheres dão.
Quais os problemas da prateleira do amor?
Para começar, ela é racista:
Ela também é etarista e capacitista: mulher velha ou mulher com deficiência não são desejáveis, mas viram opção na falta daquelas consideradas bonitas.
Além disso, a prateleira é boa só para os homens. Sabe aquele homem horroroso chamando uma mulher de gorda?
[O personagem George Costanza, da série Seinfeld, é um prato cheio para esta discussão. Sendo baixo, gordo, careca e desempregado, Costanza tem uma lista de cobranças estéticas para as mulheres com quem pretende sair]
Então. Não é só que falta espelho em casa, é que homens geralmente se sentem no direito de avaliar mulheres.
“Os homens escolhem mulheres esperando que elas não mudem: que a carne dela continue valendo muito na prateleira do amor. Não tem a ver com a mulher, tem a ver com o troféu que ele vai carregar perante os outros homens” – Valeska Zanello
Masculinidade: eficácia no trabalho e no sexo
“A construção da masculinidade no nosso país se dá pelo negativo. Ser homem significa não ser mulher” – Valeska Zanello
Segundo Valeska, tornar-se homem em nossa sociedade significa ter que ser eficaz em duas áreas: trabalho e sexualidade.
Um “verdadeiro homem” é um provedor e um comedor ativo. O benefício para os homens dessa construção social vai além de ter alguém fazendo as tarefas de cuidado e de ter parceira sexual.
Valeska cita em seu livro pesquisas que demonstram que estar em um relacionamento heterosexual é um fator de proteção psíquica para homens, e um fator de risco para mulheres.
As mulheres são maioria em tratamentos para ansiedade e depressão. É claro que existem outros fatores que intereferem nisso. Homens vão menos ao médico, são menos diagnosticados, no entanto tem maiores taxas de suicídios que resultaram em morte.
O que importa é que, no geral, ter alguém que cozinha, limpa, lava, organiza a sua vida prática, cuida mais dos seus filhos que você, elimina fatores estressantes gerando uma rede de conforto para os homens e de sobrecarga para mulheres.
Enquanto as mulheres estão investindo no amor, os homens estão investindo em seus próprios interesses.
O que Valeska propõe para começarmos a desmontar essa sociedade sexista?
Começando pelo começo:
- Falar, estudar e refletir sobre as coisas que se aprende sobre ser homem.
- Reconhecer e nomear as suas emoções, o que você está sentindo.
- Questionar como se aprende a construir um relacionamento sexoafetivo: não precisa ser com ciúme, possessão e poder.
Não deixe de escutar as mulheres. Quando alguma mulher falar que você foi machista, escute, se abra para admitir essa possibilidade. Todos somos machistas e todos fomos criados nessa sociedade com esses valores.
A boa notícia é que valores mudam, e nós também. Assim como houve um processo de construção do que é ser homem e o que é ser mulher, pode haver um processo de reconstrução.
Gênero e raça: questões de economia
Para finalizar, Valeska nos ensina que gênero e raça não são questões identitárias e, sim, economia pura.
No Brasil, não dá para se falar em políticas públicas para diminuição das desigualdades sem olhar para gênero e raça. No Brasil, 38% das mulheres negras no Brasil estão abaixo da linha da pobreza, enquanto entre mulheres brancas, esse índice cai para 19%.
Quando olhamos para taxas de desemprego, 16,4% das mulheres estão desempregadas, enquanto 11,9% dos homens estão na mesma condição (dados do Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da FEA-USP).
Os estudos sobre saúde mental e gênero de Valeska Zanello são essenciais para a compreensão das construções em torno do que é ser homem e do que é ser mulher na nossa sociedade.
Valeska também nos recorda a importância de não invisibilizar o trabalho de mulheres e dar sempre os créditos ao utilizar conceitos e ideias de outras pessoas.
O livro de Valeska Zanello, “Saúde mental, gênero e dispositivos”, pode ser encontrado nas principais livrarias do Brasil e seu trabalho é divulgado no Instagram e YouTube da pensadora.
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