Depois de quatro conversas, vamos enfim começar a entrar na pergunta que nomeia essa coluna (publicada no primeiro domingo do mês).

Começo descrevendo duas vantagens de pensar em processo em vez de técnica quando falamos em florescimento humano, depois listo nossos três grandes problemas e as frentes de prática (coloquei “três práticas” no título porque soa melhor, mas eu me refiro a processos, frentes ou categorias de prática transformadora, pois os métodos em cada frente são incontáveis).

Para não nos perdermos em técnicas e abordagens isoladas

Quando começa a doer e surge a necessidade de algum tipo de reorientação, a maioria das pessoas busca por uma técnica isolada, por um terapeuta, por um curso, por um medicamento. Isso é equivalente a começar a listar companhias aéreas antes de saber qual cidade queremos visitar.

Como nunca antes tivemos acesso a tantas abordagens que se dizem transformadoras, é muito fácil nos perdermos, ficarmos reféns, dependentes — e distraídos, cada hora pirando em um novo método.

Em vez de pensarmos em técnica, deveríamos pensar em processo. O que acontece internamente quando uma pessoa reduz o ciúme, a ansiedade, a depressão, a raiva? E como eu posso entender mais e me apropriar desse processo sutil?

Quando eu me proponho a fazer uma viagem, eu faço uso de companhias aéreas, guias, hotéis, livros, mas sei que meu caminho não se restringe a tais apoios. Sem tal clareza, sou facilmente enganado por alguma empresa de turismo. Do mesmo modo, quando eu me aproprio de minha própria transformação, aí sim as técnicas e os métodos ganham sentido.

“Estamos transferindo nosso equilíbrio para medicamentos. Ou para outras pessoas cuidarem de nós: a gente precisa fazer massagem, precisa de um terapeuta… Quando na verdade nós precisamos ser doutores de nós mesmos. Quando sento e o corpo não querer parar, eu não entendo nada do meu corpo, eu não sei como acalmá-lo… Fazendo essa experiência, deveríamos sair daqui bastante inquietos. Como é que eu não sei ficar parado? Isso é muito curioso.” —Márcia Baja

Para discernir charlatões de professoras e professores genuínos

Você é convidado para um fim de semana com um cara barbudo que se diz iluminado e coloca sua autoridade em um professor indiano de nome estranho que ninguém nunca viu. Você encontra mais de 200 pessoas cantando “Om” com os braços para cima, fazendo ásanas, estudando apostilas… Se você não tem clareza do processo que realmente pode transformar sua mente, se você não tem esse referencial interno, como saber se esse indiano barbudo — com suas técnicas, ensinamentos e comunidades — pode ajudá-lo?

Se a gente entende o trabalho a ser feito, fica fácil trucar alguém supostamente iluminado nos dizendo o que devemos fazer. Se a gente entende o que é o ciúme e mais ou menos quais tipos de práticas nos ajudariam a liberá-lo, por exemplo, fica mais fácil encontrar essas práticas. E assim por diante. É um jeito de nos empoderarmos nesse subterrâneo do florescimento humano.

Tenho visto que muita gente sequer começa a praticar porque não tem noção de que tal transformação é possível. O que chega para as pessoas nessa condição são práticas isoladas, muitas envoltas de crenças e linguagens específicas que acabam confundindo. Mesmo alguns que alegam ceticismo infelizmente só dialogam com os discursos empacotados que chegam sobre espiritualidade, felicidade etc. Ao fugir dos embustes, eles criam aversão a qualquer percurso. Jogam o bebê junto com a água do banho.

Três grandes problemas

Se é tão importante compreender quais seriam os processos que estão por trás do florescimento humano, por onde começar? Um jeito simples é investigar as raízes mais básicas de qualquer problema. A porta de saída fica mais visível quando mapeamos a estrutura da prisão. São duas faces da mesma coisa.

Quando sofremos, não importa o conteúdo da situação (as histórias, os pensamentos, as razões aparentes), podemos observar bem nitidamente três movimentos:

1) Não conseguimos parar e repousar. Reagimos e condicionamos nossa energia aos movimentos dos outros e da vida.

2) Entramos em algum jogo sutil e perdemos contato com a realidade.

3) Não conseguimos olhar para o outro em seu próprio mundo e agir para beneficiá-lo.

Descrevendo de outro modo, nossa mente normalmente está: 1) reativa, agitada, fixada, emocionalmente dependente, tensa, aflita, alternando entre torpor e distração; 2) deludida, crente, séria, condicionada, enganada em jogos, identidades e bolhas; 3) autocentrada. Para resumir ainda mais: sofremos por ausência de equilíbrio, sabedoria e compaixão.

Todos os nossos sofrimentos são causados por uma combinação dessas
três causas. Eis uma afirmação ousada e revolucionária que não vem de mim, mas das
mulheres e dos homens mais sábios e amorosos que já andaram nessa
terra. Se acha que existe algum problema que seja exceção, convido-o para a área de
comentários. Essa é uma conversa que vale a pena esmiuçar.

É possível descrever tudo como apenas um problema: uma espécie de ignorância de nossa natureza, uma cegueira que gera todo o resto. Ao mesmo tempo, é possível refinar e desdobrar cada problema ao extremo, gerando uma ciência incrivelmente detalhada de como a operação de uma mente sem equilíbrio, sem sabedoria e sem compaixão acaba produzindo 84.000 aflições sutis, que por sua vez produzem os trilhões de problemas grosseiros que tanto conhecemos.

Para um ser livre desses três problemas pode acontecer qualquer coisa que não haverá uma grande complicação. Haverá espaço para lidar com qualquer que seja a situação, mesmo as mais extremas, como no exemplo de Palden Gyatso, preso e torturado por 33 anos. Quando Sua Santidade o Dalai Lama perguntou “Qual foi o pior momento nesse tempo de prisão?”, Palden Gyatso respondeu: “O pior momento foi quando eu quase senti raiva, quando quase perdi o amor e a compaixão pelos meus irmãos e irmãs da China.”

O bom de encarar 10.517 problemas como apenas três é que não precisamos de 10.517 novos hábitos e mudanças. Precisamos de apenas três tipos de treinamentos.

Falei sobre os três problemas nessa palestra na UNICAMP, organizada no ano passado por um grupo de conversas significativas entre homens que existe em Campinas (veja aqui o índice clicável com os temas)

Três frentes de prática transformadora

Se observamos uma pessoa que está florescendo (cada vez mais presente, livre, generosa, leve, alegre, estável, benéfica, disponível), também podemos enxergar alguns movimentos bem nítidos. Por didática e para facilitar a conversa, aqui vou descrever três processos e as frentes de prática que os favorecem. São antídotos perfeitos para nossos três problemas fundamentais.

Não mencionei cultura de paz, ética e organização da vida, pois isso está implícito. E deixei apenas um exemplo de cada frente pois uma lista completa exigiria um trabalho gigantesco (peguei duas práticas seculares e uma que é encontrada no Advaita Vedanta) — a ideia é apenas mostrar como é possível ganhar clareza sobre esses processos. Quem quiser mais indicações pode perguntar ou compartilhar nos comentários.

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1) Equilíbrio. Como parar? Aprendemos a soltar, respirar, repousar, relaxar, pacificar, serenar, aquietar, não responder, não reagir, estabilizando corpo e mente sem flutuar tanto com as condições externas. Sem parar, é impossível mudar nosso movimento: nascemos, somos levados daqui pra lá, e morremos. Aqui entram os métodos e práticas que nos levam a cultivar a atenção, o equilíbrio emocional e a energia autônoma.

Exemplo de prática: shamatha. Exemplo de livro acessível sobre essa frente de transformação: A revolução da atenção, de Alan Wallace (em breve sairá uma segunda edição com a tradução toda revista pela Jeanne Pilli).

2) Sabedoria. Quem sou eu? Onde realmente estamos? O que está acontecendo? Quanto mais paramos, mais conseguimos olhar. Aqui entram os métodos que nos levam a investigar o funcionamento da mente e das emoções, as bases de cada relação, as causas do sofrimento e da felicidade, a natureza dos fenômenos, dos sonhos, da realidade, de todas as questões existenciais. Ganhamos clareza sobre os processos mais sutis do viver ao morrer. Como um pensamento surge, se mantém e cessa? Nossa visão se amplia além dos referenciais, identificações e condicionamentos, livre de delusão e ignorância, quebrando a rigidez das concepções arbitrárias sobre quem somos ou sobre o que é a vida, sem qualquer tipo de jogo ou alucinação. Qualquer construção é vista a partir do espaço amplo da realidade, qualquer situação se torna trabalhável, flexível, plástica, aberta. Começamos a brincar, a sorrir mais.

Exemplo de prática: auto-investigação (como ensinada por Ramana Maharishi e outros professores Advaita). Exemplo de livro acessível: Nada de especial, de Charlote Joko Beck.

3) Compaixão. Como podemos nos ajudar uns aos outros? Como posso ser útil? O que tenho a oferecer? O olho da sabedoria torna a compaixão inevitável. Aqui entram os métodos que nos levam a realmente cultivar (em prática formal e também no cotidiano) empatia, amor genuíno, generosidade, alegria, equanimidade, ação lúcida no mundo, motivação de reduzir o sofrimento e aumentar felicidade genuína, capacidade de se relacionar com a liberdade do outro, capacidade de entrar em qualquer mundo, não se abalar, acolher, espelhar, estimular, direcionar, cortar, dançar, liberar, operar em rede, beneficiar por infinitos meios hábeis e linguagens, favorecendo o florescimento de qualquer pessoa que se aproximar.

Exemplo de prática: autocompaixão (como ensinada recentemente de modo secular por Kristin Neff). Exemplo de livro acessível: Um coração aberto, de Sua Santidade o Dalai Lama.

“Como repousar?” abre as práticas de equilíbrio.

“O que está acontecendo?” abre as práticas de sabedoria.

“Como posso ajudar?” abre as práticas de compaixão.

Imaginem uma pessoa se debatendo em um lago. A primeira coisa que ela precisa fazer é parar de se debater. Depois, ela pode usar essa calma para olhar ao redor, ver o que tem no fundo da água, por que os outros se debatem tanto etc. Vendo que qualquer um ali tem o potencial de viver de modo mais amplo, sem tanto sofrimento, com equilíbrio e sabedoria é natural que brote compaixão, que ela se relacione com as outras pessoas ajudando quem continua a se debater.

As práticas de equilíbrio nos preparam para as práticas de visão, que nos preparam para as práticas do coração. Podemos também começar pela compaixão: se quisermos ajudar alguém, vamos precisar de equilíbrio e sabedoria. E podemos entrar em qualquer situação com sabedoria porque ela também nos leva a equilíbrio e compaixão.

São esses cultivos do mundo interno que mexem nas bases mais profundas da vida, não importa qual seja sua cara externa. Sem essa clareza, é muito comum detectarmos o problema do ciúme, digamos, e dizer “Vou tentar ser menos ciumento”, sem saber como de fato treinar uma mente menos ciumenta.

Olhe seu caminho e veja se está avançando nessas três grandes frentes. Veja se você conhece práticas específicas para cultivar equilíbrio, sabedoria e compaixão, uma combinação de corpo parado (relaxado, estável, atento, não perturbado), olhos lúcidos (livres de enganos, referenciais, seriedades, condicionantes) e coração aberto.

Há ótimos métodos de equilíbrio que quase não falam em compaixão e em sabedoria, por exemplo. Você encontra ensinamentos muito sábios que às vezes foram desconectados das práticas que poderiam abrir tal clareza. Há abordagens muito compassivas, de bom coração, mas que não enfatizam tanto a necessidade do treino da atenção e do desenvolvimento de sabedoria. Há métodos mais completos que incluem todos os treinamentos com bastante profundidade. E assim por diante…

Olhe também para as pessoas ao redor. Quando alguém vem dizendo que está há 10 anos fazendo “tal coisa”, observe se a prática de “tal coisa” a levou a aprofundar os processos de equilíbrio, sabedoria e compaixão. Ela está cada vez mais estável e não reativa? Ela está cada vez mais com a visão ampla, sem tanta seriedade, sem tanta fixação a bolhas e jogos, sem tantas teorias sobre como a vida deveria ser — ou está pirando cada vez mais em alguma ideologia? Ela consegue ouvir os outros em seus próprios mundos, beneficiando todo mundo que alcança, oferecendo mais do que pedindo? Não observe com a intenção de julgar, mas para ajudar e para você mesmo saber onde focar seu caminho.

Conversando assim, agora temos um referencial interno para saber o que funciona. Não é mais um papo abstrato e exteriorizado sobre técnicas, que não faz muito sentido (“Terapia funciona ou não funciona? Meditação funciona ou não funciona?”), mas um papo sobre processos, sobre o nosso próprio caminho, sobre a nossa vida.

Seguindo a conversa sobre como a gente se transforma

Ainda há muito a explorar. Nos próximos textos dessa coluna vamos usar exemplos bem concretos para entender melhor quais são os sinais de que a transformação está ocorrendo (como a diminuição das aflições). Tomarei como base essa visão dos três processos.

Vamos falar sobre sobre como avançar em equilíbrio, sabedoria, compaixão, sobre a diferença entre abordagens de desenvolvimento e de reconhecimento, sobre esforço, sobre narrativas de sucesso pessoal, sobre comunidade, professores e professoras, sobre a possibilidade da liberação completa, sobre religião, espiritualidade secular e o self-service autoajuda nova era, sobre continuidade e integração na vida cotidiana…

Por enquanto, seguimos nos comentários ou no lugar — todas as práticas que sugerimos no lugar estão divididas em quatro frentes: mudança (organização da vida, resolver o que dá para resolver), equilíbrio, sabedoria e compaixão.

Além dos vários pontos do texto, deixo uma pergunta para abrir a conversa: “Você achou essa visão útil? Se sim, você considera que está cultivando esses três processos em seu caminho? Se acha que não está, você saberia como começar ou isso não está claro?”

Gustavo Gitti

Professor de <a>TaKeTiNa</a>