O Profº Drº Adriano Beiras é uma referência nacional em pesquisa e desenvolvimento de grupos reflexivos com homens autores de violência.

Essa é a segunda entrevista da nossa série Referências PdH. Tivemos uma baita conversa-entrevista-aula com ele e reunimos aqui conhecimentos valiosos e essenciais para quem realmente quer entender o tema.

Sonhamos que o nosso portal possa crescer como um "ponto de referência", um farol que ilumina várias rotas de conhecimentos que vão muito além do nosso trabalho. Queremos falar sobre masculinidades criando pontes entre conhecimentos: apresentando trabalhos dos que vieram antes da gente, pesquisas científicas, saberes comunitários e tudo isso de um jeito acessível e compreensível para qualquer um que se interesse.

[Se quiser, aqui você acompanha a primeira dessas entrevistas, com Benedito Medrado] 

A referência de hoje é: Adriano Beiras

Adriano conheceu o Núcleo Margens (Modos de Vida, Família e Relações de Gênero) ainda na graduação de psicologia pela UFSC e foi quando começou a se interessar pelos estudos das masculinidades.

No mestrado, ele se dedicou a estudar paternidades e masculinidades entre gerações e, paralelamente, se envolveu no mapeamento de iniciativas pioneiras que de atendimento a homens autores de violência pela América Latina.

"Com essa pesquisa eu viajei pro México, Nicarágua, Honduras, Argentina e Rio de Janeiro. Em especial uma iniciativa do México me marcou muito, com o Roberto Garda, que era da ONG CORIAC e que influenciava trabalhos diversos na região sobre grupos para autores de violência contra mulheres. "

Daí pra frente, Beiras passa a estudar o eixo das masculinidades e violência. Sua tese de doutorado na Espanha mergulha no tema e paralelamente publica como coorganizador do livro Atendimento a homens autores de violência contra mulheres: experiências latino americanas, em 2010.

"E interessante que foi na época da Lei Maria da Penha e, com a lei, (ainda que timidamente) foi colocada a primeira referência legislativa com homens autores de violência sobre possibilidade de encaminhamento para grupos reflexivos com homens autores de violência."

O que são Grupos Reflexivos para Homens autores de violência?

Entende-se que os feminicídios acontecem após uma escalada nos níveis de violência de uma relação que, muitas vezes, começa com uma violência de menor intensidade.

Os grupos reflexivos são uma estratégia jurídica e psicossocial para interromper este ciclo de violência trazendo responsabilização e reflexão para  homens, transformação das relações de gênero e evitando reincidências ou represálias a mulher que denunciou.

A partir deste ano uma mudança na Lei Maria da Penha tornou obrigatório que, quando determinado por juiz, o réu frequente grupos ou compareça a atendimentos psicoeducativos. 

Por que falamos "homens autores de violência" e não "agressor"?

Com a palavra, o Professor Adriano Beiras:

"A importância é desvincular a ideia de violência da identidade masculina.

Falar homem autor de violência (HAV) é dizer que se cometeu um ato. Este ato não está preso a sua identidade e pode ser separado dela. 

As masculinidades acabam se constituindo a partir de alguns vetores importantes que são construídos socialmente: vetores como prover um lar, trabalho, paternidade e, também, a violência.

Em nossa sociedade, há uma construção social que sugere que 'quanto mais violência eu exerço, mais masculino eu pareço socialmente.' Isso acaba por vincular a identidade masculina à violência, mas que outras expressões de masculinidade podemos ter socialmente?

Pensar em Homens Autores de Violência é trabalhar na responsabilização de seus atos e nas possibilidades de encontrar outras formas de solucionar conflitos que não seja de forma violenta."

E o que seriam homens em situação de violência?

"Um homem em situação de violência, muitas vezes ele é autor, ele pode ser testemunha e também ele pode ser vítima, ou as três posições juntas, embora haja uma frequência muito grande socialmente do homem ser autor de violência, por questões culturais ou por múltiplos outros fatores."

Em situações em que existe uma violência mútua, e que o homem justifique seu ato violento pelo ato que veio da outra pessoa, Beiras explica qual costuma ser a abordagem indicada:

"O importante é colocar que nós, como homens, temos domínios sobre as nossas ações. Não justifica que, porque alguém exerceu violência comigo, eu retorne com violência. Violência gera violência, gentileza gera gentileza.

Nosso trabalho é desvincular a violência como forma de resolução de conflitos relacionais. A gente precisa primeiro mudar os nossos atos violentos e ter estratégias para sair de situações em que se pode, potencialmente, acabar exercendo violência.

Se tem uma mulher exercendo violência em você, há um exercício sobre como sair da cena sem que você use a violência para se defender. Há uma diferença entre bater e se defender. Quando a gente trabalha com defesa pessoal, a gente inibe a ação do outro e não devolve outra ação em cima dele."

Grupos Online têm funcionado?

Photo by Gabriel Benois on Unsplash

Com a pandemia e o isolamento, no primeiro semestre de 2020 aumentaram os casos de violência doméstica contra meninas e mulheres. Novas respostas e formas de lidar com o problema tiveram de ser elaboradas e, os grupos reflexivos, quando possível tornaram-se virtuais.

"Tem sido muito desafiador porque a pandemia acaba escancarando as desigualdades sociais.

A gente trabalha com públicos de camadas sociais muito diversas, temos tidos dificuldades de integrar muitos desses homens para o uso das tecnologias e de ter um lugar privado para que eles possam participar do grupo.

É preciso fazer alguma coisa. Quando não é possível o trabalho grupal online a gente faz individual ou faz um direcionamento para a rede pública de assistência social ou de saúde. 

Fizemos todo um trabalho e um desenvolvimento adaptando a nossa metodologia (que é a do Instituto Noos) pro sistema online, mantendo um caráter reflexivo, crítico, relacional e ético [que será publicado em dezembro].

Alguns homens acabam se sentindo mais à vontade de se abrir de colocar suas questões no online, por outro lado também dificulta a continuidade em alguns casos."

[Para homens ou pessoas que trabalham com homens que têm antecedentes de violência doméstica, este artigo contém algumas diretrizes específicas para lidar com este contexto durante a pandemia.]

Entendendo a complexidade das relações e porque a violência surge como forma de  resolução de conflitos

Um senso comum é pensar no homem que cometeu a violência como um monstro, um criminoso que não se parece com um homem que tenha família, amores e uma carreira.

Essa visão cria um estigma  que, muitas vezes, não nos permite ver que um amigo seu ou alguém da sua família também podem ser homens autores de violência, porque recorrem a esta como forma de resolução de conflito.

Nesta conversa o Professor Adriano destaca a complexidade de entender as relações, os aspectos específicos de cada caso e deixa algumas reflexões e pontos importantes a se considerar 

"Muitas vezes se fala como se existisse uma relação violenta só lá fora, como se nós não nos relacionássemos com atos violentos. Usa-se da violência quando sente-se que se perdeu autoridade ou que a gente não consegue conversar de uma forma democrática. 

Quando você não consegue lidar com a ira, você acaba exercendo violência. Isso acontece numa família, com homens e mulheres, com filhos. Questões culturais de gênero, patriarcado e relações de poder, dominação e performance normativas de gênero também entram neste processo.

Acaba sendo uma forma muito imatura de relacionamento. Faz parte das especificidades humanas, mas a gente tem que buscar o amadurecimento das relações para não usar violência."

Como superar a violência como forma de resolução de conflito?

Curso sobre facilitação de grupos reflexivos de gênero realizado para Polícia Civil do Espírito Santo.

"É preciso entender cada sujeito e como que ele resolve conflitos, que padrões relacionais se tem, como se aprendeu, na história de vida, a resolver essas questões e expressar emoções.

Quais as emoções que são socialmente permitidas para os homens, quais as emoções que são permitidas para as mulheres e porquê? Poderia ser diferente? O que isso tem  a ver com diferentes possibilidades de expressões de masculinidade?

No caso dos homens as expressões que são permitidas na nossa sociedade ocidental são a raiva e a ira, agora expressar vulnerabilidade, expressar dor, expressar amor? Não. Você supostamente 'perde masculinidade' quando você faz isso. O que acontece de questionamos esta ordem e esta construção social e cultural?

Como, então, que eu posso ampliar meu escopo de expressões emocionais e quais são os ganhos, benefícios, que eu tenho quando eu amplio, quando eu tiro essa dicotomia de gênero?

O que acontece é que nos grupos reflexivos de homens, muitos acabam conseguindo expressar melhor suas emoções, ampliando essas questões, entrando em contato com consciência e autenticidade com as nossas próprias emoções para além do gênero." 

É possível participar voluntariamente de um grupo para homens autores de violência?

Muitos dos grupos para homens autores de violência funcionam em convênio com o sistema judicial, amparando as sentenças aplicadas a Lei Maria da Penha. 

Supondo que um homem se vê reagindo com atitudes violentas, mesmo sem estar respondendo a nenhuma denúncia, ele pode procurar um grupo voluntariamente?

"Ele pode procurar voluntariamente. Na realidade os grupos não são feitos só no judiciários, ele não feitos em CREAS (Centros de Referência de Assistência Social), a partir de centros comunitários em alguns estados, a partir do Ministério Público, Polícia Civil ou em ONGs. Em alguns destes locais é possível você procurar e participar destes grupos."

Onde encontro um grupo desse?

Legenda

No nosso livro  "Como conversar com homens sobre violências contra as mulheres" tem um mapeamento de trabalhos nacionais que foi feito, inclusive, em parceria com o professor Adriano Beiras. [Clique aqui e vá para a página 40].

Grupos reflexivos para homens autores de violência 

Grupos de homens sobre masculinidades

"O trabalho reflexivo com homens autores de violência, é diferente dos grupo de masculinidades e autoconhecimento.

Curso de Metodologia de Grupos reflexivos de gênero realizado na sede do Instituto Noos

Quem procura o grupo de discussão de masculinidades, é o homem que já está buscando uma desconstrução das masculinidades hegemônicas, tradicionais ou desse vínculo  com a violência. Ele está percebendo que as relações não estão conseguindo se desenvolver bem por dificuldades emocionais, que as violências estão dando problema, entre outras coisas.

Ele procura esse grupo porque os espaços de sociabilidade masculina tradicionais — futebol, cerveja, grupo de zap — não permitem isso.

Quando a gente trabalha por grupos de homens autores de violência, estamos falando de homens não sensibilizados.

São homens que estão entendendo que a masculinidade que eles estão exercendo socialmente está correta e muitas vezes eles perguntam por quê eles estão sendo criminalizado por isso sendo que "eles não fizeram nada".

Então nós estamos trabalhando com homens não sensibilizados e isso tem um grau de dificuldades maior e tem também algumas especificidades importantes pra gente trabalhar."

Porque dizemos que os grupos são reflexivos? 

"A ideia no âmbito jurídicos é de reabilitação, de formar grupos educativos ou psicoeducativos.

Mas, no Brasil, chamamos de grupos reflexivos baseados especialmente no trabalho do Instituto Noos. A partir de um aspecto teórico, que vem das terapias de família contemporâneas (terapias familiares sistêmicas pós-modernas e construcionistas), trabalha-se com a ideia de processos reflexivos, de produzir reflexão grupalmente, de potencializar novos sentidos e significados sobre temas de gênero e masculinidades grupalmente.""

[Aqui vocês encontra mais sobre a metodologia de grupos reflexivos de gênero do Instituto Noos]

Leia também  Está se sentindo um impostor? Você não está só

Diferenças do trabalho com HAV no Brasil e na Europa

Durante o mestrado, como pesquisador do Grupo Margens, Adriano Beiras percorreu a América Latina mapeando iniciativas, em seu doutorado ele foi para Universidade Autônoma de Barcelona, em 2008, onde entrou em contato com as pesquisas sobre trabalhos com Homens autores de violência na Europa.

[Aqui você encontra o mapeamento de iniciativas na Europa]

Perguntamos a ele quais eram as principais diferenças notadas entre as iniciativas do Norte e do Sul do Mundo.

"Minha crítica ao norte é que muitas vezes os trabalhos para grupos de homens autores de violência na Europa era muito voltado para estereótipos masculinos e femininos, divisões de tarefas domésticas e um conceito de gênero muito apolítico.

Aqui no Sul nós temos muito um olhar social crítico e analítico a estas questões e pensarmos as masculinidades como uma categoria analítica do social. Nós temos mais questões voltadas a justiça social, como explica a autora R. Connell, referência dos estudos de masculinidades.  Precisamos olhar mais para aquilo que sai da norma ocidental do Norte, para aquilo que entra como aspectos culturais específicos do Sul.

Uma coisa que eu queria enfatizar é pensar masculinidade como categoria de análise social e histórica, como uma maneira de ler questões e problemáticas sociais, vinculada às teorias feministas,  assim, como gênero é pensando dessa forma a partir de Joan Scott."

Contribuições dos estudos internacionais

"A partir da experiência que eu tive na Europa de acompanhar alguns mapeamentos lá e a produção de critérios e de recomendações mínimas para a União Europeia, eu voltei pro Brasil muito estimulado a pensar como produzir este tipo de trabalho aqui."

E produziu. Na última década, Beiras tem feito trabalhos muito importantes costurando pesquisas acadêmicas, projetos de extensão e trabalhos em convênio com instituições jurídicas, de segurança pública (Polícia Civil), de intervenções para delegacias da mulheres, mapeamentos e consultorias.

Que avanços precisamos fazer daqui pra frente?

Adriano destaca dois pontos essenciais para que os trabalhos de reduzir violências contra meninas e mulheres através dos grupos reflexivos se expandam:  

1.Reconhecimento da importância dos grupos de homens autores de violência como um espaço ativo, transformador e reflexivo e que demanda um tempo adequado (indo além de é um conjunto de palestras educativas).

2.Desenvolvimento de Política Pública nacional específica  para este campo que garanta e profissionalize estas ações, estabelecendo critérios mínimos e recomendações para a produção destas iniciativas.

O que está sendo desenvolvido para isso?

Hoje o Profº Drº Adriano Beiras também desenvolve uma pesquisa para mapear nacionalmente todas as iniciativas que trabalham com homens autores de violência no Brasil,  em parceria com o Tribunal de Justiça de Santa Catarina.

O objetivo é atualizar os mapeamentos já feitos, desenvolver critérios e diretrizes nacionais orientativos para políticias públicas nesta temática, assim como pensar critérios e diretrizes estaduais que contemplem especificidades e necessidades regionais

Aqui você encontra a lista com os 312 trabalho existentes pelo Brasil.

Os principais desafios para avançar:

"O que eu tenho notado desde que eu tenho trabalhado com este tema, é que muito destes grupos começam e terminam em um ou dois anos. Os motivos são a falta de incentivo por ser, muitas vezes, um trabalho voluntário, que depende da boa vontade de um operador do Direito, um professor universitário, de um psicólogo ou assistente social.

Falta estabilidade dessas políticas que são muito necessárias. Muitos dos juízes não sabem para onde enviar homens autores de violência pela falta de trabalhos e de locais para isso.

Depois de 10 anos da Lei Maria da Penha, a gente lançou um livro no Instituto Noos, com um mapeamento não exaustivo. Percebe-se que houve um aumento de ações no âmbito público depois da Lei Maria da Penha e muitos dos últimos grupos que a gente observava surgiram nos três últimos anos.

Sabendo dessa necessidade de ação com o Tribunal de Justiça em parceria com a UFSC em convênio com o departamento de psicologia e o Núcleo Margens, nós decidimos fazer juntos um mapeamento exaustivo nacional pra, então, definir critérios e recomendações mínimas no trabalho com homens autores de violência."

[Aqui você confere o mapeamento das iniciativas]

Enquanto não se tem uma política nacional, se encontram problemas:

"Têm trabalhos que são inadequados, não é a maioria, mas tem trabalhos que acabam sendo pontuais, reunindo muitos homens fazendo isso em um tom exclusivamente educativo de palestras e de aulas, ou sem um caráter analítico de gênero, masculinidades e empatia relacional com as mulheres.

Internacionalmente, o trabalho é feito em torno de 25 sessões.  No Brasil a média deve ser entre 10 e 12 sessões. Mas tem muitas intervenções que acabam em 2 ou 3 sessões, o que é insuficiente.

A nossa proposta e a literatura internacional recomenda grupos de reflexão, no máximo 20 homens em que eles tenham uma participação ativa e reflexiva e coloquem os seus sentidos, significados, crenças, valores, sobre os temas, que podem ser coordenados por dois profissionais."

Quer estudar sobre o tema?

Curso sobre facilitação de grupos reflexivos de gênero realizado para Polícia Civil do Espírito Santo.

Sobre o Núcleo Margens (Modos de Vida, Família e Relações de Gênero):

É muito importante que a gente conheça quais são e onde estão estes centros de desenvolvimento de estudos sobre masculinidades. Assim, a gente sempre sabe a onde recorrer em busca de material de confiança, ou até mesmo quando houver interesse em desenvolver novas pesquisas.

Adriano, que hoje é coordenador do Núcleo Margens,  professor efetivo do departamento e da Programa de Pós- graduação em Psicologia na UFSC,   fala um pouco mais sobre o centro de estudos: 

"Núcleo Margens ele tem 25 anos (completa em 2021).  Eu conheci quando estava na graduação de Psicologia, e na época ela era coordenado pela Professora Doutora Maria Juracy  Filgueiras Toneli. Ele é pioneiro nos trabalhos de estudos de gênero e masculinidades na psicologia.

Os trabalhos, inicialmente, eram sobre paternidade, direitos sexuais e reprodutivos, depois vieram trabalhos sobre violências e posteriormente o trabalho sobre violências e transexualidades, com diversidades e homossexualidades.

Quando eu voltei pro Margens [depois de Doutor] eu reativei a linha de pesquisa com trabalhos de masculinidades, violência e também de saúde do homem.

Passei a coordenar pesquisas nesse âmbitos e a orientar trabalhos sobre feminicídio, violência contra mulheres, trabalhos psicossociais com homens autores de violências,  conjugalidades, violência contra parceiros íntimos do mesmo sexo,  trabalhos relacionados a masculinidades, saúde do homem, psicologia social jurídica,  homens trans ou transmasculinidades, entre outros temas ligado a gênero, violências, direito e masculinidades."

Para quem quer trabalhar com mediação/coordenação de grupos para homens autores de violência

Aqui vão artigos acadêmicos recomendados pelo Adriano:

Recomendações de Livros:

 

Redação PdH

Mantemos nosso radar ligado para trazer a você notícias, conversas e ponderações que valham o seu tempo. Para mergulhar na toca do coelho e conhecer a <a>visão editorial do PdH