Ao narrar esse conto, não tenho intenção alguma de fazer suspense ou surpreender o leitor, mas apenas de iluminá-lo quanto às circunstâncias que me fizeram sair das trevas do ateísmo e abraçar a fé em Deus.
Coerente a esse princípio, faço questão de adiantar que Anália morre.
II
Eu tinha dezenove anos quando tomei conhecimento da previsão. Na época, eu gostava de pedalar no lago, e como os pedalinhos do Iate Clube de Capivara só podiam ser alugados até as seis horas, eu comprara o meu próprio. Foi nele, pedalando em uma noite de verão, que Anália me contou que ia morrer.
Ela estava deprimida o fim-de-semana inteiro e eu, ansioso para arrancar-lhe os problemas, resolvi sair em um passeio noturno até o nosso ponto favorito do lago.
Era um braço d’água estreito, de pouco mais de um metro de largura, que separava a margem de uma ilhazinha. Gostávamos de lá por ser a única parte do lago onde não nos sentíamos devassados pelas luzes a nossa volta, pois a ilha nos escondia.
Uma árvore caída servia de ponte natural entre a margem e a ilha, impedindo a passagem do pedalinho; quando fôssemos sair, teria que ser de ré. Náli pulou em terra, foi até a árvore e sentou-se no centro dela. Sabíamos que aguentaria o peso pois era onde sempre tínhamos nossas conversas particulares.
Ela descalçou os sapatos, jogou-os para dentro do pedalinho e deixou os pés caírem n’água. Então, disse:
— Eu vou morrer.
III
— Era por isso que você estava deprimida?! — Perguntei.
— Eu vou morrer. — Ela repetiu.
— Eu também vou morrer, Náli. — Consolei — Todo mundo.
— É, mas eu vou morrer em breve.
De algum modo que eu ainda não tinha entendido, ela estava falando sério:
— De onde você tirou essa idéia?
— Mamãe.
— Ela disse que você ia morrer, assim, por agora, em breve?! — Perguntei, sem querer acreditar.
— Disse.
Que tipo de pessoa diria isso para a filha?!
— Anália, explica essa história direito, por favor.
— Você sabe que mamãe é toda mística, não é? — Começou ela — Bem, uns quatro anos atrás, quando eu tinha uns quinze, ela deu uma olhada na minha mão e desmaiou. Ela nunca me disse o que era, só que ficou muito abalada. Depois, eu esqueci o assunto.
— Não vale a pena se preocupar com besteiras. — Ajudei.
— Mamãe se preocupa. — Afirmou Náli — Essa semana ela veio falar comigo. Disse que na época tinha ficado assustada, mas como eu ainda estava em fase de crescimento, as linhas da minha mão poderiam mudar. Agora, que eu parei de crescer e as linhas continuaram iguais, ela achou que eu devia saber.
— Saber o quê?! — Perguntei, irritado com a resposta que eu podia antecipar.
— Que eu iria viver muito pouco.
— Ela te falou isso?! A sua mãe?!
— Minha linha da vida é pequena e bifurcada. Quer dizer vida curta. Não há como negar.
— Sempre há como negar. — Respondeu o ateu ortodoxo dentro de mim — Deixa eu ver sua mão.
Náli me mostrou a mão e a tal linha, pequena e bifurcada. Mas se era a linha da vida ou qualquer outra, eu não sabia.
— Ridículo. — Declarei, enfim.
— Você acha mesmo que não vou viver pouco? — Perguntou ela, implorando para que eu a convencesse da imbecilidade daquilo.
— Eu nunca acho nada, Náli, você me conhece. As suas chances de morrer amanhã são iguais às minhas, e às de qualquer um. O que eu duvido é que a sua mãe fosse te contar um absurdo desses, acreditando ela ou não.
— O importante é que ela foi sincera comigo. — Contra-argumentou Náli, convicta — Eu teria feito o mesmo.
— Não teria não! Você não seria nem tão burra nem tão cretina!
E antes que pudesse protestar contra os insultos a sua mãe, eu continuei, com a lógica implacável que só os ateus têm:
— Pensa comigo, Náli. Eu tenho um filho, certo?, e eu sei, com certeza absoluta, que ele vai morrer muito jovem. Se não há possibilidade de mudar o destino, o pior que eu poderia fazer seria contar pra ele.
— Mentir, então?! — Ela reclamou, insuflada de suas éticas inúteis.
— Não é mentira, — Corrigi — é omissão piedosa. Se não há dúvida de que meu filho vai morrer cedo, o que eu quero é que ele viva os últimos anos de sua vida despreocupado, sem o estigma de uma morte próxima para assombrar seus dias. Contar é pura maldade.
— E se eu não tenho certeza absoluta, aí sim é que eu não devo contar, para não deixá-lo preocupado com uma desgraça que pode nem vir a acontecer! Não passa pela minha cabeça por que a sua mãe teria lhe dito uma barbaridade dessas!
— Ai, que fofinho! — Ela disse, chutando água em minha cara — Ele está apreensivo por mim!
— Você sabe que eu não acredito em nada, Náli. — Falei, resistindo à tentação de jogar água nela — Estou preocupado com a sua saúde mental.
Ela esticou a perna, tentando me alcançar com pés, e eu cheguei o pedalinho para a frente.
— Entenda a minha mãe, por favor. Ela acredita. É importante para ela. — Acariciou meu ombro com seus pés molhados e um filete d’água fria escorreu pelo meu braço — Contar ou não contar não muda nada.
Coloquei a mão sobre seu pé e segurei-o com força:
— Muda tudo, Náli. E a sua cabeça?!
Sorriu:
— Ela vai bem, obrigada.
IV
Madame Izolita morava em um quarto e sala em Copacabana. A plaquinha na porta dizia “entre sem bater” e obedeci, impressionado — deixar a porta aberta em um prédio daqueles demonstrava no mínimo coragem.
O que me chamou a atenção no apartamento foi a quantidade de badulaques espalhados por todos os lados. Máscaras rituais africanas caíam do teto, suspensas por fios de náilon, como móbiles. Havia um pentagrama pintado na parede, e uma mão com um olho dentro, do outro lado da sala. Em um canto, uma pirâmide de tubos de alumínio repousava inerte, grande o bastante para que se pudesse meditar por horas debaixo dela.
Parecia um museu esotérico: ninguém poderia viver ou se organizar em um ambiente tão atulhado de quinquilharias.
Mas Madame Izolita se movia com surpreendente desenvoltura por entre o lixo. Ela não era nada do que eu esperaria de uma quiromante. Tinha quase trinta anos, uma beleza exótica e usava um roupão de seda que lhe escondia todo o corpo, menos os pés descalços. Os cabelos eram pretos, os olhos verdes e não faltava nem uma pintinha sobre os lábios.
— Boa-tarde. — Ela disse, juntando as mãos em um gesto macarrônicamente místico que fez chacoalhar as bijuterias que trazia nos pulsos. Madame Izolita era toda teatro.
Respondi a saudação e ela me indicou uma cadeira para que eu me sentasse. Então, antes de ser forçado a assistir a outras pantomimas esotéricas, perguntei à queima-roupa:
— Se descobrisse que uma pessoa vai morrer em breve, contaria a ela?
Madame Izolita estava em uma situação difícil. Tinha 50% de chances de perder o cliente. Quem seria eu? Qual era a resposta que eu queria ouvir? Estaria eu à procura do conforto de uma previsão agradável ou atrás da suprema perversidade de que só a verdade é capaz?
Ela chegou à conclusão certa:
— O assunto envolve considerações éticas delicadas, mas eu não contaria. Se eu pudesse ver as linhas da sua mão…
— Não foi para falar das minhas linhas que vim aqui.
E contei-lhe toda a história de Anália e sua estúpida mãe.
— Quando voltei ao Rio, fui a uma biblioteca e chequei as conclusões de dona Gladir em um livro de quiromancia. A linha que Anália me mostrara era a da vida mesmo, e o fato d’ela ser curta e bifurcada, segundo o livro, — Fiz questão de frisar — significava vida curta
— Pobre moça… — Disse Madame Izolita, e eu não soube se porque Anália teria vida curta, ou porque sua mãe era uma idiota. Como eu não acreditava em nada, mesmo, cortei-a:
— Mas nós vamos ajudá-la.
V
Uma semana depois, convencida por uma amiga em comum que teoricamente não sabia da história, Anália foi levada para uma sessão com Madame Izolita.
A quiromante disse-lhe que teria vida longa e velhice feliz, sempre cercada de amigos, filhos e netos.
Anália desconfiou:
— Mas essa aqui, curta e bifurcada, não é a linha da vida?
— Não, — Mentiu Madame Izolita, — essa é a linha do trabalho. A bifurcação significa que você vai se destacar em duas carreiras, e o tamanho, que sua vida profissional será atribulada e difícil.
Anália acreditou. E a linha do trabalho nem existe. Pelo menos uma vez, os talentos cênicos de Madame Izolita foram usados em prol de uma boa causa.
Por sorte, Náli mencionou a previsão da mãe, o que deu a quiromante a deixa que tínhamos combinado para encerrar o assunto:
— Não culpe sua mãe. A confusão que ela fez é comum entre amadores. — E mostrou uma outra linha em sua mão, para substanciar o argumento — Vê? É melhor que você não comente nada com ela, para não magoá-la…
Os resultados práticos de nosso teatro foram excelentes. No dia seguinte, Anália estava relaxada pela primeira vez em semanas.
Havia apenas um senão.
No hall do elevador, Madame Izolita me fizera uma a última pergunta:
— E se sua amiga for morrer cedo?
— Quem acha que vai morrer cedo, — Falei, com a convicção que só os ateus possuem — morre cedo. O destino não está escrito.
Estava.
VI
Dois meses depois, Anália tropeçou no tapete do banheiro enquanto saía do box e bateu com a cabeça na privada. Teve morte instantânea.
Durante o enterro, me recusei a falar com dona Gladir. Meu consolo, diante da suprema idiotice daquela morte, foi que eu havia lhe proporcionado dois últimos meses tranquilos.
Assim se passou a tragédia de Anália, que revolveu minhas crenças e ceticismos. As peças que a vida nos prega são tão maliciosamente boladas, tão irônicas e cruéis que é impossível que sejam apenas obras de um omisso acaso.
Não passei a acreditar em quiromancia, mas sim em Deus.
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Todas as ilustrações que desse conto são do pintor holandês Hieronymus Bosch (1450-1516).
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