Ouço uma música tocar num carro, num volume bem alto. Dava para ouvir bem antes de ver qualquer carro no horizonte.

“Ô novinha taradinha, / Danadinha, gostosinha / O Jajá fala pra tu / Eu quero é? / Eu quero é tu.”

Enquanto essa música ainda está ecoando nos ouvidos, uma outra vai entrando pouco a pouco, como se estivesse caminhando ao meu encontro, ao vivo, vindo de um bar. Rodeado de cervejas e uma sinuca, um homem cantava, tocando a melodia no violão: “Tá vendo aquele edifício moço? / Ajudei a levantar / Foi um tempo de aflição / Eram quatro condução / Duas pra ir, duas pra voltar / Hoje depois dele pronto / Olho pra cima e fico tonto.”

Encontrei essas músicas se encontrando diante de mim hoje à tarde. Cenas como essa me deixam como um cão que anda, de um lado para outro, farejando tudo, tentando entender as histórias das pessoas, sentir os sons, conectar os pontos inconectáveis, colocando o nariz onde der para colocar. E essa metáfora de um cão farejando o presente é a mesma que Elias Canetti, um escritor búlgaro, naturalizado britânico, prêmio Nobel de Literatura em 1981, usa num discurso que proferiu em 1936, sobre o escritor austríaco Hermann Broch.

Canetti
Canetti nos diz um olá otimista

O que mais me chama atenção nesse discurso, bem mais do que a análise que faz de Broch, é a descrição dele sobre o que seria necessário para um poeta ter significado na sua época.

Curiosamente, quase 40 anos depois, em 1974, Canetti ainda afirmou que aquelas três características continuavam sendo imprescindíveis para ele. Constatou, aliás, que se esforçava para satisfazer às exigências que ele mesmo tinha listado. Mesmo sendo uma análise do início do século passado, hoje publicada no livro “A consciência das palavras“, no texto Hermann Broch, sua atualidade é clara. E vale ressaltar que o autor usa a palavra “poeta” como um termo mais amplo, tal como “escritor” – sobre esse ponto, vale ler o texto “O ofício do poeta”, publicado no mesmo livro.

As características exigidas são bastante relevantes para qualquer pessoa que queira realmente revirar nossos tempos turbulentos pelo avesso.

Seguem as exigências:

1. Prender-se ao próprio tempo com máxima firmeza

Como um cão, andar por aqui e acolá, incansável, “pronto para ser instigado, difícil para ser contido”, metendo o focinho úmido em tudo, com obstinação inquietante. “Peço desculpas pela imagem, que deverá lhes parecer extremamente desmerecedora do objeto tratado aqui”, desculpa-se Canetti ao fazer a metáfora do cão.

Ao farejarmos o que está na nossa frente, viciados pelo encontro com as coisas, não só entramos em contato com o que nos rodeia, mas lapidamos nosso imaginário particular. “[Esse] vício impele o poeta a criar seu próprio mundo, o que ninguém mais em seu lugar conseguiria. Imediaticidade e inexauribilidade, essas duas características que desde sempre se soube exigir do gênio, e que este sempre possui, são as filhas desse vício”, comenta o escritor.

Sem esse vício de meter o focinho na realidade, não teria escutado as músicas que cito no início do texto, que saltavam diante de mim. Ontem não teria conversado com uma senhora que encontrei sentada numa praça perto de casa. Levei para essa senhora uma garrafinha de água e um salgado que comprei na padaria, e ela me respondeu, não, não quero, e eu disse, por favor, aceite, é um presente, e ela respondeu, ah, aceito, então anote no celular, e eu perguntei, anotar o quê?, e ela, anotar que você comprou essa comida, porque sempre que a gente compra comida tem que anotar em algum lugar que comprou comida.

"Cuidado com o cão"
“Cuidado com o cão” | Foto por Knartis

Foi o vício de me chocar com meu tempo que me fez observar essa senhora com atenção. E perceber que o coque no alto da sua cabeça parecia uma pedra cinza feita de cabelos velhos. Ainda que em nenhum itinerário comum uma conversa dessas esteja planejada, continuar conversando com ela me inundou de sentimentos e sensações inquietantes.

2. Vontade séria de compreender o tempo atual

Esse ímpeto é a segunda característica essencial. Entender mais do que os fatos dos jornais, buscando principalmente a universalidade por trás deles. Broch, o escritor que Canetti analisa, defende que a missão da poesia é exatamente dar conta do universal que está ocupando cada segundo do nosso tempo.

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Haveria algo mais importante de compreender do que o universal que liga os pontos por trás das ações? A missão do poético é abarcar a totalidade. “[O poético] está acima de todo condicionamento empírico ou social, para o poético é indiferente se o homem vive numa época feudal, burguesa ou proletária – o dever da poesia para com o absoluto do conhecimento, pura e simplesmente”, comenta Broch no discurso “James Joyce e o presente”.

O poético não está só na poesia escrita, claro. Pode assumir mil formas, de palavras a sons, de movimentos a gestos.

3. Estar contra o seu tempo

Não adianta estar contra isto ou aquilo, mas sim contra a totalidade do nosso tempo. “A oposição deve soar alto e tomar forma – o poeta não pode, por exemplo, entorpecer-se ou resignar-se ao silêncio. (…) Deve desejar o sono, mas jamais se permitir alcançá-lo”, comenta Canetti.

“Esta é, sem dúvida, uma exigência radical e cruel; cruel, pois está em profunda contradição com aquela anterior (…) como vimos, o poeta está à mercê da sua época, é seu criado mais humilde, seu cão. E esse mesmo cão, que durante toda a sua vida corre atrás dos desejos de seu focinho, esse fruidor e vítima involuntária, ao mesmo tempo caçador e presa do prazer, essa mesma criatura, deve, num átimo, estar contra tudo, pôr-se contra si mesmo e contra seu vício, sem, contudo, poder jamais libertar-se dele, tendo de seguir em frente, revoltado, com plena consciência de seu próprio dilema”, completa.

Com essas três características (prender-se ao tempo atual, esforçar-se por compreender o que existe e estar contra o próprio tempo), conseguiria marcar sua época, suas criações seriam plenas de significado. Para Canetti, o poeta é um guardião de metamorfoses. É aquele capaz de se apropriar da herança literária da humanidade e de se transformar em qualquer um, de “manter abertas as vias de acesso entre os homens”.

“Só pela metamorfose (no sentido extremo em que essa palavra é usada aqui) seria possível sentir o que um homem é por trás de suas palavras”, afirma, ressaltando também que prefere usar a palavra metamorfose em vez de empatia ou qualquer outra nesse sentido.

Foto por Antoine Petit
Foto por Antoine Petit

O poeta abre espaço em si mesmo e treina, sem se cansar, o exercício de se tornar outros seres humanos.

É aquele que resiste aos “mensageiros do nada”, aos derrotistas que não acreditam em uma realidade diferente. “Eu disse que só pode ser poeta quem sente responsabilidade, embora ele talvez faça menos do que os outros para comprová-la em ações isoladas. Trata-se de uma responsabilidade para com a vida que se destrói, e não se deve ter vergonha de dizer que essa responsabilidade é alimentada pela compaixão”, reflete Canetti.

Alguém que leia suas palavras talvez se assuste pela força com que fala sobre responsabilidade. Esse alguém pode perguntar: e se o poeta não quiser ter responsabilidade nenhuma? É uma questão possível nesse contexto, mas vale ressaltar que não estamos discutindo o conceito de poeta nem fazendo uma análise acadêmica sobre o fazer poético. Estamos apenas nos aproximando da descrição de um autor que se preocupava muito com as mazelas de sua época, para quem sabe aprendermos um pouco com ele.

Soltar-se dos grilhões do nosso tempo não é tarefa fácil. É árdua e demanda um esforço teimosamente constante. Quando Canetti fala sobre ser contra o próprio tempo, por exemplo, a princípio pode parecer exagerado, mas seu intuito é apenas deixar claro que a conivência diante da crueldade perpetrada a cada segundo sob nossos narizes é algo horrendo, e com isso não devemos compactuar – no geral, realidades muito cruéis recebem nosso consentimento em forma de silêncio.

Canetti deixa um convite. Um convite para farejar a realidade como um cão, não hesitar no esforço de compreendê-la nas entranhas e negá-la, sempre num processo de criação, entregando ao mundo a poesia que vai corroer nosso tempo e lançar novos chãos para os pés sem rumo. Um convite endereçado aos poetas, mas que vale para todo mundo.

André Gravatá

É membro do coletivo Educ-ação e coautor do livro <a>Volta ao mundo em 13 escolas</a>. É doutorando informal