Peço que desculpem a ferrugem, pois depois de um longo hiato, eis que retorno à escrita por aqui.
Aos que lembram de mim, um abraço apertado. Aos que não, me apresento: Sou o Bruno, 33 anos, estilista por formação, pintor por vocação e churrasqueiro por ambição.
Moro em São Paulo faz uma década e, há três anos, fui ao PETAR pela primeira vez.
O Parque é a maior área de Mata Atlântica preservada do Brasil. Foram três dias de cachoeiras, cobras e cavernas. Acabei pegando gosto e ano passado retornei para cinco dias pintando no meio da selva, espantando o frio com pupunha assada e os mosquitos com o pincel.
Calejado e disposto, senti que era hora de ir mais longe e é aí que nossa aventura começa.
Passo a mão no telefone e ligo para o Júnior, o homem mais tecnológico do Vale. Engraçado e ligeiro, é ele quem faz a ponte entre a mata e a cidade. Eu sabia que se tratava do cara certo pra essa empreitada:
— Fala, Junior! Me ilumina! Preciso ficar um mês aí, esquecido pelo mundo e num lugar bem isolado, me arranja um teto?
— Opa, Bruno, lá vem você com essas ideias! Me dá uns dias que eu resolvo tudo.
Duas semanas depois, tal qual a vingança, ele tarda, mas não falha:
— Arranjado, se prepara, pintor!
Ah, a delícia da antecipação!
Em São Paulo, a chuva era fina e amarrava o dia. Mais um telefonema precisava ser feito:
— Fala, Juan! Vou ficar um mês no PETAR pintando, não sei nada além disso, bora?
— Como assim, explica isso aí.
— É só isso mesmo, acho que vai tá sol.
—Beleza! Vamo.
Calmo e polido, esse filho de argentino com mãe brasileira carregava consigo um olhar 43 digno do Villas-Bôas hipnotizador de índias. Juan era um antropólogo/marceneiro/pintor ponta firme, sempre dizia que minhas idéias eram estúpidas e nunca recusava montar no carro.
A Chegada
Atrasados pela estrada pesada de caminhões, chegamos ao Petar às nove da noite na companhia de uma fina garoa. Encontro com o Junior e ele me apresenta o pessoal:
— Bruno, esse é o Jura. Vocês vão ficar em um local dele. Como não está chovendo dá até pra ir de carro (?!).
Aperto de mão firme e sorrindo como se no dia seguinte fosse feriado, Jura era uma versão jovem e musculosa do Morgan Freeman. Ao seu lado o filho, Hudson, meu ótimo guia de dois anos atrás e Paulinho, o genro, de sorriso desconfiado e postura dura. Cumprimentos feitos, obedeci ao comando:
— Bruno, sigam minha caminhonete. Em uma hora a gente chega.
Estava frio, garoava e era tarde da noite. Eu não tinha ideia de qual seria nosso destino. A estrada de terra era estreita e um paredão verde margeava nosso canto direito. Também não entendia porque era preciso três pessoas pra indicar nosso caminho.
A ansiedade e empolgação aumentavam ao notar algo que parecia ser um espelho d'água à nossa esquerda. Mais duas curvas e, num pequeno trecho de descampado, nós paramos.
O chão escuro contrastou com a nuvem de estrelas que aparecia no céu. Eu não sabia pra onde devia olhar. Até que, a uns cem metros, vi o que parecia ser a luz de uma cabana. Os três homens no carro da frente desceram e vieram até nós. Na sequência fizemos o mesmo, embora ainda sem saber por que não tínhamos estacionado mais perto da casa. Afinal, o que não nos faltava eram bagagens, telas e comida.
— Hudson, Paulinho, ajudem os meninos! Vou ligar o barco! — disse Jura enquanto caminhava no breu.
Barco? Quando dei por mim, notei que o espelho d'água que nos acompanhou na ida era mesmo a margem de um rio e que, dali, não seria mais possível voltar à cidade e nem ao nosso carro.
O espanto só não era maior porque nada chamava mais a minha atenção do que ver dois caras colocando uma cama dentro de um barco!
Fiquei envergonhado por dar tanto trabalho para aquelas pessoas, mas ao mesmo tempo bem contente por descobrir que teria um teto com luz elétrica e colchão!
Cruzamos o rio e, depois da cama, eles ainda nos ajudaram a levar todo tipo de tranqueira que tínhamos trazido. Pedi desculpas, mal os conhecia e não esperava ter que incomodar mais gente nessa empreitada, então, eis que o genro de cara firme, Paulinho, me responde:
— Quê isso! Pra nós é um prazer poder ajudar os outros.
Aquele momento ficou na minha cabeça.
Eu não tinha visto o cara sorrir em nenhum instante, não nos conhecíamos e, com certeza, eu não despertava nenhum interesse nele. Por que diabos ele e os outros estavam me ajudando tanto? Com certeza, ali não era mais a cidade grande.
Durante os primeiros dias esta pergunta não saiu da minha cabeça, mas a surpreendente resposta haveria de vir dali a algumas semanas.
A Rotina
Juan passaria os primeiros cinco dias pintando comigo. Depois deste período, ele voltaria ao trabalho na cidade.
Nossa rotina se estabeleceu rápido. Acordar às quatro e meia, preparar o material de pintura, encher o bucho e, às seis e meia, já estar no campo com as telas e o café.
Como pintor, meu objetivo era entender as mudanças de cores ao longo do dia. Como aquilo afetava as matizes da mata e como essa mata se refletia em nossas peles.
As pessoas têm uma visão romântica do trabalho do pintor. Sim, nossa concepção é realmente fruto de algum tipo de desejo inconsciente, mas a execução é sempre extremamente técnica, metódica e racional. Deixemos a Arte de lado, não é por isso que escrevo hoje.
Ao fim da primeira semana (no último dia em que eu teria a companhia do Juan), recebemos a visita do Jura, que nos trouxe alguns mantimentos e amigos; Paulinho retornara e, ao seu lado, o pequeno – mas corpudo – Macaé, de olhar cerrado e barriga afiada. Por fim, o Kisuco, que era irmão do Jura e tinha sido meu guia no ano anterior. Kisuco era esguio e sempre te olhava como se soubesse um segredo. Sua fala calma e escorregadia era sempre pontuada com o mantra “segue o fluxo”. Tínhamos nos tornado grandes amigos desde o ano passado e era ótimo reencontrá-lo.
Foi uma noite e tanto. Peixe dourando no fogo e bastões gigantes de palmito cozinhavam na brasa enquanto o Jura se atrapalhava contando piadas da região.
Eu e o Monstro
Agora sem companhia alguma, no dia seguinte a festa se seguiu rotineira como nos demais. Acordando na madruga, preparando tudo e pintando no campo até o sol sumir. Eu sempre chegava esgotado na volta. As noites eram geladas na margem do rio. Eu me arrastava pra preparar um qualquer coisa de janta e me sentia um herói por chegar até o chuveiro. Nove horas eu já estava embalado, moletom, gorro, pescoceira e duas cobertas (eu falei que era frio).
Looping. A primeira semana passou tranquila. Ficar sozinho deixou meus sentidos aguçados. Eu me sentia o Peter Parker da selva.
Comecei a perceber o barulho dos macacos bugios ao longe, todo dia de manhã. Com o tempo, eles foram se aproximando. O som era assustador e excitante ao mesmo tempo. Não tenho dúvidas que se você ouvisse isso à noite, sozinho, dormiria de facão na mão (jamais fiz isso… muito). Não consigo imaginar como ainda não usaram esse som em algum filme de terror.
Clique, feche os olhos e ouse discordar:
Mais uns dias se passaram e acabei recebendo um bom dia cara a cara. Eu carregando a tela de um metro e meio e ele jiboiando em uma árvore próxima, me olhando com desdém. Com certeza pensando por que um animal carregaria um trambolho desses por aí.
Nos tornamos íntimos por um tempo, eu chegava no campo e ligava um disco do Cartola. Mal acabava a primeira música e já ouvia aquele som gutural cortando a mata. Nunca vou saber se era um “bom dia” ou um “vá pro inferno”. Alguns mistérios a mata seguirá preservando.
A Solidão
Eu já tinha passado tempo suficiente para que nada mais ali fosse novidade. Então, finalmente eu a encontrei: a Solidão. É verdade que foram poucos semanas, mas pela primeira vez percebi do que se tratava essa sensação.
Sempre fugi de multidões, não vi problema em morar sozinho em outra cidade logo que saí da escola e nunca me incomodei por trabalhar de casa por quase uma década, mas parecia que agora algo era diferente.
A solidão física é quase indescritível. É um incômodo constante. Não dói, mas deixa uma cicatriz sem machucado.
Os primeiros a sumir são os seus filtros sociais. Você esquece o que é a barba, o que são os pêlos. Se ver no espelho já não aflora qualquer juízo de valor ou interesse.
Em poucos dias você deixa de sorrir, mas não porque está triste, de modo algum, apenas o faz porque sente que não é mais preciso.
As sensações boas e ruins passam a ser desacompanhadas de expressões faciais. Comecei a notar que o único momento em que eu mexia o rosto era quando acompanhava as músicas que tinha levado comigo, talvez nossos sorrisos e lágrimas só tenham sido criados para nos comunicarmos e não pela necessidade de “colocar algo pra fora”. Naquele instante aprendi algo incrível. Era possível exercer o sentir sem ter que expressá-lo. Talvez este aprendizado seja nocivo para a vida em sociedade, mas para os solitários, com certeza será algo que lhes trará solitude.
Mas, espere, se era inegável que eu estava me aproximando mais dos meus instintos primitivos, era claro também que, hora ou outra, eu relembraria que somos uma espécie que vive em bandos. Comecei a me sentir como um buraco que sabia demais: ao mesmo tempo em que notava a falta algo, sabia que se aquilo fosse preenchido eu deixaria de existir. Pobre buraco, eu precisava de algo que não estava em mim, seria o fim da minha independência.
De tempos em tempos o Jura cruzava o rio, trazia mantimentos e vinha cuidar da roça. Nestes raros momentos, antes de revê-lo, eu sempre pensava que finalmente ia bater um papo pra acabar com a solidão, mas algo interessante acontecia: ele chegava com sorrisos, macarrão e ovos, perguntava sobre os pássaros e já seguia pro roçado. Eu respondia ligeiro e apenas voltava pro meu canto de mato para continuar pintando. Minutos depois um “até” era acompanhado pelo motor do barco.
Naquele momento, a simples percepção de que existia mais alguém ali, me bastava, não era preciso conversarmos pra aliviar o isolamento. Quando você está em paz consigo, a mera presença de alguém lhe basta.
Talvez este seja um comportamento ancestral herdado dos animais, que diz que se o bando está ali, as coisas estão corretas.
Isso me levou a pensar que pessoas que se sentem sozinhas mesmo quando rodeadas por multidões talvez não careçam de contato com o outro, mas sim consigo mesmos.
E, quem sabe, possamos ir ainda mais longe e sugerir que a busca pelo novo (quando esta independe da necessidade) se dá porque é difícil se sentir sozinho em meio a novidades.
Me lembro de não perceber solidão alguma nos primeiros dias de adaptação. Creio que nosso gasto mental e energético para compreender algo novo é alto e, neste caso, nosso corpo utiliza uma lógica animal, suprimindo os sentimentos mediante a necessidade de compreensão de alguma coisa ou lugar que desconhecemos.
Um tipo de instinto que foi tão vital para a sobrevivência não deve sumir facilmente.
Transferindo este pensamento para a lógica de consumo, me vem que talvez seja o sentimento de solidão, e não o de inveja, que dê tanto impulso à vontade que temos de consumir coisas novas. Nosso tempo nos tornou criaturas tão agitadas que o único momento de paz que a maioria de nós encontrará é exatamente quando estamos impossibilitados de sentir, entorpecidos pela necessidade de compreender algo externo a nós: a novidade.
É esse o charme irresistível que nos arrasta a consumir e buscar por inovações a todo momento. É um paradoxo e tanto. Estamos constantemente procurando barulhos que nos ensurdeçam, que silenciem nossas sensações, que nos deêm paz.
Na mata aprendi muito sobre cores e formas, mas aprendi principalmente sobre percepções de mim e dos outros.
* * *
Encerramos por aqui a primeira parte do relato.
Nos veremos novamente dentro de um mês, quanto você ficará sabendo o que aconteceu quando o surgimento de uma companhia inesperada nos fez cair em estradas escondidas e pouco exploradas.
A calmaria acabou, espere por mitos, travessias noturnas de rio em meio a tempestades, morcegos, aranhas, eclipses e quilombos e, claro, um ou outro gif besta.
Espero ter sido útil ou, ao menos, divertido.
Obs: No meu Instagram você poderá encontrar este auto retrato que fiz durante a viagem e, diz a lenda, mais pinturas do Petar que em breve surgirão por lá.
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