(Lá vou eu meter o pé em terreno lamacento e polêmico.)
As discussões sobre equidade de gênero e cultura do estupro (que são absolutamente necessárias) foram nos levando a questionar velhos hábitos e gostos: Por que transamos do jeito que transamos? Estamos seguindo um roteiro de relações sexuais em um gênero serve ao gozo do outro? Nossas transas e nossos fetiches estão contaminados pela cultura violenta do pornô?
Ao longo da última década muitos tabus foram sendo quebrados, mas alguns temas ficaram mais complexos de se abordar. É sobre um deles que eu quero falar hoje: desejos de violência no sexo, sadomasoquismo, submissão, tapas, dores… Como conciliar o desejo por fetiches agressivos e desiguais com a busca por equidade de gênero? Seriam essas duas coisas incompatíveis e até mesmo contraditórias?
Queria dizer desde já que eu não vim aqui dizer que sexo violento (quando consensual) é um problema a ser combatido, um vício que faz mal pro corpo e pra alma. Eu, particularmente, gosto.
Neste texto eu quero, reconhecendo os problemas da cultura de violência sexual contra a mulher, pensar se há e quais são as possibilidade de viver os fetiches de dor e violência consensual sem que isso seja contraditório ao desejo de uma sociedade mais igualitária.
A desigualdade e a submissão
Há três ou quatro anos atrás eu escrevi um texto aqui no PdH sobre a diferença entre gostar de dor no sexo e de gostar de submissão. Eu, assim como diversas outras mulheres, paramos em algum momento para nos questionar: que tipo de mulher forte e não-submissa sou eu se no sexo eu levo tapa na cara? E pior, se o aceito de quem não me permitiria devolver o bofete?
A última década nos levou a rever uma série questões essenciais para um caminho de maior garantia de direitos entre as pessoas nas suas diversidade. Pegar garotas pelo braço numa festa não é normal, insistir mesmo depois de ouvir um não é assédio. É importante que estejamos constantemente refletindo, questionando e transformando atitudes que antes eram vistas como normais, mas que causavam feridas em tantas pessoas. Questione-se sempre. Faz bem.
É verdade também que estes questionamentos muitas vezes nos confundem, porque eles mudam o nosso parâmetro de “certo” e “errado”, “aceitável” e “inaceitável”. Já foi bastante aceitável que mulheres mantivessem relações sexuais com seus maridos durante toda uma vida, mesmo sem desejar ou desfrutar de nenhuma delas. Hoje isso não parece "certo". Ainda que estas relações tenham sido consensuais, foram tremendamente desiguais.
Em um cenário diferente, mas nesta mesma toada, questiona-se os desejos consensuais de violência no sexo — principalmente quando esta violência parte do homem para atingir a mulher — é um fetiche particular (como o gosto por pés) ou é uma forma de perpetuar a cultura de violência e submissão que atinge às mulheres.
Mulheres, ainda que desfrutem do prazer de um tapa, passam a questionar suas motivação. Do outro lado, homens, ainda que saibam que suas parceiras consentiriam, hesitam na hora de propor ou exercer qualquer violência no sexo, porque sabem que podem ofender ou porque não querem, novamente, reproduzir uma lógica de violência e desigualdade entre os gêneros.
Tapas, enforcamentos, gargantas profundas, agressões dirigidas às mulheres não são apenas questões individuais, porque se manifestam de maneira ampla, desigual e nem sempre consensual.
Num site de vídeos pornô, as práticas citadas acima se encontram nos vídeos de fora da categoria de fetiche BDSM. Ter o tapa da bunda, na cara, a enforcada e a tochada de pau na garganta é o “pacote básico” do pornô hétero enquanto o contrário não é verdadeiro. A mulher que enforca o cara por alguns segundos fica relegada à categoria de dominatrix. Mulheres ocupando esse papel não é o pacote básico, não é o normal, é a exceção.
O pornô foi e tem sido apontado como um grande perpetrador de violências e de desigualdades, não só pelas cenas que reproduz, mas pelo como trata as mulheres que trabalham nestas indústrias. Homens que são símbolos de masculinidade, como o Terry Crew e, mais recentemente o Kanye West, têm se manifestado contra a pornogragia associando-a ao vício da masturbação e a ideia de uma sexualidade nociva, individualista e violenta.
No entanto, tendo olhos abertos para o problema, precisamos também enxergar que o desejo por controle, poder e dor são fetiches de uma parcela expressiva das pessoas.
Segundo o estudo de Lehmiller, 79% das pessoas já fantasiaram em executar ou receber amarras e restrições de movimentos, 57% com controle de disciplina através de ordens e 73% já quiseram causar ou sentir dor.
A chave é o consenso!?
Parece haver uma resposta muito simples para essas questões: o consenso.
É um problema que homens acreditem que todas as mulheres queiram levar tapa na cara ou puxão de cabelo. É uma grande violência quando eles se sentem no direito de forçar um pau garganta abaixo sem consentimento. No entanto, uma vez que se entende e se bota em prática o consenso, não haveriam mais problemas, certo?
Inclusive, para os que ainda não aprenderam, um ditado contemporâneo diria que se ensina a importância do consenso aos homens heterossexuais colocando o cu deles em jogo.
Bem, partindo daí, se um rapaz está afim de executar um enforcamento e a companheira está com vontade de recebê-lo, é consensual, portanto não há mal nenhum e fim da discussão, certo?
Talvez. Não vou descartar essa perspectiva, mas acho que contentar-se com ela é ficar no raso de uma questão mais complexa.
A Vida Invisível, por exemplo, filme indicado para representar o Brasil no Oscar mostra como, em meados do século passado, mulheres consentiam o sexo, ainda quando não o queriam, mesmo que não sentissem prazer nele, consentiam principalmente pelo senso de obrigação.
O consenso tem que ser usado como premissa sempre e em todas as ocasiões. É o primeiro passo e é essencial. No entanto, mesmo havendo consenso, vale a pena dar um segundo passo, desta vez mais reflexivo, para observar como a noção de consenso reflete os valores de uma época e, portanto, também precisa ser colocado em dúvida de tempos em tempos.
Veja bem, nota-se que homens até gostam de uma dorzinha, uma arranhada, puxões de cabelo, mas um tapa na cara, mas qualquer coisa pra cima disso costuma ser aversivo ou por atraente para a maioria deles. Há quem goste muito, mas não é o geral.
Será então que mulheres consentem tapas porque gostam ou porque querem dar essa oportunidade de prazer ao outro? E quanto aos homens? Quando não consentem receber tapas, o fazem porque de fato não gostam ou porque não estão dispostos a experimentar por medo de serem julgados, ou de se colocarem em uma posição de vulnerabilidade?
"Chega de negar o meu desejo!"
Eu encontrei algumas luzes para os meus questionamentos lendo Gayle Rubin, Pensando o sexo: notas para uma teoria radical de políticas da sexualidade. (“Thinking sex: notes for a radical theory of the politics of sexuality”).
Rubin questiona as “escalas morais” e como nós tendemos a substituir uma moral pela outra, ao invés pensar fora das estruturas moralistas. Nesse sentido, a escala moral feminista, que questiona os valores religiosos de castidade, de heterossexualidade, acaba criando uma outra escala moral, na qual se aceita casais homossexuais, que transam fora do casamento, mas, no fim das contas, segue mantendo lá no fim da escala os mesmos grupos que já eram marginalizados pela moral tradicional cristão: profissionais do sexo, transsexuais, entre outros.
Fazia-se naquela época, como ainda se faz, de culpar o pornô pelo machismo, violência contra a mulher e pela cultura do estupro. Questionava-se naquela época, como ainda se questiona, se o sexo sadomasoquista não era responsável por perpetuar a violência e a desigualdade entre gêneros. Questionava-se se não necessário combater a prostituição, afinal esta seria a forma última de objetificação e venda do corpo da mulher. E também havia quem dissesse, como ainda há, que a transsexualidade, se certo modo, reforçava os estereótipos de gênero.
É neste ponto que a Rubin vem com a sua teoria radical e nos sugere que estes grupos, últimos na escala moral tanto cristã como feminista, acabavam servindo de bode expiatório, e recebendo a culpa de questões que eram anteriores a eles.
Como as transsexuais, sendo minoria excluída, poderiam ser acusadas de perpetuar os padrões de feminilidade que são muito mais massivamente difundidos pela televisão, publicidade, cinema, escola, entre outras instâncias?
Rubin questiona que (e isso era nos anos 1980) muito antes de um homem ter acesso a pornografia, ele já tinha forjado hábitos machistas e violentos a partir do convívio com amigos e familiares.
Longe de santificar a pornografia, a proposta dela é fazer ver que a pornografia reflete sim uma cultura violenta e, inclusive, pode contribuir para a perpetuação e disseminação desta, mas que atribuir a responsabilidade desta cultura a ela, à pornografia, é uma escapatória simplista.
Perseguir práticas sexuais, expressões sexuais ou o mercado sexual não vai resolver a violência de gênero. Proíbe-se a pornografia e ainda teremos violência de gênero e cultura do estupro, como acontece na Índia ou na Coréia do Sul, por exemplo.
Para além de colocar o sexo como o culpado de um mal do mundo (o que já é uma perspectiva um tanto moralista na essência), temos que nos perguntar sobre como as violências de gênero têm se perpetuado em todos os outros âmbitos da vida. “E quanto à família, religião, educação, mídia, estado, psiquiatria, discriminação no mercado de trabalho e desigualdade de pagamento?”, questiona Rubin.
A série de documentários “Explicando o Sexo”, apresenta dados dos estudo de Justin Lehmiller em que 54% dos homens, 61% das mulheres e 68% das pessoas não binárias já fantasiaram, pelo menos uma vez, em serem forçados a transar.
Existe uma longa tradição de histórias e romances que colocam a violação da vontade como algo sedutor. É a fantasia do “estupro romântico” em que a mocinha valente se interessa pelo mocinho mas não cede aos encantos dele, até ele demonstrar sua força e potência masculina dominando-a e possuindo-a.
O documentário apresenta uma pesquisa de 1987 em se revisitam romances históricos americanos, muitos deles escritos por e para mulheres, e ali se constata que mais da metade apresenta um estupro da personagem feminina principal. Na hipótese desta pesquisa, esta violência representa a “libertação da heroína do estigma moral de consentir relações sexuais antes do casamento”.
Veja só, nesse ponto, há desejo, mas pelo bem da moralidade, não pode haver consentimento declarado da parte da mulher.
Em alguma medida a cultura do estupro, anteriormente ao pornô, se perpetua a partir da moral e dos bons costumes cristãos que alienam da mulher o direito de desejar e de consentir. Ao passo que o sim é proibido, o não perde o seu valor. A moralidade, muito antes do pornô e do BDSM, tira da mulher o direito de pedir e dá ao homem o direito de tomar.
A cultura do estupro revela desigualdades da nossa sociedade e tem o efeito devastador de legitimar violências atrozes. No entanto, partindo do ponto de que mais de metade da polulação já fantasiou com submissão, dor e desejo de restrição, deveríamos, enquanto indivíduos que buscam uma sociedade mais equitativa, negar estes fetiches? Deveríamos controlar nossos desejos e praticar apenas o sexo não controverso, aquele que não gera dores nem dúvidas?
Eu diria que não. Partindo da velha premissa do consenso (e da maioridade), devemos levar nossos desejos mais controversos a cabo.
Precisamos de mudanças estruturais para garantir uma sociedade segura e justa para mulheres, para LGBTQs, para as minorias sociais. Mas mudar a estrutura não é substituir uma moralidade cristã cheia de regras e de pecados, por outra, feminista, mais libertária, mas ainda permeada por “pecados”.
Eu, enquanto feminista, quero trocar a ideia de moralidade conservadora, que não dá conta de evitar as violências, por políticas públicas laicas que previnam violências e que permitam, então, uma sexualidade livre, que possa ser vivida individualmente, sem moralismos, mas com consenso e com direitos.
Continuemos pelo consenso e pelas boas perguntas
Eu comecei questionando os valores morais da noção de consenso e eu o fiz justamente para dizer que, aceitar os nossos desejos consensuais não é, necessariamente, aceitar as coisas como estão. A gente não precisa negar os nossos desejos, mas podemos questioná-los, reinventá-los, trocá-los.
Por que no BDSM nosso de cada dia, ainda se pratica mais a dominação do homem sobre as mulheres? Porque há mais “match” de consentimento quando é assim…Mas e se colocarmos esse senso comum de consentimentos em jogo? E se colocarmos os cus em jogo? Literalmente.
Se você, homem, acha sensual ver a bunda da mina virada para você, enquanto você aquece a mão para virar-lhe uma palmada e, em seguida, observa a pela ficando levemente vermelha… Se você vê sensualidade nisso, por que não experimentar a beleza e o prazer de se colocar nessa posição, de deixar-se vulnerável a espera do tapa dela, de se ver aflito à beira do ardor do tapa?
Uma sexualidade menos presa às desigualdades de gênero não deveria ser construída sobre a repressão de fetiches consensuais… Sem criar uma relação de culpa e penitência, podemos olhar e questionar nossas relações. Podemos e devemos questioná-las constantemente para ampliar nossas possibilidades de vivência – o prazer da dominação não tem de nascer só do masculino controlando o feminino. Que possamos construir uma sexualidade menos presa aos estereótipos de gênero à medida que renovamos nossas ideias, expandimos nossas transgressões, desmontamos e remontamos novas versões de velhos fetiches, abrigando, diversificando, compreendendo nossas vontades compartilhadas e compartilháveis.
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