Vou contar pro seu marido.
Ela acorda antes dele. Na mesinha, uma cigarrilha em um cinzeiro de mármore. Pega a cigarrilha, põe nos lábios. Fica olhando pra ele. Dormia de boca aberta. Roncava de leve. Manchinha de baba no travesseiro. Cabelo rareando.
Você tem que contar a verdade.
Coloca a cigarrilha de novo no cinzeiro. Ela se levanta, escova os dentes, volta para a cama. Decide acordá-lo com um selinho. Ele desperta devagar. Tinham combinado ir à praia.
Pode me contar, mãe, eu sei que você tem outro.
Ele faz questão de preparar o café da manhã. Tem orgulho adolescente de seus ovos mexidos. Cigarrilha de novo nos lábios, ela finge ler jornal. Ele espreme o suco de laranja com as próprias mãos. Movimentos fortes e circulares com o punho. Másculo. Ela gosta. Comenta uma bobagem do noticiário enquanto ele traz os ovos. Tira a cigarrilha da boca para comer.
Os colegas dizem que é o melhor em sua profissão. Tinha lido todos seus artigos acadêmicos e o conhecia melhor do que qualquer pessoa, mas não tinha acesso ao psicólogo que, por trezentos e cinquenta reais a hora, estava à disposição de quem pudesse pagar.
Tudo, Aninha. Tudo.
Quantas intimidades inconfessáveis borbulhariam debaixo de tanta placidez? Tinha a certeza latente de que ele tudo via, tudo sabia.
Motel. Aquela salinha desengonçada entre o sexo e o carro. Onde moças impassíveis que já viram de tudo trazem a conta e um café. Ana, você não pode me largar assim. Não depois de tudo o que eu fiz por você.
Canga, celular, chaves. Toalha, frutas, dinheiro. O jornal de domingo.
Por que você não ama mais o papai? Dá pra ver nos seus olhos.
Ele prepara a bolsa do menino. Muda extra de roupas, brinquedos de borracha, um livrinho. Fralda, porque nunca se sabe. Hipoglós e protetor solar. A menina não vai. Quinze anos. Não vai mais a lugar nenhum. Só quer saber de ficar enfurnada na internet. Saem os três.
Ah, se eu fosse você, eu saberia exatamente o que tem que ser feito.
Encontra a irmã. Fofocam. O menino aos seus pés, absorto na areia. O marido, na água, sobe e desce nas ondas. Aninha, você não pode continuar fazendo isso com ele. Ele tem direito de saber.
Vai por mim. Eu sei do que estou falando.
Tira a cigarrilha dos lábios e a coloca de volta na cigarreira vazia. Entra na água. Ele a recebe com um sorriso. O mar está alto, borbulhando. Eles se abraçam e ela sente o pau endurecendo contra si. Aquele corpo é seu. Um corpo que parece não sentir falta alguma de sexo.
Se não contar, seu casamento será uma farsa. É isso que você quer?
Sentindo aquele pau duro, ela quer contar. Tudo. Tive uma amante. Acabou. Eu te amo. Você tinha que saber. Perdão.
Você não merece o papai. Você é uma vaca.
Perdão.
Vaca.
Perdão, perdão.
Você me disse que seu casamento tinha ido pro espaço, sua puta. Você não presta.
Na areia, abre a cigarreira. Suas mãos tremem um pouco. Brinca com a cigarrilha entre os dedos antes de colocá-la nos lábios.
O Luiz da contabilidade tinha razão.
A cigarrilha satisfaz suas necessidades orais, refreia sua ansiedade latente. Nem precisa fumar: basta morder e manusear, chupar e cheirar.
Mamãe tinha razão.
Muitas vezes, a ansiedade somente muda de endereço. A cigarrilha tensiona qualquer ambiente. Seguranças e garçons a seguem atentos, sem saber se devem chamar sua atenção agora ou esperar que acenda. Pois, afinal, vai acender, não?
Vovó tinha razão.
Por que mais alguém andaria com uma cigarrilha pendurada nos lábios, presa entre os dentes, segura entre os dedos? Quem está com uma cigarrilha na boca é porque quer acender.
Você tem que contar, Aninha. Você sabe que você quer contar.
E, Jesus amado, ela quer. Acender. Fumar. Tragar. Sentir o calor nos dedos. Ver a fumaça subir. Dar o tapinha leve para a cinza cair. Tudo. Mas não vai.
E os nossos planos? Deixei de fazer meu mestrado em Nova Iorque. Por você.
No começo, ela se importava. Não queria ser a portadora do caos. Com o tempo, relaxou. Não estava fazendo nada de errado. Comprava sua paz de espírito ao custo do nervosismo dos outros.
Aninha, não deixa esse segredo virar um câncer.
Ele esfrega o menino, lava o sal dos cabelos, tira a areia das dobrinhas. Ela senta na privada para observar. Seus dois homens. Ainda não tinha tomado banho. Sente as pequenas partículas de sal na pele, a areia entre os dedos dos pés. No corpo, o cheiro de mar. Em seus lábios, mesmo apagada, a cigarrilha emite um suave aroma de tabaco.
Você acha que eu sou criança? Eu sou uma mulher. Como você. Mulher sente.
A menina não aparece para o almoço. Comem restos do jantar. Ele coloca um filme infantil no telão da sala e se acomoda em sua poltrona favorita para ler. “A Princesa de Clèves”. Um romance francês do século XVII. Ela não entende qual era a graça de ler sobre coisas que nunca aconteceram a pessoas que nunca existiram. Tem uma planilha para terminar.
Não presta.
Abre o laptop na mesa da sala, insere os dados e escreve as fórmulas. Então, faz uma pausa. É seu momento preferido. Parece mágica, mas o maravilhoso é não ser mágica: é ciência e cálculo, previsível e replicável. Sob controle. Aperta enter e a planilha se preenche diante de seus olhos, número após número, exatos e emocionantes, tudo se encaixando, cada coisa em seu lugar. Aqui, se sente em paz.
As coisas que não são ditas apodrecem dentro de nós, Aninha.
Vibra o celular. Uma vez só. Mensagem. Tira o telefone do bolso e confere o remetente. Não quer abrir. Não quer saber. Acabou. É preciso cortar a comunicação. Clica no ícone. A mensagem está em branco.
Você sabe que você não leva jeito pra essas coisas, Aninha.
Toca o fixo. Algo cada vez mais raro. Só a mãe ainda liga para esse número, mas são seis da tarde, hora da missa. Já sentado ao lado do aparelho, ele atende. Ela faz força para permanecer na cadeira. Trabalhando. Foco nas planilhas. Tranquila. Estou tranquila. Tudo sob controle.
Você ouve bem o que estou falando, Ana!
Você não me ouve, mãe!
É só você me ouvir e tudo vai ficar bem.
Ele ouve. Ao final, pede desculpas pelo engano e desliga. Quem era? Uma moça. Procurando pela namorada, veja só você. O mundo está mesmo mudando para melhor.
Sua puta ingrata. Vou destruir esse seu casamentinho de merda.
Fim de noite. Ele já acabou o livro e foi pro quarto. O menino está vendo o filme pela terceira vez. Cansada, fecha o laptop. Quando vai se levantar, repara o vidro da mesa repleto de pontinhos brancos. Nacos de cutícula e pele morta que arrancou com as unhas. Sem nem perceber.
Um dia eu vou embora e você vai ver. Nunca mais vai saber de mim.
Passa pela varanda. A lua refletida na enseada. A rede balançando ao vento. Cheiro suave de maresia. Era aqui que mais gostava de fumar. Sente a língua cheia de pedacinhos de tabaco. Tira a cigarrilha da boca. Destruída e deformada, mastigada e amassada. Enfia a cigarrilha na terra fofa da samambaia. Como quem enterra um passarinho.
Tem que contar, Aninha. Se abrir. Botar isso tudo pra fora.
No quarto, ele já está dormindo. Com uma revista acadêmica aberta sobre o peito. Ela vai ao banheiro, escova os dentes, toma os remédios, passa os cremes. Na volta, abre a gaveta da mesinha de cabeceira e tira uma caixa com cinquenta cigarrilhas. Escolhe uma, leva ao nariz e inspira o aroma de puro tabaco. Então, pousa a cigarrilha no cinzeiro de mármore e dorme.
Tira essa merda da boca e fala comigo!
* * *
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