Em um dos módulos que dou aula de direção na Academia Internacional de Cinema, o quadro pedagógico foi escolhido de maneira que os alunos construíssem seu primeiro filme narrativo em película, a partir de fontes e referências sólidas que nasceram da experiência de se criar um documentário.

Ônibus 174, do José Padilha: pedaços de verdade que contam uma mentira

O interessante desse caminho é notarmos, com a obra pronta (o filme), que existe uma verdade por trás do véu da mentira que circula tudo – personagens, lugares, espaço e tempo – para nos trazer uma verdade.

Essa deliciosa dicotomia foi debatida por vários intelectuais e profissionais do cinema e, entre eles, o genial diretor de O Bandido da Luz Vemelha, Rogério Sganzerla. Em sua coluna de cinema no jornal São Paulo Shinbun, lá pros anos 60 ou 70, ele disse:

“O cinema é uma arte das evidências enganosas”.

São pelas evidências (lampejos de verdades) que somos convidados a entrar na história que o diretor está contando (lembrem-se: cinema é nada mais que um contador de histórias). E aceitamos essa brincadeira de enganação cheia de elementos de realidade.

E se a “mentira” é bem contada, a gente gosta que é uma beleza! Isso porque toda a papagaiada mostrada ali naquela janela de sala escura (a magia da tela de cinema de mostrar o “lado de lá”) às vezes é tão bem contada que não temos nem coragem de duvidar. Nos agarramos numa verdade (fato) para imergir em uma mentira (o filme).

O diretor José Padilha, que é documentarista, entende bem essa diferença de fatos e como eles podem ser modelos para se contar uma boa mentira/história/filme. Recentemente saiu no Youtube o trailer de Tropa de Elite 2 para exibição estrangeira e, como todo trailer, acompanham frases criadas por críticos a respeito do filme. As frases são resultados da bagagem e das referências que esses críticos têm para poder analisar o cinema. Por isso compararam tanto o filme com Bons Companheiros, O Poderoso Chefão e outros filmes de máfia.

Só que poucos o entenderão, ainda mais porque os dois filmes de ficção de José Padilha (os dois Tropa de Elite) possuem um pezinho na realidade que tanto gerou polêmica. E a controvérsia não tem fim, pois o primeiro filme ganhou até Berlin quando Costa Gravas (um diretor político e às vezes chato) presidiu a mesa do júri.

YouTube | O trailer gringo de Tropa de Elite 2, comparado com “Os Infiltrados e “O Poderoso Chefão”

Poucos filmes no Brasil tiveram coragem de colocar o dedo na ferida como o Tropa, que se encaixou no gosto popular e fez com que o filme dialogasse com todos, desde o juiz mais bem formado ao senhor com pouca instrução. Isso se deu pelo simples fato de que todos têm seu ponto de vista de um mal que assola a sociedade (no caso do filme, a violência gerada pelo do tráfico de drogas).

Divertida foi a época em que Padilha era chamado para debates sobre seu filme e como a película disparou criticas ácidas para todos os órgãos, desde a participação da burguesia na manutenção do tráfico de entorpecentes até ao homem-mídia formador de opiniões fascistas que, debaixo dos panos, contribui para maquiar a verdade.

Para todas as provocações que o filme levantava, o diretor era questionado sobre a relação da obra com a realidade, a parcialidade dos temas levantados e, para todas as questões feitas por sociólogos, críticos e outros pesquisadores, a resposta era:

“Este filme é uma ficção!”

Resposta genial que o mantinha numa zona de conforto no qual o cineasta tem a liberdade de retratar o assunto que quiser sem ser cobrado de seu posicionamento político. Afinal, sabemos que a mídia e imprensa têm se tornado insensíveis com o tempo, a menos que ela tenha sido o próprio alvo, como foi o caso recente do cinegrafista Gelson Domingos, que abalou todo sistema de imprensa por ser atingido por um fuzil de guerra que atravessou seu colete a prova de balas.

E nos soa muito fantástico pensar que o tráfico carioca possui alto poder bélico: “Um tiro de fuzil que atravessou o colete à prova de balas”, fator que nem em filmes neofascistas víamos ocorrer.

Lá nos Estados Unidos, por exemplo, um diretor ousou usar um filme pra reclamar da mídia. Brian De Palma, famoso por seus trabalhos que tanto nos lembram Hitchcock, resolveu fazer um filme digital pra reclamar do papel cuzão que a imprensa teve nestas últimas invasões americanas ao território palestino. A película chama-se Redacted e tem um tom pesadíssimo narrado pela câmera de um soldado americano que pretende estudar cinema caso volte do Iraque.

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Misteriosamente, depois deste filme, De Palma anda muitíssimo quieto.

Redacted: o filme que “calou” Brian De Palma

Ainda sobre a linha tênue que separa civis de uma guerra declarada, temos vários filmes interessantes que mostram o gueto de Nova Iorque numa era antes da gestão de Rudolph Giuliani (responsável por limpar a cidade toda da “escória urbana”). Essa limpeza incrível nos faz pensar se não foi empurrada a sujeira pra baixo do tapete, como aqui mesmo em São Paulo, cidade que jogou a escória atrás da Sala São Paulo, formando a nova “cracolândia”, num visual que nos lembra até mesmo um episódio de filme/série de zumbis.

E nessa era antes de Giuliani, muitos filmes barra-pesada foram feitos de forma visceral com Enzo Castellari (com Fuga do Bronx, Guerreiros do Bronx) Lucio Fulcci (New York Ripper, Manhattan Baby) Abel Ferrara (Rei de Nova Iorque) Michael Winner (a saga de Desejo de Matar) e não muito longe de nós, o próprio Scorsese, quando retratou uma Nova Iorque romântica apesar de pesada em Vivendo no Limite (isso se deixarmos seus filmes setentistas de lado).

Longe da realidade é justamente o que os dois Tropas do Padilha não estão e isso transformou o filme no fenômeno que é e fez com que todo brasileiro se questionasse no ponto de partida e chegada (a última vez que li que o brasileiro foi provocado pela cultura, foi no tropicalismo) para que tentasse mudar algo ou pelo menos acordasse do estado constante de letargia pós-militarismo. É o cinema carregando o fardo de que o filme ganha vida própria em nossos debates de bar pós filme.

Particularmente, quando vi o primeiro filme, não havia gostado da edição de Daniel Rezende. Depois, descobri que o personagem do Capitão Nascimento foi descoberto depois do filme pronto, fato que obrigou diretor e montador repensarem na forma do filme. Aí que o Rezende chegou com seu corte que me fez estranhar o filme que eu sentia alguma coisa meio caricata, principalmente nas cenas de autoafirmação do Cap. Nascimento com sua esposa.

Mas quando chegou o segundo filme e fiquei sabendo que, além de montar, o Resende dirigiu a segunda equipe de produção, vi um belíssimo longa que pegou todas as fragilidades do primeiro filme e justificou no segundo. O diretor soube canalizar a força negativa a seu favor.

Ele literalmente matou a cobra e mostrou o pau balançando não apenas para os sociólogos de plantão, mas para cinéfilos que temiam o nascimento de uma franquia blockbuster nacional.

O Capitão Nascimento passa de herói fascista a verdadeiro protagonista de uma baita história

Isso de fato não ocorreu: os dois filmes nadam contra a maré no universo de cinema de indústria e mercado, dialogaram com quase todo cidadão com um mínimo de senso político e, existe ali dentro da tela, o exercício de cinema de excelentes atores que parecem ter sido inseridos num campo de realidade que experimentaram de perto os treinamentos da polícia.

Milhem Cortaz (Cap. Fábio), na época que encerrou o primeiro Tropa, atuou num curta-metragem que dirigi logo em seguida ao primeiro Tropa, e lembro-me na época o quanto deslumbrado o ator estava por ter passado por todo processo de realização do filme no Rio de Janeiro, ser dirigido pelo Padilha, ter passado pelo método de preparação de elenco da Fátima Toledo, e conhecia o filme mesmo antes de vazar e ter transformado no fenômeno que foi.

E para que nós analisemos o filme, separamos as duas dimensões do filme: O filme, objeto bruto de absorção e análise e a questão norteadora que levanta e prende a todos, sem perder no mínimo, toda carga cinematográfica que um clássico nacional poderia carregar.

E que venha Robocop para o Padilha!

Vébis Junior

Professor, produtor, diretor em cinema. Graduado em Audiovisual pela Universidade Metodista de São Paulo e Mestre em Cinema pelo Instituto de Artes da Unesp. Foi coordenador do Curso de Prod. de Audio e Video da Etec Jornalista Roberto Marinho, é professor de Cinema na Unimonte e conteudista do site Sociedade Jedi.